segunda-feira, 8 de julho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 11

Capítulo 8


            À qualquer momento, eles estariam lá. Comunistas chegando às centenas para aniquilar o nosso destacamento.
E lá estava eu, correndo como uma barata tonta na rua principal da cidade. Minha única sorte- eu deveria agradecer á Providência com mais freqüência- era estar protegido por uma barragem de casinhas que, apesar de pequenas e modestas, ainda impediam os vermelhos de mirar em mim.
Os tiros e a mudança súbita de nossa situação faziam a adrenalina correr pelas minhas veias enquanto eu inexplicavelmente corria em círculos. Rapidamente, precisei parar e pensar em alguma coisa.
Pare.
Pense.
A primeira coisa à se fazer é decidir a primeira coisa à se fazer.
A primeira coisa à se fazer, é, claramente, ter um plano. Bingo!
A primeira coisa à se fazer para ter um plano é decidir a primeira coisa à se fazer. Hum.
Reunir os rapazes, eis uma boa idéia.
E foi apenas parando de correr que, de fato, eu percebi que a maioria dos soldados estava na mesma situação que eu; em pânico, correndo para alguma direção tentando procurar abrigo, ou atirados contra alguma parede que não oferecia nenhum.
Gritei qualquer coisa- possivelmente Ten Hop- para eles perceberem que eu ainda estava lá. De certa forma funcionou; todos eles olharam para mim, mas faltou iniciativa, então corri na direção deles, e eles então se agruparam ao meu redor.
-Ok, pessoal, precisamos de um plano- eu gritei, tentando ser um líder.
-E qual vai ser, senhor tenente, senhor!- gritou o recruta com o curioso nome “Awesome” gravado no uniforme, roliço e com cara de mortadela.
Eu perscrutei a rua à procura de alguma coisa que pudesse indicar uma saída possível; entenda, era importante eu inventar algo rápido para que a minha capacidade de liderança não fosse questionada, o que seria ruim não só para mim, mas também para a moral de todo o destacamento.
E então, como um sinal que deve ter vindo do próprio Deus, o Mortadela se abaixou para se proteger de um tiro que ele erroneamente acreditava estar vindo em sua direção, permitindo que eu visse a Igreja. Era realmente óbvio que a maior rua da vila levaria à uma igreja, num país tão católico.
-Vamos para a Igreja- eu disse. - Algum de vocês trouxe a metralhadora? - adicionei, quase imediatamente.
-Sim- respondeu outro soldado roliço imediatamente, e mostrou-me a metralhadora: A M60, uma arma relativamente antiga, mas que nós havíamos levado hà muitos combates. Chamávamos-na de Betsy.
-Certo, vamos lá.- eu disse, e peguei a metralhadora de seus braços. Era mais pesada do que eu lembrava, e quase me dobrei para carregá-la, em meio aos bufos.
-Agora vamos correr!- gritei.
-Mas senhor tenente, senhor...
-EU DISSE QUE VAMOS CORRER!
Estava fora de mim, mas a ocasião exigia isso.
Logo todos começaram à correr, e eu fui à frente, parcialmente empurrado pelos outros enquanto carregava a M60.
O sol batia forte em meu rosto, queimando e cegando. Os tiros estavam ficando mais fortes e mais freqüentes. Estávamos perto de uma esquina.
Um dos garotos gritou. Acho que foi o Awesome; ele, afinal, era mais inteligente do que parecia; entendeu o plano perfeitamente em meio ao pânico, o suor e o tiroteio sem mim daqueles comunistas de mira ruim.
O sol cegou meus olhos, mas não me impediu de usar meus dedos. A M60 foi rápida, e durante uns 10 segundos, fiz chover chumbo sobre os comunistas. Por causa da luz, tudo que via eram alguns borrões; dois borrões caindo, outros dois se escondendo atrás de uma mesa de bar; Joguei metade dos tiros fora, mas logo os garotos tinham atravessado à rua e estavam à 50 metros da Igreja, e, correndo, eu pude fazer a mesma coisa, enquanto o suor escorria pelas minhas costas e grudava meu uniforme à pele, e eu ganhava uma hérnia carregando aquela metralhadora.
Comunistas covardes, sempre os últimos à entrar em combate e os primeiros à se esconder quando a coisa fica feia.
Estávamos agora nos degraus da Igreja. Muito parecida com centenas de outras igrejas que vimos por aí; talvez um pouco mais rica, um pouco mais branca, um pouco mais limpa, mas só. Eram os mesmos degraus de pedra escura, a mesma porta pintada de azul, a mesma torre de campanário cuja tinta o sol inclemente ajudara à descascar.
Entramos batendo a porta pintada de azul.
O ar que respiramos lá dentro estava tomado pelo medo.
Centenas de olhos nos encarando. Quantas pessoas você acha que dá para botar em uma igreja? Cinqüenta, Cem? Quinhentas? Havia provavelmente mil lá dentro, amontoadas em cima dos bancos, nos encarando com seus olhos cheios de medo. Pensando bem, não era o cheiro que lembrava o do medo, não; o cheiro era de excrementos, urina, todas essas coisas feias que acontecem quando você coloca centenas de pessoas dentro de uma Igreja, esperando pelo pior.
Todas aquelas pessoas estavam tão sujas, tão maltratadas, tão apavoradas. Tinham medo de nós. A verdade é que, no fundo, eu é que tinha medo delas. Aqueles olhos caninos penetrando diretamente na minha alma, se apertando contra as paredes, colocando seus filhos atrás para protegê-los, e alguns à frente, para se proteger. Pessoas, pessoas, pessoas queimadas de sol, imundas, rastejando para trás. Estaria começando à sentir pena? Talvez. Tentei afastar esses sentimentos, pois sentir pena de civis potencialmente hostis não era uma boa estratégia de batalha.
A concentração de gente, o ar empesteado e empobrecido de oxigênio, quente, denso, me tiraram do sério. No mesmo instante o padre veio andando em nossa direção.
Falou qualquer coisa que eu não consegui entender. Agitou os braços. Seu rosto estava úmido e seus olhos, lacrimejantes.
Não ia aturar aquela ladainha. Tirei a Colt do bolso e dei um único tiro para o teto.
Logo percebi porque aquilo era uma má idéia. A acústica da Igreja era tão boa que espalhou o barulho pela sala inteira, e as pessoas se tornaram uma manada, andando não em nossa direção, mas na direção delas mesmas. Era uma massa humana de pernas e braços pra todos os lados. Pude apenas ver algumas crianças no chão, caídas. Agora não sei se haviam sido pisoteadas.
-TOWER!- eu gritei.- TOWER! TOWER!- Enquanto meus garotos apontavam seus rifles para os civis dentro da Igreja, e a massa humana se contorcia, em busca de abrigo.
Evidentemente, estava á procura do campanário. Não precisei procurar muito. À direita, estava uma escada em espiral que levava diretamente à ele.
Fiz um sinal com a mão para que os garotos me seguissem, exceto Awesome e um outro soldado cujo nome não descobri, robusto como o primeiro, e que deveria ficar embaixo caso os comunistas decidissem entrar, ou o povo, sair.
Chegamos rapidamente no topo, sem perder o fogo. A visão era magnífica: o deserto emergia em toda a sua amplitude, plana, amarelada, solar, face à pequenez da cidade. Mais até do que a Amazônia, aquela planície- com apenas algumas montanhas indistintas, escuras e miragescas ao fundo marcando seus limites- era um testemunho da incapacidade do homem em suplantar a vastidão da natureza, e a sua notória capacidade em achar que podia.
Mas no Exército eu já deixara de fazer essas análises, e perdera a capacidade de ver a beleza em termos não-estratégicos, pelo menos no campo de batalha. Uma bela mulher de coxas fartas era para mim uma espiã em potencial, que, antes de descobrir informações sobre nós, podíamos capturar e levá-la à fazer o mesmo contra os nossos inimigos. Uma imponente montanha era um ponto alto que podíamos usar como posto de reconhecimento na falta de helicópteros. E assim por diante.
Assim, no momento aquele campanário era o nosso posto de reconhecimento e torre de franco-atirador.
Posicionamos a M60 no parapeito e Davis apontou as posições inimigas. Tudo muito categórico, muito racional, muito clean. Os outros soldados, que incluíam Jeremy Wright, que era de Detroit, como eu, o baixinho Bobby e o Shorty(o mais alto do pelotão e um ex-hippie que foi conscrito; droga, tenho que falar mais dele depois) e o Sykes(que é outro personagem curioso, apenas não de uma maneira boa) começaram à atirar à torto e à direito com seus Garands, acertando talvez alguns comunistas.
Com o tempo, minha visão melhorou e pude ver que nossa estratégia estava dando certo. Os comunistas tentavam cruzar a rua em manadas(meu Deus, como eram inexperientes, deviam ser só garotos) e eram derrubados rapidamente pela M60. Alguns ainda paravam no meio da rua, e tentavam atirar contra nós, só para serem derrubados com ainda mais facilidade.
Dois, Três, Quatro, Sete. Um comunista tentou correr em ziguezague enquanto atirava em nós à esmo. Davis lhe deu um tiro na perna e ele parou com a graçinha.
Nove, Doze, Dezesseis. Um deles foi ainda mais criativo: se atirou ao chão e tentou fazer uma camuflagem improvisada, se cobrindo de areia com uma mão e tentando atirar com a outra. Esse foi bem rápido.
Dezoito, Dezenove. Esse foi assustador: atiramos várias vezes nele, e ele não caiu. Tentamos melhorar a mira, e primeiro, ele se ajoelhou. Dei um tiro na cabeça e ele foi ao chão, atirando com duas pistolas. Levou uns bons trinta segundos para morrer.
Vinte, Vinte e três, Vinte e Quatro: Após tantas ondas de diferentes tamanhos, eles estão finalmente se cansando. Talvez após tantas longas sessões no moedor de carne, eles os seus números finalmente estivessem se arrefecendo. Durante talvez um minuto, ninguém tentou atravessar a rua.
Mas a idéia de que as tropas deles estavam se esgotando eram apenas uma ilusão temporária, esmagada rapidamente pelos novos fatos que chegaram à nós como uma bomba. Davis me passou o binóculo. Ele me deu uma bela visão daquilo que minutos antes parecia ser uma planície deserta, pacata e imponente em sua silenciosa vermelhidão, mas que eu agora via como um formigueiro de trincheiras e esconderijos, com vários comunas entrando e saindo do chão como se fosse o Dia da Marmota. Aquilo era bem mais que uma emboscada: Era uma parte integral da ofensiva que havia nos expulsado da Amazônia. E estava à poucos quilômetros de Salvador.
-Wright, pegue o walkie-talkie! Ligue para o Tenente Django e diga que estabelecemos um perímetro de segurança em torno da Igreja, e diga para ele vir aqui rápido!
Eu conhecera o Tenente Karl Django havia muitos anos. Seu pai fora nosso vizinho, e era vendedor de perfumes. Para um profissional supostamente experiente, Max Django escolhera um péssimo lugar para ser um vendedor de perfumes, afinal a maioria das famílias no bairro operário em que vivíamos não tinha muito dinheiro para esbanjar com maquiagem barata, quanto mais perfumes de luxo. Talvez como conseqüência disso, ele passava seis meses por ano fora da cidade, presumivelmente vendendo perfumes para os caipiras do Meio-Oeste.
Django e eu fomos para a mesma escola, e conforme os anos passaram a falta de pai se fez sentir. Aos 9 anos, Karl era um garoto legal que lia quadrinhos e jogava bola de gude. Aos 11 anos, eu passei à encontrá-lo com mais freqüência no beco fora da escola, fumando, encostado na parede de tijolos. Meu pai dizia que era porquê Django pai era muito frouxo. À bem dizer, acho que não era, já que, nas vezes em que ele estava na cidade, eu não conseguia dormir antes de Django pai terminar de espancar o seu filho e que os gritos e o choro parassem. Bom, certo, meu pai me batia também, mas eu nunca o matei por isso. Django, por outro lado... Bom, é melhor não poluir essa narração com elementos de uma investigação em que nada nunca foi realmente provado, em que meus únicos argumentos são minha própria suspeita.
-Walter? O que você quer, garoto? Não percebe que eu estou ocupado? Câmbio.
A voz de Django era ríspida e cortante, talvez acentuada pelo vento ríspido e cortante do Nordeste, e pela estática.
- Django, diga para seus homens irem em direção à igreja! Nós montamos um perímetro de segurança aqui! Câmbio!
Gritar naquelas horas era inevitável, até no “Câmbio”.
- Sempre tomando a iniciativa, não é? Ok, quantos homens você tem aí? Ah, à quem estou enganando, porra! Estamos cercados, cubra-nos, estamos indo para aí! Câmbio.
Nessa hora, não pude deixar de rir. É óbvio que a força de Django estava em muito melhor estado que à nossa; no fim das contas, ia ser ele que acabaria nos ajudando. Pelo binóculo, dava para ver que ele estava efetivamente cercado dos dois lados por comunistas que avançavam, o que o bloqueava um pouco. Porém, ele tinha alguns jipes, o que eventualmente faria a balança pender à seu favor. No geral, a batalha estava ganha, e nós havíamos ganho mais um dia.
E então, a farmácia explodiu.
Demorei até entender de onde aquilo havia vindo- na verdade, passei pelo menos dez segundos cobrindo os olhos e me recuperando do choque e da luz forte produzida pela explosão, gritando ‘MEU DEUS QUE PORRA FOI AQUELA’- mas toda dúvida desapareceu quando o zumbido familiar se fez ouvir.
-Cacete- falei, para quem quisesse escutar- o que é que a Força Aérea ta fazendo aqui?
Os B-52 rasgaram o céu, cobrindo a minha voz.
-Caralho, chegaram na hora certa! Há há!- disse Wright.
Mais quatro passaram em diagonal, fazendo linhas de fumaça que atravessavam as anteriores. A areia se transformou em crateras. Em meio ao barulho ensurdecedor das bombas e a visão das tempestades de areia que se formavam nada espontaneamente, era possível ver alguns pedaços de comunistas voando pelo céu.
Após alguns minutos de bombardeio, achamos que seria tudo. Afinal, tudo ao redor da cidade estava praticamente aniquilado, não haveria porquê continuar.
Grande erro.
Cada intervalo um pequeno ataque do coração, acreditando que o fim estava próximo. Não estava. As bombas continuaram à cair.
-Mais que merda é essa? Pra que tantas bombas? Puta que pariu!- disse Davis, não muito afeito ao uso de palavrões.
Entre as bolas de areia pouco densas que se formavam no ar,era possível ver algumas pessoas e restos de casas, dizendo olá ao sol antes de voltar ao chão. A rua principal deixou de existir.
De repente, me ocorreu.
Django.
-Desçam- eu disse.- DESÇAM CACETE!- Enquanto eu mesmo descia as escadas em alta velocidade.
A igreja não era mais a mesma. Não sobrevivera ao bombardeio. Havia poeira por toda parte, mesmo que ela não tivesse sido atingida diretamente.
Dei o primeiro passo para fora da escada e névoa impenetrável de areia adentro, um passo cauteloso, um passo que pousou sobre algo.
Reconheci a cabeça do soldado Awesome.
Já tinha visto imagens mais nojentas, inclusive à minha frente. Soldados que ficavam com o braço pendurado por um fiapo de tecido no ombro após serem atingidos por uma baioneta. Vítimas de estilhaços de bala cujas bochechas tinham sido perfuradas. Casos dramáticos de piolhos pubianos após uma estadia demasiado longa em um pântano. Mas a cabeça de Awesome no chão, metade humana, metade lasanha bolonhesa, leva o troféu. Cambaleei desnorteado até a porta da igreja. Bati a cabeça nela, mas qualquer coisa era melhor do que ver um compatriota vazar por todos os orifícios.
Cheguei do lado de fora. Davis e os outros logo desceram a escadaria da Igreja.
A poeira estava começando à baixar, revelando pessoas e prédios. Ruínas, membros espalhados, armas. Um circo dos horrores para Guérnica nenhum botar defeito.
A cidade não existia mais. Eu nunca descobrira seu nome, mas agora não importava mais. Havíamos ganho aquela batalha, e essas pessoas- as poucas sobreviventes, que agora andavam pelo que antes havia sido uma rua e agora havia sido reintegrado na grande planície desértica que rodeava a cidade, encarando tudo à sua volta não com tristeza, não com desespero, mas com algo que ia além, uma espécie de cinismo e descrença que se vê no rosto das pessoas que perderam tudo, mas que sabiam lá no fundo que isso ia acontecer- estavam agora livres da ameaça comunista, pelo menos até a próxima batalha.
Do pó ao pó, literalmente. Aquela cidade erguera-se sobre a poeira do deserto, à poeira retornara, e todo vestígio de civilização desaparecera. Os seus habitantes haviam dividido o deserto em uma grade de ruas não pavimentadas, cravando seu orgulho sobre a imponente Terra. Ruas não-pavimentadas, sob as quais ainda se via o deserto! Tão perto da civilização, e tão longe ao mesmo tempo. Se me perguntarem, assim ficou melhor, até.
De súbito, vi os primeiros corpos de nossos homens entre os dos aldeões mortos. Foi só depois de fazer a saudação de respeito e tirar meu capacete para alguns deles que percebi que a fila de mortos ia até o final do local onde antes havia uma rua.
No final da rua, não havia nada, nem ninguém. Apenas a fila de corpos, se estendendo até o fim.

-Django.

sábado, 6 de julho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 10

Capítulo 7


-Branquelo, eu não sei bem se entendi aonde você quer chegar com isso.
Eram duas horas da tarde, e já fazia uma hora, Soares estava manipulando um rádio antigo.
-Ô Soares...
-Fale baixo, acho que eles estão chegando.
Já fazia uma hora, Soares estava manipulando um rádio antigo que, ele insistia, era um mecanismo de detecção de som, informalmente conhecido como escuta. O plano é bom o suficiente para dar certo, pensou Soares, e ele vai dar certo assim que essa mulata ficar longe o suficiente para não perceber que eu estou ouvindo “A Hard Day’s Night”.
Soares havia pensado em pegar algum dos discos novos da Nara Leão, como o recente “Antapofagia”, que, já fazia um tempo, tinha vontade de ouvir, mas o Capitão Orfeu dificilmente lhe forneceria uma obra lançada no estrangeiro e banida na República Legalista Brasileira.
-Veja se eles já estão na janela, Cleópatra.
E foi isso o que ela fez, atravessando o armazém délabré até a janela, que se abria frente à um armazém igualmente délabré, e na verdade, idêntico à aquele em que estavam em todos os sentidos. O caráter pragmático e temporário do porto, que servia só de entrada e saída, e não como um local à ser admirado, de fato não dava muita margem à criatividade arquitetônica. Na maneira que existia então, o porto de Salvador subsistia como local de entrada de soldados americanos saudáveis, robustos e prontos para o combate, e de saída para soldados sujos, feridos, e tomados por doenças há muito consideradas erradicadas. Todas as outras atividades haviam sido abandonadas pouco à pouco, e o resultado era que o porto havia se tornado uma casca vazia de aço, tijolos e concreto. Seus vastos armazéns haviam se tornado refúgio para jogatina e moradia para os desabrigados; ou seja, não muito diferente de sua função anterior. A indústria da entrada e saída de soldados havia feito florescer uma próspera rede de prostituição, alimentada por refugiadas do interior que buscavam se esconder dos comunistas, das milícias cristãs, ou do Exército Americano, ou ainda dos três ao mesmo tempo( estupros de guerra são notoriamente democráticos, na medida em que ele é praticado por todas as facções sobre mulheres de todas as classes e raças, e até alguns homens). As camponesas largavam a enxada mas a enxada não as largava, e isso somado ao cruel e competitivo ambiente econômico da cidade grande faziam com que rapidamente fossem engrossar a fileira das prostitutas que se atiravam sobre os bem-vestidos americanos quando estes davam seus primeiros passos no lado B de seu próprio continente, dizendo please e acenando sensualmente com frases que no papel, não queriam dizer nada, mas todos na prática compreendiam a intenção( I be very dirty, me so horny, me Love you long time). Assim se completava a metamorfose das camponesas, de mulheres que fugiram do estupro para mulheres que aceitavam sexo com estranhos por dinheiro.
Além de todos esses negócios que geralmente, pelo menos na retórica, se situam à margem da sociedade e da moral, o porto de Salvador também servia com freqüência como ponto de encontro de grupos bastante suspeitos; e era exatamente para isso que Soares iria utilizá-lo.
-Branquelo, Branquelo! Eles chegaram!- Disse Cleópatra, do outro lado da sala, em uma inquietante mistura de sussurro e grito.
-Certo, vou ligar o aparelho- disse Soares, girando o mesmo botão que já girava havia uma hora, enquanto “And I Love Her” tocava.
Nesse momento, se tudo corresse como o planejado, cinco homens de camisas coloridas e óculos escuros- agentes do governo disfarçados de jovens revolucionários- estariam saindo de um carro discreto, um Fusca preto com janelas escurecidas, e iriam na direção do armazém adjacente à aquele em que Soares e Cleópatra estavam instalados, e onde a escuta de Soares lhe revelaria detalhes da mais alta importância para a solução do caso.
-E aí? Eles já disseram algo de interessante?- Perguntou Cleópatra, de cócoras ao lado de Soares, esperando notícias como uma discípula do messias.
-Meu Deus... Meu Deus- Soares fez a sua melhor careta, procurando retratar o sentimento e a emoção que alguém transmitiria ao receber uma revelação dramática. Seu rosto, no entanto, aproximou-se mais do de uma pessoa que comeu um acarajé estragado e, não apreciando-o, se prepara para cuspi-lo. Mesmo assim, isso pareceu ter impressionado Cleópatra, que balançou Soares enquanto seu próprio cabelo Black Power bailava no ar como espuma.
-O que foi? O que foi?- Perguntou ela, entrando em pânico.
Soares “desligou” o seu aparelho de escuta- à verdade, um gigantesco gravador que funcionava apenas na medida que também permitia tocar algumas boas músicas dos Beatles. Eram ótimos cantores mesmo. Pena que tenham entrado nesta piração da esquerda revolucionária- pensou, enquanto se levantava.
-Cleópatra, as informações que peguei são muito, muito importantes- anunciou, com uma ênfase típica dos mentirosos.
-O que faremos agora?- Ela perguntou(de novo), agora com uma certa ingenuidade. Sabe, depois de ela ter sido tão insuportável, até que estou começando a tolerá-la.
-É simples. Voltarei para o meu escritório e vou redigir um relatório. Deve ser entregue ao Cassius ainda hoje.
-Você quer dizer o Líder.
-É, o que quiser.
E assim, pensou Soares, enquanto o cenário- não, a realidade- se construía à sua frente. E assim, essa escuta me dará todas as provas de que preciso para mostrar à Cassius que o Exército Popular da Insurreição Vermelha Seção Nordeste é quem está por trás do seqüestro de sua sobrinha. Cassius vai ficar suficientemente grato e vai liberar a informação que Orfeu deseja, e se os dois grupos entrarem em guerra, vai ser uma bela adição. Assim Orfeu sai plenamente satisfeito, e eu ganho minha liberdade, meu negócio, e quem sabe, até a reputação que nunca tive. Toma essa, Geraldo.

Talvez até ganha minha casa no Rio de Janeiro de volta.  Talvez já tenham esquecido tudo o que aconteceu por lá.