Capítulo 9
-Entra logo, branquelo, nós...
-Estamos em guerra. É, eu sei.
Pelo segundo dia seguido, Soares estava adentrando
a toca do dragão. Dessa vez, porém, entrava munido não de perguntas, e sim de
respostas. Respostas falsas, claro, mas respostas, mesmo assim.
Sua arma era uma pasta com um dossiê muito
específico e de aparência oficial, um dossiê marrom, enrolado em papel pardo e
preso em pequenos elásticos amarelados, contendo provas forjadas de que a prima
de Cassius havia sido seqüestrado pelo grupo trotskista que atuava na cidade.
A porta se abriu, liberando a luz celestial e a
fumaça grossa da sala de Cassius, blá blá blá. Vocês já conhecem o lugar,
visitamos ele à menos de 20 páginas.
-Ora, ora, se não é o meu detetive favorito- disse
a cadeira, digo, Cassius,sentado na cadeira ainda virada, com uma entonação que
Soares percebeu ser vagamente sarcástica.
Soares jogou a mala sobre a mesa. O moleque de
boina e jaqueta, o tradicional guarda-costas de Cassius reagiu rápido e apontou
a arma. Afinal, era uma guerra; todo cuidado era mínimo. Quem não iria garantir
que se tratava de uma bomba, afinal de contas?
-Diga... Para o seu amigo se acalmar- disse Soares,
sentindo o cano frio através de seu sobretudo.
-Amigo, acalme-se.
A pressão sumiu. Certo. Soares apertou os
pequenos botões metálicos, que, estalando, abriram a mala.
-Estou aqui, senhor Cassius, com um dossiê que
contém evidências conclusivas.
-Excelente. Mas você não terminou a frase.
Evidências de quê?- disse a cadeira, terminando a frase.
-É bom você ter perguntado. Tenho gravações de uma
escuta que coloquei perto de uma reunião do FLB. Senhor Cassius, eles
mencionaram explicitamente ter capturado a sua sobrinha. Estavam à procura de
um lugar aonde pudessem deixá-la presa,
embora, na minha opinião, estejam apenas tentando derrotá-lo pelo desespero.
Soares expeliu e, imediatamente, engoliu aquelas
palavras. Acabara de racionalizar aquilo que, provavelmente, Orfeu e seus
capangas do governo estavam fazendo.
A cadeira estava em silêncio. -Continue- disse
solenemente, rompendo-o.
-Eles mencionaram... Algo sobre amanhã à noite.
Estão dizendo que os seus planos para amanhã deverão ser cancelados se quiser a
sua...
-O que?!- interrompeu Cassius- Essa FLB deveria ser
internada se acha que pode impedir amanhã de ocorrer! Isso é muito maior que
nós, é muito maior que eles, é maior que a porra dessa cidade fétida! Não se
pára um evento dessa magnitude 24 horas antes!
Bingo. Finalmente estava soltando as informações. A
euforia mental de Soares não durou; Cassius respirava alto, e seu suspiro de
resignação era o mais alto de todos.
Não; eram soluços.
-As... As circunstâncias não permitem. Nós... Droga,
não tem mais nada que eles estejam pedindo?!
Droga. Preciso levar ele de volta à parte em que
estava liberando informações.
-Senhor, esse “evento” é tão importante que...
-Cale-se! Você já sabe demais. Não preciso de você
aqui fazendo perguntas! Caia fora! CAIA FORA!
O trovão ressoou pela sala. Droga.
Soares deu de ombros do lado de fora, mas do lado
de dentro o seu estômago queimava e se retorcia. Não chegara à resposta. Se
preparou para se virar e se ver escoltado para fora por um menino magricela. Mas
então se lembrou(e, se virando em direção à porta e então novamente em direção
à cadeira, acabou fazendo uma pirueta de natureza constrangedora. Admitamos que
essas considerações não eram muito importantes naquela hora). Pronunciou as
três palavras que estavam em jogo naquela operação, na guerra que se travava
todos os dias e na guerra maior travada pelos dois gigantes em âmbito mundial.
-Quero meu dinheiro.
O braço de Cassius fez um movimento em direção ao
menino armado de um rifle, que andou em direção à mesa e pegou uma mala de
metal cromado, entregue por outro braço saído da cadeira. Era a primeira vez
que Soares via parte do corpo de Cassius.(amitlú a oãn etnematrec E.)
Pelo padrão curioso de suspiros vindos da cadeira,
Soares pôde imaginar que Cassius estava se recompondo.
-Me desculpe. Eu exagerei; gritei com um hóspede, e
envergonhei a família. Vamos apertar as mãos; você fez o seu melhor e, na
verdade, cumpriu sua tarefa.
Cassius se levantou da cadeira e olhou direto nos
olhos de Soares, e Soares olhou direto nos olhos de Marcelo.
Espera aí... Marcelo?
-Espera aí... Marcelo?
-Espera aí... Major Soares?
-Ah meu Deus!
Soares explodiu por dentro, aquela explosão de
surpresa vaga, desagradável e gasosa de se ver um velho conhecido. Cassius
Zumbi Mandela Wesizwe era aquele que um dia se chamara Marcelo Wallace, antigo
amigo de Soares nos tempos do Exército. Em outra teoria igualmente plausível,
Cassius teria implodido logo antes de se levantar da cadeira, e seu espírito
teria reencarnado em Marcelo Wallace, antigo amigo de Soares nos tempos do
Exército.
Essas considerações
filosófico-religio-nigaudlógicas não importavam muito para Soares, que no
momento estava lidando com a situação ainda mais desconfortável de encontrar um
antigo conhecido e ter de lidar com as suas mudanças em período estendido de
tempo, também conhecida como “aquela chatice de as coisas não permanecerem as
mesmas enquanto não estão olhando”. É conhecida nos círculos médico-acadêmicos
pelo nome bem mais formal de Síndrome de Depressão Pós-Subversão de Expectativa
Evolucionária Estagnada, ou DEPSUEXEVES. Saúde.
-Puta que pariu, como você mudou, cara!- disse
Soares, em uma das reações mais comuns à DEPSUEXEVES.
-E você então? Virou detetive, e eu nem sabia! Que
incrível! Cara, nem sabia que você estava em Salvador!
-Estou, é, montei um consultório já tem uns dois
anos. Vim para cá mais ou menos depois de você ter ido embora do Rio de
Janeiro.
-Pois é. Bons tempos, aqueles, né?
-É, é, verdade.
Era mentira. Não haviam sido bons tempos. Na verdade,
Soares tinha calafrios toda vez que lembrava deles.
Entre os dois, pensou Soares, Marcelo era
definitivamente aquele que havia mudado mais. Quando o conhecera, havia quatro
anos, era um magricela em forma de cotonete(leia-se: pés e cabeça inchados,
corpo magro e longilíneo) que ficava mal em sua farda e cujo capacete ficava
balançando por causa das proporções, desenhadas por Deus em um guardanapo após
alguns drinks em demasia.
Agora, era um colosso de músculos, usando um paletó
branco aberto, oferecendo ao mundo a prodigiosa visão de seus abdomens. Deixara
crescer os cabelos em uma maneira que lembrava os caribenhos que Soares vira n’O
Novo Bahiano outro dia.
-Mas e então Soares? Como vai a vida de vigilante?-
disse, dando-lhe um tapa nas omoplatas.
-Doeu, porra! Brincadeira. (Não era.) Sei lá, acho
que o mercado tá saturado. Muita competição para pouco caso.
-Mercado, mercado. Viu, é por isso que queremos
acabar com essas porcarias sem-sentido, passar para algo mais evoluído.
-Uma sociedade sem mercado?
-Não só isso, cumpádi. Sem mercado, mas também sem
exploração do homem pelo homem. E sem mais-valia. E sem lucro. E sem esses
exploradores malditos, brancos sacanas!
-Cara... Eu sou branco.
-É eu sei, mas hà que fazer a distinção, tem
brancos e brancos... Os brancos, que tem o negro dentro deles, a alma negra,
partilham de nossa história, de nossa cultura! São explorados como nós!
-Não é só porque eu sou seu amigo, né?
-Distinguir isso dos brancos brancos! Os brancos do
mal, os exploradores! Que nos manipulam, querem fazer com que não sintamos
orgulho da nossa cor, que querem fazer com que sejamos brancos como vocês!
-Espera, ser como os brancos exploradores, ou como
os brancos explorados?
-Entende? Tenho a teoria de que vocês, brancos
negros, eram originalmente negros, mas que o marketing dos brancos brancos foi
tão bom que vocês quiseram virar brancos. É por isso que continuam sendo
explorados mesmo sendo brancos, por que, lá no fundo, não são! Você entende?
Entende? Entende...
Não adianta, pensou Soares. Ele tinha sido tomado
por pensamentos ideológicos ralos. E
ainda assim, dentro daquela carcaça de revolucionário, ainda morava, em algum
lugar, um grande amigo seu.
Marcelo fez um sinal, e o jovem armado deixou a
sala. Assim que ele foi longe o suficiente, suspirou mais uma vez. Alto.
-Soares. Você não pode acreditar como as coisas
mudaram, cara. Ter uma família... Me fez ver o que eu realmente quero. Se
amanhã à noite não der certo, eu vou pular fora dessa vida. Se amanhã fora der
certo, eu vou legar o resto à luta, e pular fora dessa vida. Cheguei em uma
encruzilhada, e os dois caminhos apontam pro mesmo lugar. Não existe mais
escolha. Essa luta irresponsável levou à destruição da única coisa boa que me
aconteceu nos últimos anos. Isso pode até ser egoísmo, abandonar a sociedade, a
minha causa, pela família, por causas pessoais. Mas se eu continuar, são eles
que vão sofrer, e não eu. Essa é minha sina; ou sacrifico os outros, ou
sacrifico os outros. Minha sobrinha foi só o aperitivo, vai piorar muito no
futuro. Nesse sentido, tenho que agradecer à FLB. Eles conseguiram o que o
governo não conseguiu: mostrar pra mim... Que eu não estava pronto. Não estou
pronto para essa luta. Que venha outro, e tome meu lugar.
Ao falar aquelas últimas palavras... Marcelo... Era
Marcelo? Era Cassius?
Ainda importava?
Ele pronunciara aquelas últimas palavras
recheando-as de emoção. Talvez estivesse no ponto de entrar em colapso, mas se
era isso mesmo, Soares não sabia. Após inflar como um balão de ar-quente
ideológico, ele estourara- e lá estava ele, de volta ao chão, aceitando sua
queda.
Aceitando. Resignando-se.
Havia uma graça e uma certa dignidade nisso- mas
Soares conhecia a verdade. A sua queda era artificial. A sua percepção do que
era real era baseado em condições irreais, criadas em linha de montagem através
de peças pré-fabricadas por um exército de ternos sem rosto; uma realidade
dentro de uma placa de Petri, condições de mentira que trouxeram uma revelação
verdadeira, cortesia de Doutor Orfeu.
Soares estava disposto à quebrar o espelho.
-Marcelo, não pegue o dossiê.- disse,
laconicamente.
-Porquê?
-Não tem nada de verdadeiro naquele dossiê.
O olhar de aceitação de Cassius rapidamente se
transformou em um de questionamento.
-Como assim? Co- você não compilou esse dossiê? O
que tem nesse dossiê? Você não fez o seu trabalho? Que porra está acontecendo?
Merda. Esqueci que ele ainda era ativista.
-Olha, não é bem assim, ééé-
Soares começou à soar frio. Em algum ponto da sala,
ouviu uma pistola sendo carregada.
Agora ele tem atiradores invisíveis? foi o que ele pensou.
Talvez estivessem em outra sala, ou talvez estivessem escondidos nessa mesma
sala atrás de alguma das placas de luz atrás da poltrona. Mas no calor do
momento, e calor mesmo dado o suor frio, atiradores invisíveis não pareciam uma
impossibilidade.
-Para quem você trabalha, Soares?
Soares permaneceu mudo.
-Eu perguntei... PRA QUEM VOCÊ TRABALHA?!
Sujou.
A seqüência lógica da conversa foi Soares escapando
pela porta, encostada.
Corre, porra.
As pernas de Soares tinham se amolecido após a
falta de exercício, ao longo de dois anos- mas a necessidade é mãe das
habilidades improváveis, então ele conseguiu atravessar metade da sala antes de
BANG
Um tiro. O sangue percorreu as veias de Soares no
triplo da velocidade normal, e o suor se escondeu sob a pele de medo.
Acertara o teto, e ele podia ver o buraco.
Continuou à correr. A porta estava perto.
Sangue correndo. Nenhum sangue nas paredes. Ainda.
Foi só se lembrar do que estava no seu bolso que
sentiu o cano em seu pescoço.
Não só um cano. O cano.
Virou-se para trás. Era a mesma criança magricela,
usando uma jaqueta militar.
Cassius adentrou a sala, estendendo sua pistola,
como uma extensão de seu braço andando mecanicamente, triunfalmente, o braço parado.
-Soares, Soares, quem te viu, quem te vê.- ele
chegou à dizer, com um sorriso que, em verdade, era mais parte de um baile de
máscaras do que um confronto com um amigo que acabara de traí-lo.
-Eu não achei que viveria para ver o dia em que
seria traído pelo meu melhor amigo.- ele disse, apertando o gatilho.
-Eu não achei que viveria para ver o dia em que
você seria preso.- respondeu Soares.
-Do que você está falando, Soares? Porra, essas são
suas últimas palavras, pelo menos diga algo memorável.
Soares soluçou, e, lentamente, tirou do bolso um
pequeno objeto opaco e piscante. Jogou-o no chão, e este rolou até Cassius.
-Marcelo, por favor, apenas por essa vez, me
escute: abaixe-se se quiser viver- disse Soares, respirando fundo.
Passos pesados. Alguém subindo a escada.
-Do que você está falando, cara? Melhor atirar em
você antes que posa falar mais m-
Um naco do ombro de Cassius explode, atirando
pedaços de sangue e carne pelo quarto. Dois tiros. Soares se abaixa. Cinco,
seis. O garoto se joga atrás de uma poltrona. Sete, oito, nove. Tiros nos sofás
e nas paredes. Dez, onze, doze, treze, catorze: Soares estendido no chão, não
vê mais nada, apenas ouve.
Passos pesados. Alguém entrando no quarto.
Soares abre os olhos. Tropa de choque. Soldados
cobertos de preto, da cabeça aos pés. O confronto é rápido. Os comunistas saltam de trás das poltronas.
Duram alguns segundos em pleno ar, brandindo suas Gatlings, batendo suas asas.
Abatidos como pombos, um à um.
Vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis.
A batalha é curta. Uma dúzia de soldados de cada
lado. Terminada a troca inicial de tiros, a tropa de choque vai para trás de um
sofá, depois outro, depois um terceiro, e executa os defensores, golpeando suas
cabeças, recheando-as de chumbo.
Segunda fase: os soldados apontam suas armas para
os cantos e se reúnem no centro. Se separam então com destreza e vão em grupos
de dois para as portas laterais. Um deles derruba com um chute, um outro
descarrega munição dentro de um quarto lateral. A luz pisca, dançante, dentro
das pequenas alcovas, antes de se extinguir. Manchas de sangue na parede,
braços jogados para fora. Uns (poucos) tiros de Gat para compensar os de
metralhadora.
Choro de bebês. Duram pouco.
No geral, a execução é perfeita. O balé da morte se
desenrola com plena fluidez de movimentos.
O público se levanta para aplaudir. Ah, pêra, não
fazem isso não, porque estão mortos.
Uma última alma foi carregada para fora dos
armários.
Soares não a estranhava. Seria Cleópatra?-
viraram-lhe o rosto. Era sim.
Passos mais pesados que os de toda a tropa ecoaram
no chão riscado da escadaria.
Uma silhueta escura entrou na sala, quase
engolindo-a no processo.
-Ora, ora- disse Orfeu, tirando seu chapéu Panamá,
que, ao contrário da maioria dos chapéus Panamá, era preto.-A roda finalmente
esmagou a borboleta. E você- ele disse,
se ajoelhando e levantando pelo queixo o rosto ensangüentado de Cassius. - Dr.
Cassius, eu presumo.
-Pra você é Cassius... Zumbi... Mandela...
Wesizwe.- disse o refém entre os dentes avermelhados, cuspindo sangue.
Orfeu se fez de sério, e deixou cair-lhe o queixo,
e a cabeça foi junto.
-Que charmoso- disse, sua voz sendo abafada pelo
leve ruído da cabeça batendo no carpete.
Soares logo sentiu a sua mão fria em seu ombro.
Como ele conseguia senti-La mesmo debaixo do sobretudo, era algo que nem mesmo
ele entendia.
-Vamos lá, parceiro- disse Orfeu- Agora nos mostre
como ficou famoso.
A testa de Soares se encheu de suor. Espera, não
é disso que estão falando, né?
-É, Orfeu... Não sei se estou entendendo onde você
quer chegar.
-Ora, ora, Soares- Orfeu riu, tirou os óculos e,
enquanto limpava-os, encarou Soares bem nos olhos. Se seu rosto era
desproporcional à seu corpo, e seus olhos eram desproporcionais em relação à
seu rosto, ocupando o dobro do espaço normal, o mesmo poderia ser dito de suas
pupilas- mas de maneira oposta. Eram tão pequenas que pareciam perdidas naquele
mar de branco, e ainda assim, Soares sabia que elas olhavam até as profundezas
de sua alma.
-Ora, Soares. Porquê você acha que, entre todos os
detetives de Salvador, alguns muito bons, nós escolhemos logo você? Estamos
cortando custos. Não estávamos à procura de um detetive, na verdade, nem
precisávamos de um, já que não havia mistério para resolver. Não, não. Não
estávamos à procura de um detetive. Estávamos à procura de um torturador que
cobrasse barato.
Marcelo cuspiu sangue.
-há, há, ha! O grande Major Soares, melhor
torturador deste lado dos porões da CIA, está do lado de vocês agora, né? Pois
bem, é melhor tirarem o cavalinho da chuva. Major pode até ter me entregue para
vocês- e eu não sei o que vocês usaram pra convencê-lo disso- mas ele nunca,
nunca torturaria um amigo.
-Ah, é mesmo?
Orfeu fez um sinal com a cabeça. Um dos soldados da
tropa de choque prontamente apontou sua metralhadora para Soares.
-E agora, que tal? Soares, vai colaborar com a
nossa equipe? Vai mostrar seus dons para gente?
Marcelo tremia.
-Soares, não faz isso não, cara... Por favor deixa
eles me matarem, eu sou seu amigo!
Soares engoliu em seco.
-Me dêem uma mesa, e coloquem ele em cima dela.
Marcelo soluçou, e as lágrimas misturaram-se ao
sangue espalhado por seu rosto.
-NÃO! Cacete, Soares, porque?!
A tropa de choque foi rápida, como de costume.
Pegaram uma mesa de fórmica que estava no canto, empurraram os sofás e a
puseram no centro, tudo em menos de um minuto.
-Certo, agora amarrem ele.
-É bom que eu me preveni em relação á isso- disse
Orfeu. - Ô Santos, pega a corda.
Marcelo agora estava amarrado à mesa, com os seus
braços esticados pendendo para fora.
-Okay, agora diga-me o que eles querem saber, ou eu
quebro os seus braços.
-Droga, Soares...
-FALE!
-Mas... Mas eu...
-Eu falei para falar, não balbuciar! Você por acaso
me viu pedindo pra você balbuciar?!
Soares se abaixou. O primeiro objeto que viu foi o
rifle do garoto. Este agora tinha uma enorme bolha de sangue no lugar do olho.
Golpeou Marcelo com o rifle, bem no diafragma. Este
tentou gritar, mas tudo que saiu de sua boca foi um ganido fraco, e um filete
de sangue que escorreu pelo lado.
Soares se transformara, de uma figura polida,
reservada ainda que ligeiramente irreverente, em um homem impassível, rígido,
que falava de uma forma fria, monótona e ríspida, soltando ocasionais bombas
verbais.
Soares já adotara aquela máscara muitas vezes, e
por tanto tempo que ele se perguntava às vezes se era mesmo uma máscara.
Houvera uma época em que ele a usava o tempo todo.
Mas se havia um motivo pelo qual Soares temia a
máscara, era porque talvez houvesse um motivo para elas se tornar tão
prevalente na sua vida. Talvez, lá no fundo, ele gostasse do que estava
fazendo.
-Vamos, agora fale! Fale, com palavras
inteligíveis, em bom português, ou eu vou continuar. Não quero continuar.
Afinal, isso dói mais em mim do que em você.
Marcelo cuspiu sangue. Tentou atingir Soares, mas o
líquido acabou indo parar em seu tronco.
-Charmoso- disse Soares.
Soares recuou e andou até Orfeu.
-Me dê um balde de água, e um pedaço de pano.-
sussurrou.
Orfeu fez o sinal, e Soares voltou até Marcelo.
Chegando na frente da mesa, calmamente sentou-se no
braço de Marcelo. Este começou à bufar e á emitir um gemido rouco, enquanto as
lágrimas escorriam de seu rosto.
-Vamos fazer uma coisa diferente, que tal? Passei
tanto tempo com você e ainda não sei a sua história de vida. Que tal você me contar
tudo sobre a sua infância, sua família, o seu primeiro dente à cair e todas
essas outras histórias super interessantes?
-Por favor... Tenha piedade...
-Daí, quando você terminar, eu me levanto.
-Hmmmphhh...
-Ou, deixa eu ver, tem um jeito mais fácil. Você
pode me contar logo o que nós queremos saber.
Soares viu, com o canto do olho, o soldado da tropa
de choque chegar com o balde e o pedaço de pano.
-Mas... Mas...
-Fale logo, Marcelo, ou eu vou ser forçado à usar o
pano, e você não vai gostar disso. Eu te garanto.
-Mas...
-FALE!
-Mas... Eu não sei... O que vocês querem de mim.
Soares olhou para o teto, pensativo, coçando o
queixo. Marcelo lacrimejava pesadamente. Soares podia sentir o seu braço
cedendo sob o seu peso.
-É verdade, é verdade, você tem um ponto- disse
Soares, se levantando. -Pois bem, o que queremos de você é simples: a
informação sobre o que vai acontecer amanhã à noite.
Marcelo sorriu de leve, um sorriso irreverente
entre as lágrimas de dor.
-E você acha mesmo que eu vou contar para você?
-É pra essas e outras que eu tenho o balde.
Soares em gestos mecânicos, ensaiados, fruto de
anos de prática, dispôs o pano sobre o rosto de Marcelo. Uma mancha vermelha
logo se formou sobre a brancura suja de nhaca do pano. A sua respiração ficou
mais pesada.
-Tenha bons sonhos, Cassius- disse Soares, erguendo
o balde por cima da cabeça de Marcelo.
-É UM SHOW!
A entonação foi tão estranha e a dicção tão súbita
que Soares pensou ter entendido errado e, na verdade, não sabia de onde tinha
vindo aquele grito.
-É... Cassius? Foi você mesmo quem disse isso?
-É! É UM SHOW!
-Peraí... Um show?- disse o soldado que tinha
trazido o balde.
-Eu ouvi corretamente, ele disse um show, Soares?-
disse Orfeu.
-É, Cassius, você mencionou mesmo um show?
-É claro que sim, imbecis! É um show! É um show!
-Mas, espera, Cassius, que tipo de show, vai ser
tipo, uma operação para encobrir alguma coisa ou...
-Não, porra! É um show! Um show de rock
tropicalista e contestação! Estamos reunindo uns artistas duca pra fazer um
espetáculo pra toda a população e a gente de repente vira os inimigos número
um! É impressionante essa porra! Impressionante!
Soares olhou para o soldado e para Orfeu. Orfeu
olhou de volta, e Soares deu de ombros. O soldado olhou para Orfeu, daí virou o
olhar, mas a virada foi muito súbita, e logo Orfeu estava olhando para o
soldado. O soldado tentou disfarçar a olhadela que havia dado, mas percebeu que
Orfeu estava lhe olhando, então logo começou à olhar de volta. Olhando o
soldado com aqueles olhos minúsculos de feijão preto, Orfeu apontou, em um tom
acusador.
-Soldado... Você por acaso tinha alguma noção de
que isso ia acontecer?
O soldado permaneceu plácido. Seu corpo permaneceu
parado, mas seu olhar se dirigiu à outro lugar.
-Soldado, responda!
O soldado engoliu em seco, e seu corpo se retorceu,
enquanto seu olhar dessa vez permaneceu fixo em Orfeu.
-Bom, chefe, estavam rolando alguns rumores lá na
comunidade...
-Comunidade não. Quantas vezes eu vou ter que te
ensinar? Você mora num barraco. BA-RRA-CO. Vê se aprende.
O soldado engoliu em seco de novo.
-Certo, chefia. Em todo caso me falaram que era
possível que a Nara Leão, o Raulzito e o Caetano Veloso fossem voltar do
exílio. Me falaram que eles iam fazer um show, lá no Fonte Nova.
Orfeu pigarreou, cruzou os braços atrás das costas
e andou até o canto da sala, pensativo. Ou, ao menos, era a imagem que passava.
-Interessante. Interessante, soldado. E, diga-me,
essas fontes tão boas, tão confiáveis, te contaram quando ia acontecer o show?
-... Amanhã... Senhor.
Danou-se, pensou Soares. Aos poucos, ele começou à se
distanciar da conversa, figurativamente e literalmente, andando para trás.
Olhando para baixo, viu um revólver na mão de um cadáver de uma moça, que devia
ter por volta de 16 anos. Carregava uma pequena manta consigo.
Pegou o revólver da mão da moça. Sentiu uma pequena
resistência. Rigidex Mortis, só pode ser, lhe ocorreu. Ainda assim, o
efeito era perturbador, e ele evitou olhá-la nos olhos, ainda abertos, vazios,
vidrados.
-Que interessante, soldado- continuou Orfeu,
pigarreando- E você, sabendo que era o plano dos comunistas realizar um grande
evento nesse mesmo dia que a droga desse show com a droga desses seus artistas
de merda ia acontecer, não pensou em contar nada pra nós?
O soldado hesitou por um segundo.
-Eu... Queria muito ir ao show, Capitão- sussurrou.
Só então Soares notou que Orfeu tinha dado
meia-volta e adotara uma posição inclinada e ameaçadora, sobre o soldado.
Parecia estar prestes à esganá-lo.
- É... Bom ouvir isso, soldado. É bom saber que o
senhor tem uma falta de consideração por nós grande o suficiente para pôr toda
a operação, e na verdade, o andamento dessa guerra, em perigo.
Fez uma pausa breve, e continuou:
-Soldado, quando terminarmos essa operação, pode
entregar o uniforme, você será transferido das operações de campo para o
trabalho de apoio no escritório, com um corte no pagamento equivalente às suas
ações irresponsáveis.
O soldado começou exibindo uma cara de decepção,
mas logo esta metamorfoseou-se em solidez resignada.
-Certo, capitão.
-É assim que eu gosto, menino. Digo, é assim que eu
gosto dos meus meninos. Bom, voltando ao assunto: Que história é essa de show?
-É a porra de um show!- gritou mais uma vez
Marcelo, a voz falhando nas últimas sílabas.
-Tá, já entendemos. Sabe, sujeito, podemos ter uma
conversa sem precisar de palavrões, afinal somos todos adultos aqui. Peste.
-Tá certo, tá certo. E então, mais alguma coisa que
vocês queiram saber?
-É... Não, na verdade. Mas você disse, Estádio
Fonte Nova?
-Não.
-Eu... Tenho certeza que você disse Estádio Fonte
Nova. Soares, pendure-o pelos mamilos.
-NÃO! NÃO! ESPERA! Eu estava sendo engraçadinho. É
que foi o seu soldado que mencionou o Fonte Nova. É, vai ser lá mesmo. Amanhã.
Às 7 da noite, mas é bom chegar mais cedo, senão lota rápido.
-Olha só, ele estava sendo engraçadinho. Que legal.
Bom, isso é ótimo, é tudo o que queríamos saber. Um show. Que excelente, não?
Nara Leão. Saudades dela. Pena que agora ela só faça músicas políticas
maçantes, mas bom, acho que é o destino de todos os artistas hoje em dia.
Realmente excelente.
-Ham...
-Ora, pois não, prisioneiro? O que quer?
-É tudo o que vocês querem?
-Ora, ora, mas é claro, prisioneiro! Afinal, você
nos contou tudo o que queríamos saber sobre a sua pequena operação secreta. Pra
que continuar torturando alguém que já disse tudo o que sabia? Por isso mesmo,
liberaremos você.
Orfeu pôs a mão no bolso. Em um movimento simples,
ágil, mecânico- da forma como só Soares conhecia à perfeição- ele a retirou, e
algo veio junto. Soares mal teve a oportunidade de emitir qualquer som antes do
soldado apontar seu rifle para ele.
-Bem-vindo à liberdade, camarada- disse Orfeu.
Vinte e seis.
A cabeça de Marcelo Wallace deveras jazia sobre a
mesa de fórmica, um naco à faltar, enquanto o pano enrubescia. Soares caiu de
joelhos, e, olhando para baixo, só então viu as gotículas de sangue que tinham
espirrado em seu sobretudo.
-Mais um dia, mais uma missão cumprida- declarou
Orfeu, exibindo um sorriso largo repleto de dentes maciços, soprando então seu
revólver.
- Okay, agora diga para os outros entrarem. Diga
que já é hora de queimar a casa.- disse, fazendo um sinal genérico com a mão
para o soldado.
-Seu... Seu merda!- Soares se levantou. Logo, logo,
se arrependeu disso: Okay, merda, agora danou-se de vez foi a primeira
coisa que pensou, enquanto o braço que apontava para Orfeu tremia.
Orfeu virou a cabeça para Soares e tirou os óculos,
mudando as configurações para sorriso sarcástico e olhar inquisitivo. E aqueles
olhos. Merda, e agora ele tá me encarando de novo, pensou Soares.
-Pois não, Soares, que protesto você tem à fazer
quanto à essa situação? Sua opinião, você sabe, é muito importante para nós.
Seus olhos falavam sozinhos, duas bolas de cristal
brancas, nas quais Soares podia se ver refletido.
-Porra cara... Pára de encarar a minha alma- disse
Soares, timidamente.
-Desculpa, não sei se entendi.
-Deixa pra lá.- Os soldados começaram à entrar no
apartamento com tanques de gasolina, em uma corrida mal-coreografada.
-Isso era tudo parte do plano, não?- disse Soares.
-De certa forma sim. Quer dizer, claro que seria
ótimo poder resolver isso tudo só na base do nosso plano A, que, diga-se de
passagem, não envolvia nenhuma morte. Mas, é claro, eventualmente, toda
operação termina em derramamento de sangue. Levando isso em conta, a operação
de hoje não foi um fracasso, quer dizer, pelo menos ninguém da corporação
morreu. Entenda, sua parte na operação foi vital e seria vital de qualquer
maneira. Se entregasse a pasta e descobrisse a operação, seria vital. Se fosse
capturado e servisse como dispositivo legal para que entrássemos nessa casa e
detonássemos esses terroristas sem problemas, também seria vital. Apenas calhou
de acontecer a segunda situação, e, embora seus dons como torturador tenham sido...
Menos necessários do que eu imaginava, você sabia que a tortura da água exercia
um poder persuasivo particular sobre o nosso terrorista, o que não é algo que
eu teria necessariamente pensado. É essa a verdadeira mágica dessas operações.
Todas as peças acabam caindo no lugar. Algumas vezes, só precisamos dar um
empurrãozinho, mas no geral, as coisas acontecem como devem. Tudo que eu
preciso fazer é mapear as situações potenciais, e pensar em respostas. Planos
B, C, Z se for necessário. Para minimizar os riscos, reduzir o improvável ao
impossível. Em suma, nosso trabalho é apenas reconhecer a realidade potencial e
integrá-la na realidade. Manter as engrenagens girando, tudo de acordo com o
plano. E sabe? No geral funciona. Quer dizer, a história, como a água, pode
fluir para fora do rio, na verdade pode se afastar a quilômetros dele, mas no
fim, ela sempre acaba indo para o mar.
O discurso se desenrolou enquanto prosseguia a
sinfonia de soldados espalhando gasolina pela casa.
-Eu... Não entendi- disse Soares.
-Haha, é claro que não- disse Orfeu, pondo seus
óculos escuros de volta. - Desculpe, é que às vezes eu me empolgo com a
filosofia.
Soares ficou sem saber muito como continuar aquilo.
Tentou evitar olhar para o pano vermelho sobre Marcelo.
-Bom... O que fazemos agora, então?
-Ah, é simples- respondeu Orfeu- eu tranco você
aqui, e você morre junto com os outros no incêndio.
-Mas eu... O que?!
-Ou, se você preferir, eu dou um tiro em você. O
que for menos doloroso.
Soares começou à andar para trás, reversamente
impelido pelo medo. Rapidamente, chegou na parede, e não deu para continuar
depois dela.
Orfeu estava com uma arma apontada.
-Pobre Soares... Acabou se entregando com tanta
facilidade, quase sabotou toda a operação. Você é muito tolo se achava que eu
deixaria você falar com o Cassius sem nenhuma precaução. Aquele dispositivo
sinalizador de controle remoto que eu te dei? Tinha um gravador embutido.
Soares olhou para o pequeno dispositivo bege com
uma luz vermelha piscando na ponta.
-E olha que você é detetive. Mesmo assim, nem
consegue detectar um gravador quando vê um. É mesmo o pior detetive de
Salvador. E agora, tem últimas palavras à nos dar? De preferência, melhores que
aquelas que deu para o seu amiguinho.
Soares gaguejou.
-Eu... ham... gagh...
-Serve para mim- disse Orfeu, pondo o dedo no
gatilho.
-NÃO! Não! Você... Como ousa fazer isso... Executar
civis desarmados à torto e à direito... Matar 12 pessoas por causa da droga de
um show! Qual é o seu problema?! Você... Você quebrou todas as suas promessas!
-Promessas?- Orfeu soltou uma gargalhada exagerada,
quase histriônica, e curvou-se por alguns segundos. Enquanto isso, o soldado
levantou a arma.
-Promessas... Bom Soares, primeiro vamos ignorar a
infantilidade inerente nessa declaração. Segundo, porra, Soares, é óbvio que eu
dou valor às minhas promessas. Promessa é dívida. Mas, no final do dia, ainda
estamos no país mais endividado do planeta. Então, o que é mais uma dívida em
cima de todas as outras?
Danou-se. Não, pera, é pior até do que isso. Fodeu.
É, fodeu.
Orfeu tirou do bolso uma das pequenas pílulas
vermelhas que engolia em série, e enfiou a garganta abaixo, enquanto seu
pescoço se inchava e se retraía novamente. Estalou seu pescoço dos dois lados,
e, com um sorriso no rosto, disparou o gatilho.
*Click*
Soares abriu os olhos. Nada. Orfeu se frustrou,
apertando o gatilho várias vezes, com sua larga e sebosa testa se contraindo e
fazendo formatos curiosos. No fim, jogou a arma para longe, e, fingindo um
sorriso, disse:
-Hehe. Pequeno imprevisto. Soldado, atire nele.
Porra Soares, rápido, pense em alguma coisa.
Lembrou do bolso e do peso que sentia nele. A idéia
correu pelas suas sinapses e produziu um efeito semelhante à um choque elétrico
nas costas.
-Uh... Não tão rápido!- disse, e sacou sua pistola.
Muito desajeitadamente.
Por enquanto, serve.
Para efeito de aumento da dramaticidade, é
recomendado ao leitor que imagine o segmento seguinte em câmera lenta.
-Foda-se essa merda!- disse Soares, ajeitando a
pistola, por meio de... Jogá-la no ar.
-É, foda-se essa merda! Rebaixamento é o caralho!-
disse o soldado. Soares ficou confuso, e se atirou no chão para evitar o pior.
A gravidade, depois de dar um café-com-leite para a
arma, começou à exercer-se sobre ela. Outra arma era apontada para Orfeu: a do
soldado.
Terceiro movimento. Orfeu é bem mais habilidoso e
ágil que qualquer soldado fã de Nara Leão. Movimento mecânico do braço para
cima.
Acerta a arma 0.04 segundos antes do disparo, o
suficiente para virá-la num ângulo de 20 graus para cima.
A pistola de Soares chega no chão, e a gravidade
está muito satisfeita com seu trabalho.
É uma arma automática, e o baque que sofreu ao
chegar no chão é suficiente para que vários disparos ocorram.
Orfeu é um agente habilidoso e ágil, mas não ágil o
suficiente para escapar de balas; pelo menos, não conscientemente. A sua
posição de defesa para se desviar da arma do soldado envolve abaixar seu centro
de gravidade e torná-lo mais sólido para derrubar seu oponente mais facilmente,
um truque que aprendera nas aulas de judô do Serviço de Proteção à Pátria. Essa
tática permitiu-lhe, sem que ele soubesse, desviar das balas disparadas pela
arma de Soares, que porém, acertaram a parede, parede esta que, além de já
estar coberta de balas, a coitada, tinha sido coberta por produtos oleosos,
como sangue de bebês, e a gasolina que os soldados de Orfeu haviam despejado.
Tudo convergiu em um movimento final de grande
beleza. Soares desabou e sumiu para dentro de uma das alcovas do apartamento. A
arma do soldado atirou para cima, pegando a testa de Orfeu de raspão,
destruindo seus óculos. Orfeu, por sua vez, derrubou o soldado com um chute, e
este caiu em um dos sofás, o que, em outras circunstâncias, não seria tão ruim,
se ele já não estivesse pegando fogo, por causa das balas que atingiram a
parede.
Soares não tinha noção, porém, da deliciosamente
caótica peça que acabara de criar. Estava mais preocupado em correr pela sua
vida.
Cacete cacete fugir fugir fugir
porraondetemumasaída
Correu para dentro da alcova, tentando se levantar
em um movimento mal-preparado e desastrado com os braços e as pernas em
alternação, caindo repetidamente.
Também guardou um segundo para perceber como aquela
parte da casa era tão mal decorada quanto o resto.
O apartamento, além de sua feiúra, também tinha
como característica o fato de ser bem mais complexo do que á primeira vista.
Consistia de um emaranhado de corredores que, na maioria das vezes, não davam
em nenhum quarto; apenas em alcovas muito semelhantes àquela pela qual ele
havia entrado, todas com uma pequena porta de persiana branca. Era, talvez, o
labirinto de pior gosto estético já criado, mas relativamente útil como sede de
uma organização terrorista.
Soares já podia sentir o cheiro da fumaça, quando
abriu uma das milhares de portas e se deparou com algo... Diferente. Não um
quarto, não um armário de vassouras, só o escuro.
Alguém se esquecera de instalar o elevador.