Capítulo 8
À
qualquer momento, eles estariam lá. Comunistas chegando às centenas para
aniquilar o nosso destacamento.
E lá estava eu, correndo como uma barata tonta na
rua principal da cidade. Minha única sorte- eu deveria agradecer á Providência
com mais freqüência- era estar protegido por uma barragem de casinhas que,
apesar de pequenas e modestas, ainda impediam os vermelhos de mirar em mim.
Os tiros e a mudança súbita de nossa situação
faziam a adrenalina correr pelas minhas veias enquanto eu inexplicavelmente
corria em círculos. Rapidamente, precisei parar e pensar em alguma coisa.
Pare.
Pense.
A primeira coisa à se fazer é decidir a primeira
coisa à se fazer.
A primeira coisa à se fazer, é, claramente, ter um
plano. Bingo!
A primeira coisa à se fazer para ter um plano é
decidir a primeira coisa à se fazer. Hum.
Reunir os rapazes, eis uma boa idéia.
E foi apenas parando de correr que, de fato, eu
percebi que a maioria dos soldados estava na mesma situação que eu; em pânico,
correndo para alguma direção tentando procurar abrigo, ou atirados contra
alguma parede que não oferecia nenhum.
Gritei qualquer coisa- possivelmente Ten Hop- para
eles perceberem que eu ainda estava lá. De certa forma funcionou; todos eles
olharam para mim, mas faltou iniciativa, então corri na direção deles, e eles
então se agruparam ao meu redor.
-Ok, pessoal, precisamos de um plano- eu gritei,
tentando ser um líder.
-E qual vai ser, senhor tenente, senhor!- gritou o
recruta com o curioso nome “Awesome” gravado no uniforme, roliço e com cara de
mortadela.
Eu perscrutei a rua à procura de alguma coisa que
pudesse indicar uma saída possível; entenda, era importante eu inventar algo
rápido para que a minha capacidade de liderança não fosse questionada, o que
seria ruim não só para mim, mas também para a moral de todo o destacamento.
E então, como um sinal que deve ter vindo do
próprio Deus, o Mortadela se abaixou para se proteger de um tiro que ele
erroneamente acreditava estar vindo em sua direção, permitindo que eu visse a
Igreja. Era realmente óbvio que a maior rua da vila levaria à uma igreja, num
país tão católico.
-Vamos para a Igreja- eu disse. - Algum de vocês
trouxe a metralhadora? - adicionei, quase imediatamente.
-Sim- respondeu outro soldado roliço imediatamente,
e mostrou-me a metralhadora: A M60, uma arma relativamente antiga, mas que nós
havíamos levado hà muitos combates. Chamávamos-na de Betsy.
-Certo, vamos lá.- eu disse, e peguei a
metralhadora de seus braços. Era mais pesada do que eu lembrava, e quase me
dobrei para carregá-la, em meio aos bufos.
-Agora vamos correr!- gritei.
-Mas senhor tenente, senhor...
-EU DISSE QUE VAMOS CORRER!
Estava fora de mim, mas a ocasião exigia isso.
Logo todos começaram à correr, e eu fui à frente,
parcialmente empurrado pelos outros enquanto carregava a M60.
O sol batia forte em meu rosto, queimando e
cegando. Os tiros estavam ficando mais fortes e mais freqüentes. Estávamos
perto de uma esquina.
Um dos garotos gritou. Acho que foi o Awesome; ele,
afinal, era mais inteligente do que parecia; entendeu o plano perfeitamente em
meio ao pânico, o suor e o tiroteio sem mim daqueles comunistas de mira ruim.
O sol cegou meus olhos, mas não me impediu de usar
meus dedos. A M60 foi rápida, e durante uns 10 segundos, fiz chover chumbo
sobre os comunistas. Por causa da luz, tudo que via eram alguns borrões; dois
borrões caindo, outros dois se escondendo atrás de uma mesa de bar; Joguei
metade dos tiros fora, mas logo os garotos tinham atravessado à rua e estavam à
50 metros da Igreja, e, correndo, eu pude fazer a mesma coisa, enquanto o suor
escorria pelas minhas costas e grudava meu uniforme à pele, e eu ganhava uma
hérnia carregando aquela metralhadora.
Comunistas covardes, sempre os últimos à entrar em
combate e os primeiros à se esconder quando a coisa fica feia.
Estávamos agora nos degraus da Igreja. Muito
parecida com centenas de outras igrejas que vimos por aí; talvez um pouco mais
rica, um pouco mais branca, um pouco mais limpa, mas só. Eram os mesmos degraus
de pedra escura, a mesma porta pintada de azul, a mesma torre de campanário
cuja tinta o sol inclemente ajudara à descascar.
Entramos batendo a porta pintada de azul.
O ar que respiramos lá dentro estava tomado pelo
medo.
Centenas de olhos nos encarando. Quantas pessoas
você acha que dá para botar em uma igreja? Cinqüenta, Cem? Quinhentas? Havia
provavelmente mil lá dentro, amontoadas em cima dos bancos, nos encarando com
seus olhos cheios de medo. Pensando bem, não era o cheiro que lembrava o do
medo, não; o cheiro era de excrementos, urina, todas essas coisas feias que
acontecem quando você coloca centenas de pessoas dentro de uma Igreja,
esperando pelo pior.
Todas aquelas pessoas estavam tão sujas, tão
maltratadas, tão apavoradas. Tinham medo de nós. A verdade é que, no fundo, eu
é que tinha medo delas. Aqueles olhos caninos penetrando diretamente na minha
alma, se apertando contra as paredes, colocando seus filhos atrás para
protegê-los, e alguns à frente, para se proteger. Pessoas, pessoas, pessoas
queimadas de sol, imundas, rastejando para trás. Estaria começando à sentir
pena? Talvez. Tentei afastar esses sentimentos, pois sentir pena de civis potencialmente
hostis não era uma boa estratégia de batalha.
A concentração de gente, o ar empesteado e
empobrecido de oxigênio, quente, denso, me tiraram do sério. No mesmo instante
o padre veio andando em nossa direção.
Falou qualquer coisa que eu não consegui entender.
Agitou os braços. Seu rosto estava úmido e seus olhos, lacrimejantes.
Não ia aturar aquela ladainha. Tirei a Colt do
bolso e dei um único tiro para o teto.
Logo percebi porque aquilo era uma má idéia. A
acústica da Igreja era tão boa que espalhou o barulho pela sala inteira, e as
pessoas se tornaram uma manada, andando não em nossa direção, mas na direção
delas mesmas. Era uma massa humana de pernas e braços pra todos os lados. Pude
apenas ver algumas crianças no chão, caídas. Agora não sei se haviam sido
pisoteadas.
-TOWER!- eu gritei.- TOWER!
TOWER!- Enquanto meus garotos
apontavam seus rifles para os civis dentro da Igreja, e a massa humana se
contorcia, em busca de abrigo.
Evidentemente, estava á procura do campanário. Não
precisei procurar muito. À direita, estava uma escada em espiral que levava
diretamente à ele.
Fiz um sinal com a mão para que os garotos me
seguissem, exceto Awesome e um outro soldado cujo nome não descobri, robusto
como o primeiro, e que deveria ficar embaixo caso os comunistas decidissem
entrar, ou o povo, sair.
Chegamos rapidamente no topo, sem perder o fogo. A
visão era magnífica: o deserto emergia em toda a sua amplitude, plana,
amarelada, solar, face à pequenez da cidade. Mais até do que a Amazônia, aquela
planície- com apenas algumas montanhas indistintas, escuras e miragescas ao
fundo marcando seus limites- era um testemunho da incapacidade do homem em
suplantar a vastidão da natureza, e a sua notória capacidade em achar que podia.
Mas no Exército eu já deixara de fazer essas
análises, e perdera a capacidade de ver a beleza em termos não-estratégicos,
pelo menos no campo de batalha. Uma bela mulher de coxas fartas era para mim
uma espiã em potencial, que, antes de descobrir informações sobre nós, podíamos
capturar e levá-la à fazer o mesmo contra os nossos inimigos. Uma imponente
montanha era um ponto alto que podíamos usar como posto de reconhecimento na
falta de helicópteros. E assim por diante.
Assim, no momento aquele campanário era o nosso
posto de reconhecimento e torre de franco-atirador.
Posicionamos a M60 no parapeito e Davis apontou as
posições inimigas. Tudo muito categórico, muito racional, muito clean. Os
outros soldados, que incluíam Jeremy Wright, que era de Detroit, como eu, o
baixinho Bobby e o Shorty(o mais alto do pelotão e um ex-hippie que foi
conscrito; droga, tenho que falar mais dele depois) e o Sykes(que é outro
personagem curioso, apenas não de uma maneira boa) começaram à atirar à torto e
à direito com seus Garands, acertando talvez alguns comunistas.
Com o tempo, minha visão melhorou e pude ver que
nossa estratégia estava dando certo. Os comunistas tentavam cruzar a rua em
manadas(meu Deus, como eram inexperientes, deviam ser só garotos) e eram
derrubados rapidamente pela M60. Alguns ainda paravam no meio da rua, e
tentavam atirar contra nós, só para serem derrubados com ainda mais facilidade.
Dois, Três, Quatro, Sete. Um comunista tentou
correr em ziguezague enquanto atirava em nós à esmo. Davis lhe deu um tiro na
perna e ele parou com a graçinha.
Nove, Doze, Dezesseis. Um deles foi ainda mais
criativo: se atirou ao chão e tentou fazer uma camuflagem improvisada, se
cobrindo de areia com uma mão e tentando atirar com a outra. Esse foi bem
rápido.
Dezoito, Dezenove. Esse foi assustador: atiramos
várias vezes nele, e ele não caiu. Tentamos melhorar a mira, e primeiro, ele se
ajoelhou. Dei um tiro na cabeça e ele foi ao chão, atirando com duas pistolas.
Levou uns bons trinta segundos para morrer.
Vinte, Vinte e três, Vinte e Quatro: Após tantas
ondas de diferentes tamanhos, eles estão finalmente se cansando. Talvez após
tantas longas sessões no moedor de carne, eles os seus números finalmente
estivessem se arrefecendo. Durante talvez um minuto, ninguém tentou atravessar
a rua.
Mas a idéia de que as tropas deles estavam se
esgotando eram apenas uma ilusão temporária, esmagada rapidamente pelos novos
fatos que chegaram à nós como uma bomba. Davis me passou o binóculo. Ele me deu
uma bela visão daquilo que minutos antes parecia ser uma planície deserta,
pacata e imponente em sua silenciosa vermelhidão, mas que eu agora via como um
formigueiro de trincheiras e esconderijos, com vários comunas entrando e saindo
do chão como se fosse o Dia da Marmota. Aquilo era bem mais que uma emboscada:
Era uma parte integral da ofensiva que havia nos expulsado da Amazônia. E
estava à poucos quilômetros de Salvador.
-Wright, pegue o walkie-talkie! Ligue para o
Tenente Django e diga que estabelecemos um perímetro de segurança em torno da
Igreja, e diga para ele vir aqui rápido!
Eu conhecera o Tenente Karl Django havia muitos
anos. Seu pai fora nosso vizinho, e era vendedor de perfumes. Para um
profissional supostamente experiente, Max Django escolhera um péssimo lugar
para ser um vendedor de perfumes, afinal a maioria das famílias no bairro
operário em que vivíamos não tinha muito dinheiro para esbanjar com maquiagem
barata, quanto mais perfumes de luxo. Talvez como conseqüência disso, ele
passava seis meses por ano fora da cidade, presumivelmente vendendo perfumes
para os caipiras do Meio-Oeste.
Django e eu fomos para a mesma escola, e conforme
os anos passaram a falta de pai se fez sentir. Aos 9 anos, Karl era um garoto
legal que lia quadrinhos e jogava bola de gude. Aos 11 anos, eu passei à
encontrá-lo com mais freqüência no beco fora da escola, fumando, encostado na
parede de tijolos. Meu pai dizia que era porquê Django pai era muito frouxo. À
bem dizer, acho que não era, já que, nas vezes em que ele estava na cidade, eu
não conseguia dormir antes de Django pai terminar de espancar o seu filho e que
os gritos e o choro parassem. Bom, certo, meu pai me batia também, mas eu nunca
o matei por isso. Django, por outro lado... Bom, é melhor não poluir essa
narração com elementos de uma investigação em que nada nunca foi realmente
provado, em que meus únicos argumentos são minha própria suspeita.
-Walter? O que você quer, garoto? Não percebe que
eu estou ocupado? Câmbio.
A voz de Django era ríspida e cortante, talvez
acentuada pelo vento ríspido e cortante do Nordeste, e pela estática.
- Django, diga para seus homens irem em direção à
igreja! Nós montamos um perímetro de segurança aqui! Câmbio!
Gritar naquelas horas era inevitável, até no
“Câmbio”.
- Sempre tomando a iniciativa, não é? Ok, quantos
homens você tem aí? Ah, à quem estou enganando, porra! Estamos cercados,
cubra-nos, estamos indo para aí! Câmbio.
Nessa hora, não pude deixar de rir. É óbvio que a
força de Django estava em muito melhor estado que à nossa; no fim das contas,
ia ser ele que acabaria nos ajudando. Pelo binóculo, dava para ver que ele
estava efetivamente cercado dos dois lados por comunistas que avançavam, o que
o bloqueava um pouco. Porém, ele tinha alguns jipes, o que eventualmente faria
a balança pender à seu favor. No geral, a batalha estava ganha, e nós havíamos
ganho mais um dia.
E então, a farmácia explodiu.
Demorei até entender de onde aquilo havia vindo- na
verdade, passei pelo menos dez segundos cobrindo os olhos e me recuperando do
choque e da luz forte produzida pela explosão, gritando ‘MEU DEUS QUE PORRA FOI
AQUELA’- mas toda dúvida desapareceu quando o zumbido familiar se fez ouvir.
-Cacete- falei, para quem quisesse escutar- o que é
que a Força Aérea ta fazendo aqui?
Os B-52 rasgaram o céu, cobrindo a minha voz.
-Caralho, chegaram na hora certa! Há há!- disse
Wright.
Mais quatro passaram em diagonal, fazendo linhas de
fumaça que atravessavam as anteriores. A areia se transformou em crateras. Em
meio ao barulho ensurdecedor das bombas e a visão das tempestades de areia que
se formavam nada espontaneamente, era possível ver alguns pedaços de comunistas
voando pelo céu.
Após alguns minutos de bombardeio, achamos que
seria tudo. Afinal, tudo ao redor da cidade estava praticamente aniquilado, não
haveria porquê continuar.
Grande erro.
Cada intervalo um pequeno ataque do coração,
acreditando que o fim estava próximo. Não estava. As bombas continuaram à cair.
-Mais que merda é essa? Pra que tantas bombas? Puta
que pariu!- disse Davis, não muito afeito ao uso de palavrões.
Entre as bolas de areia pouco densas que se
formavam no ar,era possível ver algumas pessoas e restos de casas, dizendo olá
ao sol antes de voltar ao chão. A rua principal deixou de existir.
De repente, me ocorreu.
Django.
-Desçam- eu disse.- DESÇAM CACETE!- Enquanto eu
mesmo descia as escadas em alta velocidade.
A igreja não era mais a mesma. Não sobrevivera ao
bombardeio. Havia poeira por toda parte, mesmo que ela não tivesse sido
atingida diretamente.
Dei o primeiro passo para fora da escada e névoa
impenetrável de areia adentro, um passo cauteloso, um passo que pousou sobre
algo.
Reconheci a cabeça do soldado Awesome.
Já tinha visto imagens mais nojentas, inclusive à
minha frente. Soldados que ficavam com o braço pendurado por um fiapo de tecido
no ombro após serem atingidos por uma baioneta. Vítimas de estilhaços de bala
cujas bochechas tinham sido perfuradas. Casos dramáticos de piolhos pubianos
após uma estadia demasiado longa em um pântano. Mas a cabeça de Awesome no
chão, metade humana, metade lasanha bolonhesa, leva o troféu. Cambaleei
desnorteado até a porta da igreja. Bati a cabeça nela, mas qualquer coisa era
melhor do que ver um compatriota vazar por todos os orifícios.
Cheguei do lado de fora. Davis e os outros logo
desceram a escadaria da Igreja.
A poeira estava começando à baixar, revelando
pessoas e prédios. Ruínas, membros espalhados, armas. Um circo dos horrores
para Guérnica nenhum botar defeito.
A cidade não existia mais. Eu nunca descobrira seu
nome, mas agora não importava mais. Havíamos ganho aquela batalha, e essas
pessoas- as poucas sobreviventes, que agora andavam pelo que antes havia sido
uma rua e agora havia sido reintegrado na grande planície desértica que rodeava
a cidade, encarando tudo à sua volta não com tristeza, não com desespero, mas
com algo que ia além, uma espécie de cinismo e descrença que se vê no rosto das
pessoas que perderam tudo, mas que sabiam lá no fundo que isso ia acontecer-
estavam agora livres da ameaça comunista, pelo menos até a próxima batalha.
Do pó ao pó, literalmente. Aquela cidade erguera-se
sobre a poeira do deserto, à poeira retornara, e todo vestígio de civilização
desaparecera. Os seus habitantes haviam dividido o deserto em uma grade de ruas
não pavimentadas, cravando seu orgulho sobre a imponente Terra. Ruas
não-pavimentadas, sob as quais ainda se via o deserto! Tão perto da
civilização, e tão longe ao mesmo tempo. Se me perguntarem, assim ficou melhor,
até.
De súbito, vi os primeiros corpos de nossos homens
entre os dos aldeões mortos. Foi só depois de fazer a saudação de respeito e
tirar meu capacete para alguns deles que percebi que a fila de mortos ia até o
final do local onde antes havia uma rua.
No final da rua, não havia nada, nem ninguém.
Apenas a fila de corpos, se estendendo até o fim.
-Django.