terça-feira, 20 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 15

Capítulo 29



Pela primeira vez Rafael e Camilla entraram juntos na Editora Saber do Povo. Decidiram que, como estavam acordando ao mesmo tempo para tomar café da manhã juntos, era mais prático deixarem de lado o velho hábito de chegar com um certo espaçamento, sendo o atraso sempre de Camilla.
Os mesmos rostos deprimentes povoavam a sala de espera, mas Camilla não sentia mais desprezo por eles. O que sentia? Pena? Talvez. Seus sentimentos ainda eram poeira no ar no momento, como quase tudo; Camilla esperava pacientemente a poeira assentar.
Após receber um velho professor de Filosofia da Universidade Zumbi dos Palmares, que apresentou a ela um tratado sobre o “socialismo pós-moderno”, cuja atenção acadêmica certamente seria inversamente proporcional à vendagem de cópias, viu D’Este entrando pela porta, abrindo-a e fechando-a com pouca cerimônia.
-Vamos falar do seu livro, Camarada D’Este - disse  Camilla, pulando as formalidades, para a surpresa do próprio D’Este, que estendeu um sorriso beatífico.
-Eu diria que acho um bom livro, mas eu sou suspeito – ele disse, dando de ombros.
-Verdade, verdade – disse Camilla, acenando como que para se desvencilhar daqueles comentários anódinos. – Tenho que realmente lhe fazer a pergunta: Essa hstória é baseada em fatos reais?
-Pois não? – disse D’Este, surpreso.
- É isso mesmo. Até que ponto essa é uma  história de ficção, e até que ponto é verdadeira?
D’Este coçou a sobrancelha com o dedo indicador enquanto sorria.
Porra, ele nunca pára de sorrir.
-Depende o que você entende por ficção e realidade.
-Como assim?
-Afinal de contas, talvez você tenha notado que eu sou um pouco mais velho que você. Eu vivi aquela época. Na verdade, era um pouco mais jovem naquela época do que você é hoje, e morava aqui quando a cidade foi conquistada.
Camilla assistia aquilo, impassível. D’Este continuou:
-A questão é, a ficção pode ser mais que uma aproximação? Afinal se eu estou inserindo personagens fictícios na história, eu já estou alterando-a de uma forma, o que torna a expressão “romance histórico” um oximoro. “Aproximação” é realmente a melhor palavra, já que estou descrevendo coisas que não aconteceram, mas poderiam ter acontecido. A história que eu estou mostrando não é, em nenhum aspecto, verdadeira, e no entanto não podemos negar os paralelos que existem entre ela e a verdadeira história. Mas o que é a verdadeira história? Não presenciamos a história cada um sob um ponto de vista diferente, influenciados por nossos pais, por onde moramos, por aquilo que lemos ou deixamos de ler enquanto crescemos? A conclusão evidente disso é que não existe verdade que possa realmente ser captada por nós. Nós passamos nossas vidas como em um museu; alguns vêem a obra de arte à sua frente à um metro, outros à dez metros, um outro à poucos centímetros. Alguns vêem borrões, enquanto outros vêem a nítida imagem de dois cavalheiros sentados na grama ao lado de uma carnuda dama nua; porém todos estão olhando para a mesma pintura.
-Ok, espera um pouco, isso é bobagem – desmereceu Camilla, com um aceno de desprezo. – Tudo que eu perguntei é se havia elementos de verdade no seu manuscrito.
-Os elementos verdadeiros você já conhece, a tomada da cidade, por exemplo – disse D’Este, pigarreando.
-Não é disso que eu estou falando. Estou falando da narrativa central. Isso tudo aconteceu? - Camilla despejava as palavras com rapidez. Um ódio súbito por aquela figura sorridente e brincalhona lhe acometera.
-Isso importa realmente? – disse D’Este, exultante.
Camilla sentia que a qualquer momento, alguma veia sua iria estourar. O sangue lhe subiu até a testa.
-É CLARO QUE IMPORTA! – Camilla explodiu, atirando folhas do manuscrito ao céu. Desta vez, o bonachão D’Este, homem de uma expressão só, mostrou-se abalado e desnorteado, sendo tomado por uma súbita palidez.
Camilla respirou fundo. – É claro que importa! Eu só consigo justificar a existência do seu maldito livro se ele tiver algum embasamento. Ninguém está aqui para desconstruir a história. O Partido sabe muito bem o que aconteceu no passado, não precisamos de ninguém para reescrevê-lo. Se o que você quer é contar uma história de ficção marota pra desvendar um mistério do passado com base em mera especulação, então eu recomendo que vá embora, pois o seu livro não tem propósito social.
-Uma coisa você acertou – disse D’Este, se levantando e indo em direção à porta, como se já previsse sua expulsão dali. – Esse é um livro de ficção. Mas nem por isso ele é mentira.
Camilla franziu as sobrancelhas, e pegou, antes que caísse, um papel que se colara em seu cabelo.
-A verdade é inacessível, você concorda comigo?
-Não mesmo. Todo mundo sabe o que aconteceu nos eventos que povoam a história. Todo mundo sabe as causas da guerra e de nossa Revolução.
-O que você está falando é de eventos que ocorreram, e todos concordamos que eles ocorreram; mas o evento não é percebido de forma individual? Existe, portanto, uma forma de se chegar à verdade? Se a verdade é inatingível, ela existe em qualquer sentido que realmente importe? E principalmente, se não temos acesso à verdade, como saber se ela de fato existe? Nesse sentido, toda realidade, todo fato consumado, contado e recontado, não passa de uma história. E, se somos apenas indivíduos em um cenário de faz-de-conta, o que dizer de nossa vida? O que ela é?
Camilla permaneceu atônita.
-Ficção. Vivemos uma ficção tão irreal quanto um livro, e somos tão reais quanto Soares e o soldado americano. Nesse sentido, se eu pusesse um hipopótamo amarelo falante nesse livro, ele seria tão real quanto qualquer documentário.
Camilla engoliu em seco, mas já estava pronta para responder à altura.
-Camarada D’Este, no seu mundo, a realidade pode ser uma mentira e podemos ser todos personagens de ficção, mas o mundo real é feito de regras, regras como as do Partido. E as regras do Partido são claras no que diz respeito a obras que retratam a Revolução. Infelizmente, pela falta de qualquer conteúdo edificante em sua obra, e documentação inadequada da realidade, eu não terei escolha senão recusá-la.
Sem dizer mais nada, D’Este deu meia-volta e deixou o escritório.

Camilla respirou fundo e deu uma olhada pelas folhas espalhadas ao seu redor. Esbarrou o olhar no manuscrito de “O socialismo pós-moderno”, pendurado no canto de sua mesa. Sem pensar duas vezes, jogou-o na lixeira de metal sob a mesa.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 14



Capítulo 10


Tinha uma cidade no meio do caminho.
No meio do caminho, tinha uma cidade.
Bum, não tem mais.
Eu estava no ponto de impacto. No epicentro do terremoto. No local onde antes havia uma cidade, onde antes havia um exército, onde antes havia Django. Não hà mais.
Quando a poeira baixou finalmente podíamos ver a escala do estrago que os B-52s haviam provocado naquele recanto de deserto esquecido por Deus e povoado por homens. De fato, nada havia sobrado, apenas as famílias vagando por aí, observando o traçado no chão, que antes separava o mundo frio, ainda que implacavelmente quente, do lar, aconchegante embora exíguo.
Andei com os poucos sobreviventes até onde, podia ver, um helicóptero havia pousado. Um resplandecente veículo de metal em meio à tantas carcaças chamuscadas, ele só poderia ter chegado mais tarde.
Meu andar foi atrapalhado de súbito. Normalmente, isso não seria nada, eu pensaria ser alguma mosca ou um desses insetos miseráveis das terras tropicais, ou só o suor, grudando a roupa na minha pele, mas a vida dura e as batalhas tinham endurecido meu coração, diminuído minha paciência, e fortalecido minha paranóia.
Me virei para trás, e era uma mulher, coberta de poeira, agarrando a minha farda. Wright teve a sábia decisão de dar uma coronhada nela com o rifle, mas o fiz parar. A nossa reputação já havia sido destruída pelas bombas, não precisávamos de mais violências contra civis naqueles dia.
O rosto da mulher não me era estranho. Ela começou à gesticular com os braços e falar algo bem rápido na língua local, e só então pude ver que se tratava da camponesa do burro. Uma criaturinha puxou e amarrotou o seu vestido; era sua filha, feia e ainda por cima coberta de poeira.
Foi aí que Shorty interviu, e as palavras que ele disse provavelmente mudaram a minha vida. Não sei se me recordo muito bem, mas foram algo bem próximo de:
-Precisa de tradução, senhor? Eu posso traduzir português.
Shorty, talvez você se lembre, não só tinha a vantagem de ser o mais alto do grupo e, portanto, de ter um apelido irônico, como também havia sido hippie nos anos que haviam precedido sua conscrição no Exército. Talvez mais importante até do que isso, namorara brevemente- embora por uma quantidade de tempo considerada conservadora por seus colegas- uma garota brasileira que fazia parte do movimento pacifista. Isso não só aumentou sua reputação entre os hippies- pois ele estava namorando uma garota engajada, e ainda por cima, da nação que estávamos pacificando!- como o introduziu na nobre arte do bilingüismo. Eu evitava pedir a sua ajuda porque eu mesmo estava tentando aperfeiçoar o meu português, mas no momento, estava perdido em uma avalanche de Oxentis. Shorty iria servir.
Fiz que sim e ele iniciou sua tradução simultânea, não exatamente simultânea, pois Shorty escutava um trecho curto do que ela tinha à dizer e então traduzia.
-Ela disse, “Desculpa, desculpa”. Parece estar extremamente arrependida de algo. Está... Arrependida. Ela disse que a distração foi combinada com os jovens.
-Os jovens? Como assim?
-Não sei, está falando dos jovens que vieram armados. Sem dúvida, são os comunistas. Espera. Eles chegaram faz um mês. Ameaçaram a cidade, com armas. Muitos homens foram levados. A cidade virou uma cidade de mulheres e crianças. Eles seriam devolvidos quando a cidade conseguisse emboscar os ameri... Nos emboscar. Droga, cara! A merda dessa cidade nos emboscou!
-Volta, volta. O que ela disse sobre os homens da cidade?
Mais monólogo. Mais tradução.
- É isso que ela disse mesmo. Todos os homens da cidade... Foram levados. Era isso, ou a cidade inteira ser massacrada.
-Bom, acho que a escolha deles deu na mesma, então.
-Cala a boca, Wright. Os homens foram levados. Para um esconderijo, lá no... Bom, é uma palavra que você não conhece, senhor, mas significa o interior rude dessas terras. Se diz Sertão. O marido dela era um deles. Ela apenas o queria de volta, e por isso deu o aviso para que o ataque começasse. Ela pede desculpas. Está muito arrependida de nos trair, mas ela não tinha culpa, só queria o marido de volta. Ah, e está dizendo que, se matarmos-a agora, ela morreria feliz.
-Tá certo- disse Sykes, que raramente abria a boca, e quando o fazia, era para falar algum absurdo homicida. - Façamos isso mesmo, se é o que ela quer.
-NÃO! Está maluco?- segurei o rifle de Sykes. Para meu choque e surpresa, ou talvez nem tanto, ele havia apontado o rifle para a menininha. A mulher, compreensivelmente, recuou, apreensiva.
-Pergunte o nome dela- disse.
Shorty perguntou e ela respondeu. Não precisei de tradução. Pepé. Um nome breve, curto, sucinto. Duas sílabas; a boca se abre num estalo, se fecha, e depois repete o movimento em um estalo, em um instante. Conforme descobri depois, “Pepé” era na verdade um apelido para Penélope.
Tudo fazia sentido. Pepé perdera o marido. Nos traiu; em troca, destruímos a cidade dela.
Mas quem exatamente destruiu? E porquê? E porquê levar Karl Django desta para melhor?
Assenti com a cabeça diante dos lamentos de Pepé e continuei andando. Sua história era muito triste, mas todos tínhamos histórias tristes. Eu poderia contar da vez em que eu e meus pais viajamos para as Cataratas do Niágara- se não me engano, foi na mesma viagem em que fomos para o Arizona- e eu tive que ficar no carro, pois estava com gripe, e minha mãe não queria que eu piorasse com o frio e a umidade das quedas- mas isso entediaria vocês.
Continuei andando rumo ao helicóptero, acompanhado do meu próprio pelotão. Não era grande, e na verdade não chegava á ser um pelotão, mas era composto de soldados valorosos, que haviam resistido à onda após onda de comunistas naquela diminuta torre.
A porta do helicóptero se abriu, e um homenzinho desceu, caminhando por alguns instantes em meio aos cadáveres. Reconheci-o rapidamente. Era o Coronel Sutherland, à quem eu encontrara havia alguns dias em Natal.
-Senhor Coronel, Senhor- fiz a posição de sentido para a bunda do homem. Ele se virou e fingiu surpresa ao me ver. Não, não, pensando bem, havia algo de genuíno em sua surpresa.
-D-Descansar, soldado- disse o Coronel, ainda à procura de palavras que pudesse expelir.
-Senhor Coronel, preciso perguntar algo. O que exatamente aconteceu nesse vilarejo?
-Ora, tenente, o senhor não pode ver? Um pequeno desastre. Acidentes desse tipo acontecem. Mandamos vocês por uma estrada que julgávamos ser segura, mas, afinal de contas, não era.- ele disse, por trás de um sorriso amarelo e um farto bigode.
-Senhor, com todo respeito, isso não foi uma simples emboscada. Havia centenas de comunistas nessa pequena aldeia, mais do que vimos em toda a campanha até agora. Conseguimos informações com os habitantes locais, que indicaram que este pequeno exército estava instalado aqui havia um mês. Senhor, isso significa uma coisa e uma coisa apenas: eles sabiam que viríamos.
O rosto do coronel se contorceu em uma careta. Entre as suas bochechas pastosas, sua boca fina emitiu sons.
-Você tenha cuidado com o que diz, moleque. Eu ainda sou seu superior. Essa é uma tragédia, um erro tático, mas, como resultado dela, o Tenente... Django será lembrado como um mártir de nossa causa. Este não é o momento para acusações vãs e discussões internas. Estamos em guerra, e devemos nos unir se quisermos sobreviver, pois estamos no mesmo barco. Agora, entrem no helicóptero, vamos tirar vocês daqui e mandá-los para Salvador. Sem dúvida, serão condecorados por bravura.
Abaixei a cabeça e andei até a porta de correr que se abriu diante de mim. Havia recebido reprimendas antes, mas poucas haviam sido mais frustrantes que esta. Enquanto pisava nos primeiros degraus, o Coronel inclinou-se e sussurrou na minha orelha: “Eu já rebaixei muitos contestadores antes, e rebaixar mais um não vai me custar nada.”
De repente, aquelas palavras ecoaram, e, talvez diante da visão do helicóptero, ou de alguma outra coisa capaz de induzir epifanias, um pensamento me correu pela mente, antes de se espatifar metaforicamente contra um muro vermelho, que na verdade dera um grande botão metafórico, que, metaforicamente, acionava a fala.
-Pera; se isto foi um acidente, então como é que os B-52s sabiam onde atacar?
Sutherland se virou, franzindo a testa e juntando suas grossas sobrancelhas.
-Filho, você...
-Eles teriam que ter sido mandados para este ponto específico da estrada, que nem está nos mapas direito, bem antes do ataque começar. Não tem como ter sido coincidência. Eles estavam sobrevoando a região exatamente quando o ataque começou?
Dei um passo para trás, saindo do helicóptero. Wright me seguiu.
-Senhor Coronel, Senhor, o senhor mandou esses aviões, e principalmente, nos mandou para cá sabendo que haveria uma emboscada.
Pude perceber que à essa altura ele estava suando frio, e logo reagiu.
-É claro que não! Sacrificar soldados... Tenente, isso é desacato! Um caso GRAVE de desacato! Pior... Isso é traição! Homens, prendam esse traidor!
-Senhor Coronel... Eu nunca disse que se tratava de sacrificar a tropa; o senhor mesmo é quem acaba de fazer isso.
-Não! Traidor! Indisciplinado, Indisciplinado, sempre foi! Soldados, prendam-no!
Wright, Davis, Bob, Sykes, Shorty. Nenhum deles mexeu um centímetro.
-PRENDAM-NO!
- O senhor mandou seus homens para uma missão suicida, senhor. Servir de isca para que vocês bombardeassem os comunistas às raias da inexistência.
Sutherland parou com a sua gritaria por alguns segundos enquanto meus homens formavam um grupo compacto ao meu redor, ao mesmo tempo que eu andava em sua direção.
-Vocês... São só soldados! Estão na linha de frente! O dever de vocês é garantir a sobrevivência da América, e só! Algumas vezes, isso exige coisas que não compreendemos! Exige sacrifícios! Manobras distrativas! Bloqueios, bombardeios, matar uma cidade de fome, reduzi-la à poeira, são coisas horríveis, sim, mas essenciais para que se vença uma guerra! Se nós parássemos cada vez que temos que cometer um ato de que possamos nos arrepender depois com base em tolices como ética, nunca teríamos vencido nenhuma guerra! E é por isso que pensar nisso é papel dos mais experientes, daqueles que viram a maior parte do combate e sabem exatamente as ramificações dessas decisões difíceis! É por isso que a guerra se ganha em Washington, e não na selva! Essa é uma guerra lutada por burocratas, homens de terno e guerreiros experientes, e não pelo homem comum! Por aqueles que sabem o que estão fazendo, e acredite em mim, nós sabemos o que estamos fazendo. O que vocês precisam fazer é cumprir as ordens! Vocês podem fazer o que quiserem, reclamar, propor suas próprias estratégias, jogar fora suas medalhas em frente ao Capitólio, mas isso não mudará a conduta da guerra! E isso porquê, sem nós, vocês não entendem nada do combate. Sem nós. vocês não entendem nada do Brasil. Sem nós, vocês não entendem nada de guer...
Mais um tiro, eu diria, pelas minhas contas, o n°11045 do dia. Diferente dos outros, esse penetrou mais fundo e de maneira mais sonora e eu pude ver, ao vivo em cores, seus efeitos em toda a sua sangrenta glória.
A arma de Sykes estava fumegando, e Sutherland fora ao chão, uma enorme bolha de sangue estourada entre suas sobrancelhas e bigode deveras tingidas de vermelho.
-Ele não parava de falar- disse Sykes, traduzindo o sentimento geral, de uma maneira que Shorty seria incapaz.
Sutherland estava morto, caído no chão, todo sangue, todo taturanas, todo bigode, todo fadiga verde, todo escovinhas estranhamente ausentes, e nós éramos oficialmente os traidores que ele nos declarara havia um minuto. Talvez ele fosse vidente, quem sabe.
A outra porta do helicóptero se abriu, e dela saiu um homem jovem, embora mais velho do que eu, usando os mesmos óculos de aviador de Sutherland.
Apontei minha arma para ele.
-O que você pretende fazer?- perguntei à ele.
Ele olhou um pouco ao seu redor, sem dúvida demonstrando uma emoção, embora esta estivesse oculta sob o Ray-ban.
-Nada.
-Nada?
-Nada. Pra quê? Esse cara era um chato mesmo. Me deixem ir embora com vida, e eu invento uma história sobre como ele decidiu ficar no chão, para ter um pouco de ação e realizar um pouco de reconhecimento, sendo morto num tiroteio, e de como eu heroicamente carreguei seu corpo até o helicóptero, levando-o de vota para receber suas honrarias militares em Salvador. Ah, e claro, vocês não estão mais vivos, morreram juto com o resto das tropas no bombardeio, que realizou todos os seus objetivos estratégicos.
Nenhum de nós disse nada, então ele simplesmente continuou à desfiar seus pensamentos.
-Honestamente, estou cansado desse lugar. É só umidade, umidade, umidade, mata, poeira, deserto, umidade, umidade, poeira, vilarejos, e algumas cidades espalhadas entre elas, todas fétidas e parecidas. A mulherada é legal, mas eu arranjo coisa melhor em Nova Orléans. Dito isso, o que vocês acham da minha proposta?
Sem dizer nada, Davis entrou no helicóptero. Se o gesto era aquilo que eu imaginava, era o que eu previa. Ter entrado no Exército era uma conquista para Davis, que antes era apenas o garoto nerd e com alguns problemas de saúde. Isso fora a prova de que ele podia ser algo mais. Ele não jogaria isso fora para virar um reles desertor.
Enquanto a porta se fechava, Davis sequer olhou para nós.
-Beleza, legal, o que somos agora, então?- disse Wright, olhando para o céu pelo qual singrava o helicóptero.
-É simples. Somos soldados sem pátria. Somos desertores. À partir de agora, os EUA são nossos inimigos, tanto quanto os comunistas. Para nós, a verdadeira guerra começa agora. E só vai terminar quando estivermos mortos.
Eu queria ter dito isso, mas não disse. Quem disse foi o Shorty. Tenho inveja dele; ele sempre foi muito bom com palavras.

*****
Era ela, era impossível ser qualquer outra pessoa.
Havíamos andado por toda a estrada, durante o anoitecer, basicamente esperando não ser mortos por alguma quadrilha de salteadores. Estávamos em menor número, e com pouca munição, o que significava que seríamos presa fácil para os comunistas sobreviventes do ataque. Adicionalmente, o fato de termos sobrevivido indicava que a estratégia de bombardeio havia falhado, o que significava que os americanos que encontrássemos pela estrada acabariam com a nossa raça. Ou seja, estávamos em uma situação complicada, e assim,andávamos com muita cautela.
Felizmente, talvez anticlimaticamente, nada aconteceu. Nenhum assaltante homicida pulou sobre nós para cortar nossas gargantas, nenhum helicóptero jogou napalm sobre nós, nenhuma emboscada com uma criança ferida no meio da estrada foi tentada. Talvez a estratégia de bombardeio tenha tido sucesso, afinal de contas. Mas ela tinha tido uma falha muito óbvia: nós.
E agora, após talvez uma hora de caminhada, havíamos encontrado ela. À distância.
Uma mulher com uma criança nas costas.
O que quer que tivesse acontecido com o burro, ele havia ficado para trás.
Não tinha erro.
Corri até ela. A mulher obviamente ouviu meus passos e, primeiramente, tentou correr, mas estava com a filha nas costas, o que complicou sua situação. Ela olhou para trás. Me viu. Parou. Bom sinal.
Shorty veio comigo. Não haveria erro.
-Shorty, isso é importante, traduza o que eu estou dizendo.
Shorty assentiu, embora, pude ver por seu rosto, meio à contragosto. Talvez ele sentisse que lá vinha bomba, e de fato, vinha.
Pepé ficou me encarando enquanto eu falava para Shorty. Ela parecia não entender porque eu a havia seguido. À bem saber, nem eu, embora possa sair do meu corpo e consciência por um momento e propor uma explicação Freudiana meia-boca. Estava francamente cansado daquela guerra e de todo aquele cinismo miserável. Aquilo não era a América. A América era outra coisa, talvez altruísmo, talvez um senso de dever. Em todo caso estava disposto à descobrir qual era. Talvez parcialmente estivesse buscando uma maneira de me reafirmar como o herói que meu pai queria que eu fosse, após desertar do Exército. De qualquer maneira, tudo isso é uma enorme bobagem.
Pepé me encarava com seus olhos de resignação, de quem perdeu tudo e já aceitou. Suas chances de recuperar seu marido já haviam se esvaído, e ela ainda apostara sua casa e sua cidade nisso, perdendo tudo. Estava suja, com fome, sozinha, com uma filha para criar. Eu estava sujo e com fome, mas tinha uma arma, e ia fazer algo com ela.
-Pepé, estou sabendo do que aconteceu com o seu marido. Ele foi levado para o...
-Sertão- disse Shorty.
-Isso mesmo, o Sertão. A questão é, somos fugitivos agora, temos armas, e o mais importante de tudo, muito tempo livre.
Shorty transmitiu a mensagem. Ela nos olhou por alguns segundos, pôs a filha no chão, e se ergueu novamente estalando o pescoço. Disse algumas palavras em sua língua. Shorty suspirou.
-O que ela disse?
-Ela perguntou onde você está querendo chegar com isso, e, francamente, eu também não sei.
Olhei para Pepé pela última vez. Pude sentir alguma coisa vagamente crescendo dentro de mim. Em breve, eu não a veria mais.
Valorizar cada segundo de um pequeno encontro cujo fim nos sabemos se aproximar é o jeito mais fácil de torná-lo memorável. Eu preferi outra estratégia. Não valorizar o momento, mas saborear suas possibilidades, e escolher a mais irresponsável, a mais impulsiva. Mergulhar de cabeça na vida e socar o acaso no rosto. E, se possível, fazer o bem no meio do caminho. É. Se fosse morrer, que fosse em nome da justiça, e de corrigir todas as besteiras que eu tinha feito em nome da bandeira. Começando por aquela mulher.
-Diga para ela- eu respirei fundo- diga para ela que nós iremos até onde esses comunistas malditos estão, e iremos trazer de volta o seu marido.

domingo, 18 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 13

Capítulo 9


-Entra logo, branquelo, nós...
-Estamos em guerra. É, eu sei.
Pelo segundo dia seguido, Soares estava adentrando a toca do dragão. Dessa vez, porém, entrava munido não de perguntas, e sim de respostas. Respostas falsas, claro, mas respostas, mesmo assim.
Sua arma era uma pasta com um dossiê muito específico e de aparência oficial, um dossiê marrom, enrolado em papel pardo e preso em pequenos elásticos amarelados, contendo provas forjadas de que a prima de Cassius havia sido seqüestrado pelo grupo trotskista que atuava na cidade.
A porta se abriu, liberando a luz celestial e a fumaça grossa da sala de Cassius, blá blá blá. Vocês já conhecem o lugar, visitamos ele à menos de 20 páginas.
-Ora, ora, se não é o meu detetive favorito- disse a cadeira, digo, Cassius,sentado na cadeira ainda virada, com uma entonação que Soares percebeu ser vagamente sarcástica.
Soares jogou a mala sobre a mesa. O moleque de boina e jaqueta, o tradicional guarda-costas de Cassius reagiu rápido e apontou a arma. Afinal, era uma guerra; todo cuidado era mínimo. Quem não iria garantir que se tratava de uma bomba, afinal de contas?
-Diga... Para o seu amigo se acalmar- disse Soares, sentindo o cano frio através de seu sobretudo.
-Amigo, acalme-se.
A pressão sumiu. Certo. Soares apertou os pequenos botões metálicos, que, estalando, abriram a mala.
-Estou aqui, senhor Cassius, com um dossiê que contém evidências conclusivas.
-Excelente. Mas você não terminou a frase. Evidências de quê?- disse a cadeira, terminando a frase.
-É bom você ter perguntado. Tenho gravações de uma escuta que coloquei perto de uma reunião do FLB. Senhor Cassius, eles mencionaram explicitamente ter capturado a sua sobrinha. Estavam à procura de um lugar aonde pudessem deixá-la  presa, embora, na minha opinião, estejam apenas tentando derrotá-lo pelo desespero.
Soares expeliu e, imediatamente, engoliu aquelas palavras. Acabara de racionalizar aquilo que, provavelmente, Orfeu e seus capangas do governo estavam fazendo.
A cadeira estava em silêncio. -Continue- disse solenemente, rompendo-o.
-Eles mencionaram... Algo sobre amanhã à noite. Estão dizendo que os seus planos para amanhã deverão ser cancelados se quiser a sua...
-O que?!- interrompeu Cassius- Essa FLB deveria ser internada se acha que pode impedir amanhã de ocorrer! Isso é muito maior que nós, é muito maior que eles, é maior que a porra dessa cidade fétida! Não se pára um evento dessa magnitude 24 horas antes!
Bingo. Finalmente estava soltando as informações. A euforia mental de Soares não durou; Cassius respirava alto, e seu suspiro de resignação era o mais alto de todos.
Não; eram soluços.
-As... As circunstâncias não permitem. Nós... Droga, não tem mais nada que eles estejam pedindo?!
Droga. Preciso levar ele de volta à parte em que estava liberando informações.
-Senhor, esse “evento” é tão importante que...
-Cale-se! Você já sabe demais. Não preciso de você aqui fazendo perguntas! Caia fora! CAIA FORA!
O trovão ressoou pela sala. Droga.
Soares deu de ombros do lado de fora, mas do lado de dentro o seu estômago queimava e se retorcia. Não chegara à resposta. Se preparou para se virar e se ver escoltado para fora por um menino magricela. Mas então se lembrou(e, se virando em direção à porta e então novamente em direção à cadeira, acabou fazendo uma pirueta de natureza constrangedora. Admitamos que essas considerações não eram muito importantes naquela hora). Pronunciou as três palavras que estavam em jogo naquela operação, na guerra que se travava todos os dias e na guerra maior travada pelos dois gigantes em âmbito mundial.
-Quero meu dinheiro.
O braço de Cassius fez um movimento em direção ao menino armado de um rifle, que andou em direção à mesa e pegou uma mala de metal cromado, entregue por outro braço saído da cadeira. Era a primeira vez que Soares via parte do corpo de Cassius.(amitlú a oãn etnematrec E.)
Pelo padrão curioso de suspiros vindos da cadeira, Soares pôde imaginar que Cassius estava se recompondo.
-Me desculpe. Eu exagerei; gritei com um hóspede, e envergonhei a família. Vamos apertar as mãos; você fez o seu melhor e, na verdade, cumpriu sua tarefa.
Cassius se levantou da cadeira e olhou direto nos olhos de Soares, e Soares olhou direto nos olhos de Marcelo.
Espera aí... Marcelo?
-Espera aí... Marcelo?
-Espera aí... Major Soares?
-Ah meu Deus!
Soares explodiu por dentro, aquela explosão de surpresa vaga, desagradável e gasosa de se ver um velho conhecido. Cassius Zumbi Mandela Wesizwe era aquele que um dia se chamara Marcelo Wallace, antigo amigo de Soares nos tempos do Exército. Em outra teoria igualmente plausível, Cassius teria implodido logo antes de se levantar da cadeira, e seu espírito teria reencarnado em Marcelo Wallace, antigo amigo de Soares nos tempos do Exército.
Essas considerações filosófico-religio-nigaudlógicas não importavam muito para Soares, que no momento estava lidando com a situação ainda mais desconfortável de encontrar um antigo conhecido e ter de lidar com as suas mudanças em período estendido de tempo, também conhecida como “aquela chatice de as coisas não permanecerem as mesmas enquanto não estão olhando”. É conhecida nos círculos médico-acadêmicos pelo nome bem mais formal de Síndrome de Depressão Pós-Subversão de Expectativa Evolucionária Estagnada, ou DEPSUEXEVES. Saúde.
-Puta que pariu, como você mudou, cara!- disse Soares, em uma das reações mais comuns à DEPSUEXEVES.
-E você então? Virou detetive, e eu nem sabia! Que incrível! Cara, nem sabia que você estava em Salvador!
-Estou, é, montei um consultório já tem uns dois anos. Vim para cá mais ou menos depois de você ter ido embora do Rio de Janeiro.
-Pois é. Bons tempos, aqueles, né?
-É, é, verdade.
Era mentira. Não haviam sido bons tempos. Na verdade, Soares tinha calafrios toda vez que lembrava deles.
Entre os dois, pensou Soares, Marcelo era definitivamente aquele que havia mudado mais. Quando o conhecera, havia quatro anos, era um magricela em forma de cotonete(leia-se: pés e cabeça inchados, corpo magro e longilíneo) que ficava mal em sua farda e cujo capacete ficava balançando por causa das proporções, desenhadas por Deus em um guardanapo após alguns drinks em demasia.
Agora, era um colosso de músculos, usando um paletó branco aberto, oferecendo ao mundo a prodigiosa visão de seus abdomens. Deixara crescer os cabelos em uma maneira que lembrava os caribenhos que Soares vira n’O Novo Bahiano outro dia.
-Mas e então Soares? Como vai a vida de vigilante?- disse, dando-lhe um tapa nas omoplatas.
-Doeu, porra! Brincadeira. (Não era.) Sei lá, acho que o mercado tá saturado. Muita competição para pouco caso.
-Mercado, mercado. Viu, é por isso que queremos acabar com essas porcarias sem-sentido, passar para algo mais evoluído.
-Uma sociedade sem mercado?
-Não só isso, cumpádi. Sem mercado, mas também sem exploração do homem pelo homem. E sem mais-valia. E sem lucro. E sem esses exploradores malditos, brancos sacanas!
-Cara... Eu sou branco.
-É eu sei, mas hà que fazer a distinção, tem brancos e brancos... Os brancos, que tem o negro dentro deles, a alma negra, partilham de nossa história, de nossa cultura! São explorados como nós!
-Não é só porque eu sou seu amigo, né?
-Distinguir isso dos brancos brancos! Os brancos do mal, os exploradores! Que nos manipulam, querem fazer com que não sintamos orgulho da nossa cor, que querem fazer com que sejamos brancos como vocês!
-Espera, ser como os brancos exploradores, ou como os brancos explorados?
-Entende? Tenho a teoria de que vocês, brancos negros, eram originalmente negros, mas que o marketing dos brancos brancos foi tão bom que vocês quiseram virar brancos. É por isso que continuam sendo explorados mesmo sendo brancos, por que, lá no fundo, não são! Você entende? Entende? Entende...
Não adianta, pensou Soares. Ele tinha sido tomado por pensamentos ideológicos ralos.  E ainda assim, dentro daquela carcaça de revolucionário, ainda morava, em algum lugar, um grande amigo seu.
Marcelo fez um sinal, e o jovem armado deixou a sala. Assim que ele foi longe o suficiente, suspirou mais uma vez. Alto.
-Soares. Você não pode acreditar como as coisas mudaram, cara. Ter uma família... Me fez ver o que eu realmente quero. Se amanhã à noite não der certo, eu vou pular fora dessa vida. Se amanhã fora der certo, eu vou legar o resto à luta, e pular fora dessa vida. Cheguei em uma encruzilhada, e os dois caminhos apontam pro mesmo lugar. Não existe mais escolha. Essa luta irresponsável levou à destruição da única coisa boa que me aconteceu nos últimos anos. Isso pode até ser egoísmo, abandonar a sociedade, a minha causa, pela família, por causas pessoais. Mas se eu continuar, são eles que vão sofrer, e não eu. Essa é minha sina; ou sacrifico os outros, ou sacrifico os outros. Minha sobrinha foi só o aperitivo, vai piorar muito no futuro. Nesse sentido, tenho que agradecer à FLB. Eles conseguiram o que o governo não conseguiu: mostrar pra mim... Que eu não estava pronto. Não estou pronto para essa luta. Que venha outro, e tome meu lugar.
Ao falar aquelas últimas palavras... Marcelo... Era Marcelo? Era Cassius?
Ainda importava?
Ele pronunciara aquelas últimas palavras recheando-as de emoção. Talvez estivesse no ponto de entrar em colapso, mas se era isso mesmo, Soares não sabia. Após inflar como um balão de ar-quente ideológico, ele estourara- e lá estava ele, de volta ao chão, aceitando sua queda.
Aceitando. Resignando-se.
Havia uma graça e uma certa dignidade nisso- mas Soares conhecia a verdade. A sua queda era artificial. A sua percepção do que era real era baseado em condições irreais, criadas em linha de montagem através de peças pré-fabricadas por um exército de ternos sem rosto; uma realidade dentro de uma placa de Petri, condições de mentira que trouxeram uma revelação verdadeira, cortesia de Doutor Orfeu.
Soares estava disposto à quebrar o espelho.
-Marcelo, não pegue o dossiê.- disse, laconicamente.
-Porquê?
-Não tem nada de verdadeiro naquele dossiê.
O olhar de aceitação de Cassius rapidamente se transformou em um de questionamento.
-Como assim? Co- você não compilou esse dossiê? O que tem nesse dossiê? Você não fez o seu trabalho? Que porra está acontecendo?
Merda. Esqueci que ele ainda era ativista.
-Olha, não é bem assim, ééé-
Soares começou à soar frio. Em algum ponto da sala, ouviu uma pistola sendo carregada.
Agora ele tem atiradores invisíveis? foi o que ele pensou. Talvez estivessem em outra sala, ou talvez estivessem escondidos nessa mesma sala atrás de alguma das placas de luz atrás da poltrona. Mas no calor do momento, e calor mesmo dado o suor frio, atiradores invisíveis não pareciam uma impossibilidade.
-Para quem você trabalha, Soares?
Soares permaneceu mudo.
-Eu perguntei... PRA QUEM VOCÊ TRABALHA?!
Sujou.
A seqüência lógica da conversa foi Soares escapando pela porta, encostada.
Corre, porra.
As pernas de Soares tinham se amolecido após a falta de exercício, ao longo de dois anos- mas a necessidade é mãe das habilidades improváveis, então ele conseguiu atravessar metade da sala antes de
BANG
Um tiro. O sangue percorreu as veias de Soares no triplo da velocidade normal, e o suor se escondeu sob a pele de medo.
Acertara o teto, e ele podia ver o buraco.
Continuou à correr. A porta estava perto.
Sangue correndo. Nenhum sangue nas paredes. Ainda.
Foi só se lembrar do que estava no seu bolso que sentiu o cano em seu pescoço.
Não só um cano. O cano.
Virou-se para trás. Era a mesma criança magricela, usando uma jaqueta militar.
Cassius adentrou a sala, estendendo sua pistola, como uma extensão de seu braço andando mecanicamente, triunfalmente, o braço parado.
-Soares, Soares, quem te viu, quem te vê.- ele chegou à dizer, com um sorriso que, em verdade, era mais parte de um baile de máscaras do que um confronto com um amigo que acabara de traí-lo.
-Eu não achei que viveria para ver o dia em que seria traído pelo meu melhor amigo.- ele disse, apertando o gatilho.
-Eu não achei que viveria para ver o dia em que você seria preso.- respondeu Soares.
-Do que você está falando, Soares? Porra, essas são suas últimas palavras, pelo menos diga algo memorável.
Soares soluçou, e, lentamente, tirou do bolso um pequeno objeto opaco e piscante. Jogou-o no chão, e este rolou até Cassius.
-Marcelo, por favor, apenas por essa vez, me escute: abaixe-se se quiser viver- disse Soares, respirando fundo.
Passos pesados. Alguém subindo a escada.
-Do que você está falando, cara? Melhor atirar em você antes que posa falar mais m-
Um naco do ombro de Cassius explode, atirando pedaços de sangue e carne pelo quarto. Dois tiros. Soares se abaixa. Cinco, seis. O garoto se joga atrás de uma poltrona. Sete, oito, nove. Tiros nos sofás e nas paredes. Dez, onze, doze, treze, catorze: Soares estendido no chão, não vê mais nada, apenas ouve.
Passos pesados. Alguém entrando no quarto.
Soares abre os olhos. Tropa de choque. Soldados cobertos de preto, da cabeça aos pés. O confronto é rápido.  Os comunistas saltam de trás das poltronas. Duram alguns segundos em pleno ar, brandindo suas Gatlings, batendo suas asas.
Abatidos como pombos, um à um.
Vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis.
A batalha é curta. Uma dúzia de soldados de cada lado. Terminada a troca inicial de tiros, a tropa de choque vai para trás de um sofá, depois outro, depois um terceiro, e executa os defensores, golpeando suas cabeças, recheando-as de chumbo.
Segunda fase: os soldados apontam suas armas para os cantos e se reúnem no centro. Se separam então com destreza e vão em grupos de dois para as portas laterais. Um deles derruba com um chute, um outro descarrega munição dentro de um quarto lateral. A luz pisca, dançante, dentro das pequenas alcovas, antes de se extinguir. Manchas de sangue na parede, braços jogados para fora. Uns (poucos) tiros de Gat para compensar os de metralhadora.
Choro de bebês. Duram pouco.
No geral, a execução é perfeita. O balé da morte se desenrola com plena fluidez de movimentos.
O público se levanta para aplaudir. Ah, pêra, não fazem isso não, porque estão mortos.
Uma última alma foi carregada para fora dos armários.
Soares não a estranhava. Seria Cleópatra?- viraram-lhe o rosto. Era sim.
Passos mais pesados que os de toda a tropa ecoaram no chão riscado da escadaria.
Uma silhueta escura entrou na sala, quase engolindo-a no processo.
-Ora, ora- disse Orfeu, tirando seu chapéu Panamá, que, ao contrário da maioria dos chapéus Panamá, era preto.-A roda finalmente esmagou a borboleta. E você-  ele disse, se ajoelhando e levantando pelo queixo o rosto ensangüentado de Cassius. - Dr. Cassius, eu presumo.
-Pra você é Cassius... Zumbi... Mandela... Wesizwe.- disse o refém entre os dentes avermelhados, cuspindo sangue.
Orfeu se fez de sério, e deixou cair-lhe o queixo, e a cabeça foi junto.
-Que charmoso- disse, sua voz sendo abafada pelo leve ruído da cabeça batendo no carpete.
Soares logo sentiu a sua mão fria em seu ombro. Como ele conseguia senti-La mesmo debaixo do sobretudo, era algo que nem mesmo ele entendia.
-Vamos lá, parceiro- disse Orfeu- Agora nos mostre como ficou famoso.
A testa de Soares se encheu de suor. Espera, não é disso que estão falando, né?
-É, Orfeu... Não sei se estou entendendo onde você quer chegar.
-Ora, ora, Soares- Orfeu riu, tirou os óculos e, enquanto limpava-os, encarou Soares bem nos olhos. Se seu rosto era desproporcional à seu corpo, e seus olhos eram desproporcionais em relação à seu rosto, ocupando o dobro do espaço normal, o mesmo poderia ser dito de suas pupilas- mas de maneira oposta. Eram tão pequenas que pareciam perdidas naquele mar de branco, e ainda assim, Soares sabia que elas olhavam até as profundezas de sua alma.
-Ora, Soares. Porquê você acha que, entre todos os detetives de Salvador, alguns muito bons, nós escolhemos logo você? Estamos cortando custos. Não estávamos à procura de um detetive, na verdade, nem precisávamos de um, já que não havia mistério para resolver. Não, não. Não estávamos à procura de um detetive. Estávamos à procura de um torturador que cobrasse barato.
Marcelo cuspiu sangue.
-há, há, ha! O grande Major Soares, melhor torturador deste lado dos porões da CIA, está do lado de vocês agora, né? Pois bem, é melhor tirarem o cavalinho da chuva. Major pode até ter me entregue para vocês- e eu não sei o que vocês usaram pra convencê-lo disso- mas ele nunca, nunca torturaria um amigo.
-Ah, é mesmo?
Orfeu fez um sinal com a cabeça. Um dos soldados da tropa de choque prontamente apontou sua metralhadora para Soares.
-E agora, que tal? Soares, vai colaborar com a nossa equipe? Vai mostrar seus dons para gente?
Marcelo tremia.
-Soares, não faz isso não, cara... Por favor deixa eles me matarem, eu sou seu amigo!
Soares engoliu em seco.
-Me dêem uma mesa, e coloquem ele em cima dela.
Marcelo soluçou, e as lágrimas misturaram-se ao sangue espalhado por seu rosto.
-NÃO! Cacete, Soares, porque?!
A tropa de choque foi rápida, como de costume. Pegaram uma mesa de fórmica que estava no canto, empurraram os sofás e a puseram no centro, tudo em menos de um minuto.
-Certo, agora amarrem ele.
-É bom que eu me preveni em relação á isso- disse Orfeu. - Ô Santos, pega a corda.
Marcelo agora estava amarrado à mesa, com os seus braços esticados pendendo para fora.
-Okay, agora diga-me o que eles querem saber, ou eu quebro os seus braços.
-Droga, Soares...
-FALE!
-Mas... Mas eu...
-Eu falei para falar, não balbuciar! Você por acaso me viu pedindo pra você balbuciar?!
Soares se abaixou. O primeiro objeto que viu foi o rifle do garoto. Este agora tinha uma enorme bolha de sangue no lugar do olho.
Golpeou Marcelo com o rifle, bem no diafragma. Este tentou gritar, mas tudo que saiu de sua boca foi um ganido fraco, e um filete de sangue que escorreu pelo lado.
Soares se transformara, de uma figura polida, reservada ainda que ligeiramente irreverente, em um homem impassível, rígido, que falava de uma forma fria, monótona e ríspida, soltando ocasionais bombas verbais.
Soares já adotara aquela máscara muitas vezes, e por tanto tempo que ele se perguntava às vezes se era mesmo uma máscara. Houvera uma época em que ele a usava o tempo todo.
Mas se havia um motivo pelo qual Soares temia a máscara, era porque talvez houvesse um motivo para elas se tornar tão prevalente na sua vida. Talvez, lá no fundo, ele gostasse do que estava fazendo.
-Vamos, agora fale! Fale, com palavras inteligíveis, em bom português, ou eu vou continuar. Não quero continuar. Afinal, isso dói mais em mim do que em você.
Marcelo cuspiu sangue. Tentou atingir Soares, mas o líquido acabou indo parar em seu tronco.
-Charmoso- disse Soares.
Soares recuou e andou até Orfeu.
-Me dê um balde de água, e um pedaço de pano.- sussurrou.
Orfeu fez o sinal, e Soares voltou até Marcelo.
Chegando na frente da mesa, calmamente sentou-se no braço de Marcelo. Este começou à bufar e á emitir um gemido rouco, enquanto as lágrimas escorriam de seu rosto.
-Vamos fazer uma coisa diferente, que tal? Passei tanto tempo com você e ainda não sei a sua história de vida. Que tal você me contar tudo sobre a sua infância, sua família, o seu primeiro dente à cair e todas essas outras histórias super interessantes?
-Por favor... Tenha piedade...
-Daí, quando você terminar, eu me levanto.
-Hmmmphhh...
-Ou, deixa eu ver, tem um jeito mais fácil. Você pode me contar logo o que nós queremos saber.
Soares viu, com o canto do olho, o soldado da tropa de choque chegar com o balde e o pedaço de pano.
-Mas... Mas...
-Fale logo, Marcelo, ou eu vou ser forçado à usar o pano, e você não vai gostar disso. Eu te garanto.
-Mas...
-FALE!
-Mas... Eu não sei... O que vocês querem de mim.
Soares olhou para o teto, pensativo, coçando o queixo. Marcelo lacrimejava pesadamente. Soares podia sentir o seu braço cedendo sob o seu peso.
-É verdade, é verdade, você tem um ponto- disse Soares, se levantando. -Pois bem, o que queremos de você é simples: a informação sobre o que vai acontecer amanhã à noite.
Marcelo sorriu de leve, um sorriso irreverente entre as lágrimas de dor.
-E você acha mesmo que eu vou contar para você?
-É pra essas e outras que eu tenho o balde.
Soares em gestos mecânicos, ensaiados, fruto de anos de prática, dispôs o pano sobre o rosto de Marcelo. Uma mancha vermelha logo se formou sobre a brancura suja de nhaca do pano. A sua respiração ficou mais pesada.
-Tenha bons sonhos, Cassius- disse Soares, erguendo o balde por cima da cabeça de Marcelo.
-É UM SHOW!
A entonação foi tão estranha e a dicção tão súbita que Soares pensou ter entendido errado e, na verdade, não sabia de onde tinha vindo aquele grito.
-É... Cassius? Foi você mesmo quem disse isso?
-É! É UM SHOW!
-Peraí... Um show?- disse o soldado que tinha trazido o balde.
-Eu ouvi corretamente, ele disse um show, Soares?- disse Orfeu.
-É, Cassius, você mencionou mesmo um show?
-É claro que sim, imbecis! É um show! É um show!
-Mas, espera, Cassius, que tipo de show, vai ser tipo, uma operação para encobrir alguma coisa ou...
-Não, porra! É um show! Um show de rock tropicalista e contestação! Estamos reunindo uns artistas duca pra fazer um espetáculo pra toda a população e a gente de repente vira os inimigos número um! É impressionante essa porra! Impressionante!
Soares olhou para o soldado e para Orfeu. Orfeu olhou de volta, e Soares deu de ombros. O soldado olhou para Orfeu, daí virou o olhar, mas a virada foi muito súbita, e logo Orfeu estava olhando para o soldado. O soldado tentou disfarçar a olhadela que havia dado, mas percebeu que Orfeu estava lhe olhando, então logo começou à olhar de volta. Olhando o soldado com aqueles olhos minúsculos de feijão preto, Orfeu apontou, em um tom acusador.
-Soldado... Você por acaso tinha alguma noção de que isso ia acontecer?
O soldado permaneceu plácido. Seu corpo permaneceu parado, mas seu olhar se dirigiu à outro lugar.
-Soldado, responda!
O soldado engoliu em seco, e seu corpo se retorceu, enquanto seu olhar dessa vez permaneceu fixo em Orfeu.
-Bom, chefe, estavam rolando alguns rumores lá na comunidade...
-Comunidade não. Quantas vezes eu vou ter que te ensinar? Você mora num barraco. BA-RRA-CO. Vê se aprende.
O soldado engoliu em seco de novo.
-Certo, chefia. Em todo caso me falaram que era possível que a Nara Leão, o Raulzito e o Caetano Veloso fossem voltar do exílio. Me falaram que eles iam fazer um show, lá no Fonte Nova.
Orfeu pigarreou, cruzou os braços atrás das costas e andou até o canto da sala, pensativo. Ou, ao menos, era a imagem que passava.
-Interessante. Interessante, soldado. E, diga-me, essas fontes tão boas, tão confiáveis, te contaram quando ia acontecer o show?
-... Amanhã... Senhor.
Danou-se, pensou Soares. Aos poucos, ele começou à se distanciar da conversa, figurativamente e literalmente, andando para trás. Olhando para baixo, viu um revólver na mão de um cadáver de uma moça, que devia ter por volta de 16 anos. Carregava uma pequena manta consigo.
Pegou o revólver da mão da moça. Sentiu uma pequena resistência. Rigidex Mortis, só pode ser, lhe ocorreu. Ainda assim, o efeito era perturbador, e ele evitou olhá-la nos olhos, ainda abertos, vazios, vidrados.
-Que interessante, soldado- continuou Orfeu, pigarreando- E você, sabendo que era o plano dos comunistas realizar um grande evento nesse mesmo dia que a droga desse show com a droga desses seus artistas de merda ia acontecer, não pensou em contar nada pra nós?
O soldado hesitou por um segundo.
-Eu... Queria muito ir ao show, Capitão- sussurrou.
Só então Soares notou que Orfeu tinha dado meia-volta e adotara uma posição inclinada e ameaçadora, sobre o soldado. Parecia estar prestes à esganá-lo.
- É... Bom ouvir isso, soldado. É bom saber que o senhor tem uma falta de consideração por nós grande o suficiente para pôr toda a operação, e na verdade, o andamento dessa guerra, em perigo.
Fez uma pausa breve, e continuou:
-Soldado, quando terminarmos essa operação, pode entregar o uniforme, você será transferido das operações de campo para o trabalho de apoio no escritório, com um corte no pagamento equivalente às suas ações irresponsáveis.
O soldado começou exibindo uma cara de decepção, mas logo esta metamorfoseou-se em solidez resignada.
-Certo, capitão.
-É assim que eu gosto, menino. Digo, é assim que eu gosto dos meus meninos. Bom, voltando ao assunto: Que história é essa de show?
-É a porra de um show!- gritou mais uma vez Marcelo, a voz falhando nas últimas sílabas.
-Tá, já entendemos. Sabe, sujeito, podemos ter uma conversa sem precisar de palavrões, afinal somos todos adultos aqui. Peste.
-Tá certo, tá certo. E então, mais alguma coisa que vocês queiram saber?
-É... Não, na verdade. Mas você disse, Estádio Fonte Nova?
-Não.
-Eu... Tenho certeza que você disse Estádio Fonte Nova. Soares, pendure-o pelos mamilos.
-NÃO! NÃO! ESPERA! Eu estava sendo engraçadinho. É que foi o seu soldado que mencionou o Fonte Nova. É, vai ser lá mesmo. Amanhã. Às 7 da noite, mas é bom chegar mais cedo, senão lota rápido.
-Olha só, ele estava sendo engraçadinho. Que legal. Bom, isso é ótimo, é tudo o que queríamos saber. Um show. Que excelente, não? Nara Leão. Saudades dela. Pena que agora ela só faça músicas políticas maçantes, mas bom, acho que é o destino de todos os artistas hoje em dia. Realmente excelente.
-Ham...
-Ora, pois não, prisioneiro? O que quer?
-É tudo o que vocês querem?
-Ora, ora, mas é claro, prisioneiro! Afinal, você nos contou tudo o que queríamos saber sobre a sua pequena operação secreta. Pra que continuar torturando alguém que já disse tudo o que sabia? Por isso mesmo, liberaremos você.
Orfeu pôs a mão no bolso. Em um movimento simples, ágil, mecânico- da forma como só Soares conhecia à perfeição- ele a retirou, e algo veio junto. Soares mal teve a oportunidade de emitir qualquer som antes do soldado apontar seu rifle para ele.
-Bem-vindo à liberdade, camarada- disse Orfeu.
Vinte e seis.
A cabeça de Marcelo Wallace deveras jazia sobre a mesa de fórmica, um naco à faltar, enquanto o pano enrubescia. Soares caiu de joelhos, e, olhando para baixo, só então viu as gotículas de sangue que tinham espirrado em seu sobretudo.
-Mais um dia, mais uma missão cumprida- declarou Orfeu, exibindo um sorriso largo repleto de dentes maciços, soprando então seu revólver.
- Okay, agora diga para os outros entrarem. Diga que já é hora de queimar a casa.- disse, fazendo um sinal genérico com a mão para o soldado.
-Seu... Seu merda!- Soares se levantou. Logo, logo, se arrependeu disso: Okay, merda, agora danou-se de vez foi a primeira coisa que pensou, enquanto o braço que apontava para Orfeu tremia.
Orfeu virou a cabeça para Soares e tirou os óculos, mudando as configurações para sorriso sarcástico e olhar inquisitivo. E aqueles olhos. Merda, e agora ele tá me encarando de novo, pensou Soares.
-Pois não, Soares, que protesto você tem à fazer quanto à essa situação? Sua opinião, você sabe, é muito importante para nós.
Seus olhos falavam sozinhos, duas bolas de cristal brancas, nas quais Soares podia se ver refletido.
-Porra cara... Pára de encarar a minha alma- disse Soares, timidamente.
-Desculpa, não sei se entendi.
-Deixa pra lá.- Os soldados começaram à entrar no apartamento com tanques de gasolina, em uma corrida mal-coreografada.
-Isso era tudo parte do plano, não?- disse Soares.
-De certa forma sim. Quer dizer, claro que seria ótimo poder resolver isso tudo só na base do nosso plano A, que, diga-se de passagem, não envolvia nenhuma morte. Mas, é claro, eventualmente, toda operação termina em derramamento de sangue. Levando isso em conta, a operação de hoje não foi um fracasso, quer dizer, pelo menos ninguém da corporação morreu. Entenda, sua parte na operação foi vital e seria vital de qualquer maneira. Se entregasse a pasta e descobrisse a operação, seria vital. Se fosse capturado e servisse como dispositivo legal para que entrássemos nessa casa e detonássemos esses terroristas sem problemas, também seria vital. Apenas calhou de acontecer a segunda situação, e, embora seus dons como torturador tenham sido... Menos necessários do que eu imaginava, você sabia que a tortura da água exercia um poder persuasivo particular sobre o nosso terrorista, o que não é algo que eu teria necessariamente pensado. É essa a verdadeira mágica dessas operações. Todas as peças acabam caindo no lugar. Algumas vezes, só precisamos dar um empurrãozinho, mas no geral, as coisas acontecem como devem. Tudo que eu preciso fazer é mapear as situações potenciais, e pensar em respostas. Planos B, C, Z se for necessário. Para minimizar os riscos, reduzir o improvável ao impossível. Em suma, nosso trabalho é apenas reconhecer a realidade potencial e integrá-la na realidade. Manter as engrenagens girando, tudo de acordo com o plano. E sabe? No geral funciona. Quer dizer, a história, como a água, pode fluir para fora do rio, na verdade pode se afastar a quilômetros dele, mas no fim, ela sempre acaba indo para o mar.
O discurso se desenrolou enquanto prosseguia a sinfonia de soldados espalhando gasolina pela casa.
-Eu... Não entendi- disse Soares.
-Haha, é claro que não- disse Orfeu, pondo seus óculos escuros de volta. - Desculpe, é que às vezes eu me empolgo com a filosofia.
Soares ficou sem saber muito como continuar aquilo. Tentou evitar olhar para o pano vermelho sobre Marcelo.
-Bom... O que fazemos agora, então?
-Ah, é simples- respondeu Orfeu- eu tranco você aqui, e você morre junto com os outros no incêndio.
-Mas eu... O que?!
-Ou, se você preferir, eu dou um tiro em você. O que for menos doloroso.
Soares começou à andar para trás, reversamente impelido pelo medo. Rapidamente, chegou na parede, e não deu para continuar depois dela.
Orfeu estava com uma arma apontada.
-Pobre Soares... Acabou se entregando com tanta facilidade, quase sabotou toda a operação. Você é muito tolo se achava que eu deixaria você falar com o Cassius sem nenhuma precaução. Aquele dispositivo sinalizador de controle remoto que eu te dei? Tinha um gravador embutido.
Soares olhou para o pequeno dispositivo bege com uma luz vermelha piscando na ponta.
-E olha que você é detetive. Mesmo assim, nem consegue detectar um gravador quando vê um. É mesmo o pior detetive de Salvador. E agora, tem últimas palavras à nos dar? De preferência, melhores que aquelas que deu para o seu amiguinho.
Soares gaguejou.
-Eu... ham... gagh...
-Serve para mim- disse Orfeu, pondo o dedo no gatilho.
-NÃO! Não! Você... Como ousa fazer isso... Executar civis desarmados à torto e à direito... Matar 12 pessoas por causa da droga de um show! Qual é o seu problema?! Você... Você quebrou todas as suas promessas!
-Promessas?- Orfeu soltou uma gargalhada exagerada, quase histriônica, e curvou-se por alguns segundos. Enquanto isso, o soldado levantou a arma.
-Promessas... Bom Soares, primeiro vamos ignorar a infantilidade inerente nessa declaração. Segundo, porra, Soares, é óbvio que eu dou valor às minhas promessas. Promessa é dívida. Mas, no final do dia, ainda estamos no país mais endividado do planeta. Então, o que é mais uma dívida em cima de todas as outras?
Danou-se. Não, pera, é pior até do que isso. Fodeu. É, fodeu.
Orfeu tirou do bolso uma das pequenas pílulas vermelhas que engolia em série, e enfiou a garganta abaixo, enquanto seu pescoço se inchava e se retraía novamente. Estalou seu pescoço dos dois lados, e, com um sorriso no rosto, disparou o gatilho.
*Click*
Soares abriu os olhos. Nada. Orfeu se frustrou, apertando o gatilho várias vezes, com sua larga e sebosa testa se contraindo e fazendo formatos curiosos. No fim, jogou a arma para longe, e, fingindo um sorriso, disse:
-Hehe. Pequeno imprevisto. Soldado, atire nele.
Porra Soares, rápido, pense em alguma coisa.
Lembrou do bolso e do peso que sentia nele. A idéia correu pelas suas sinapses e produziu um efeito semelhante à um choque elétrico nas costas.
-Uh... Não tão rápido!- disse, e sacou sua pistola. Muito desajeitadamente.
Por enquanto, serve.
Para efeito de aumento da dramaticidade, é recomendado ao leitor que imagine o segmento seguinte em câmera lenta.
-Foda-se essa merda!- disse Soares, ajeitando a pistola, por meio de... Jogá-la no ar.
-É, foda-se essa merda! Rebaixamento é o caralho!- disse o soldado. Soares ficou confuso, e se atirou no chão para evitar o pior.
A gravidade, depois de dar um café-com-leite para a arma, começou à exercer-se sobre ela. Outra arma era apontada para Orfeu: a do soldado.
Terceiro movimento. Orfeu é bem mais habilidoso e ágil que qualquer soldado fã de Nara Leão. Movimento mecânico do braço para cima.
Acerta a arma 0.04 segundos antes do disparo, o suficiente para virá-la num ângulo de 20 graus para cima.
A pistola de Soares chega no chão, e a gravidade está muito satisfeita com seu trabalho.
É uma arma automática, e o baque que sofreu ao chegar no chão é suficiente para que vários disparos ocorram.
Orfeu é um agente habilidoso e ágil, mas não ágil o suficiente para escapar de balas; pelo menos, não conscientemente. A sua posição de defesa para se desviar da arma do soldado envolve abaixar seu centro de gravidade e torná-lo mais sólido para derrubar seu oponente mais facilmente, um truque que aprendera nas aulas de judô do Serviço de Proteção à Pátria. Essa tática permitiu-lhe, sem que ele soubesse, desviar das balas disparadas pela arma de Soares, que porém, acertaram a parede, parede esta que, além de já estar coberta de balas, a coitada, tinha sido coberta por produtos oleosos, como sangue de bebês, e a gasolina que os soldados de Orfeu haviam despejado.
Tudo convergiu em um movimento final de grande beleza. Soares desabou e sumiu para dentro de uma das alcovas do apartamento. A arma do soldado atirou para cima, pegando a testa de Orfeu de raspão, destruindo seus óculos. Orfeu, por sua vez, derrubou o soldado com um chute, e este caiu em um dos sofás, o que, em outras circunstâncias, não seria tão ruim, se ele já não estivesse pegando fogo, por causa das balas que atingiram a parede.
Soares não tinha noção, porém, da deliciosamente caótica peça que acabara de criar. Estava mais preocupado em correr pela sua vida.
Cacete cacete fugir fugir fugir porraondetemumasaída
Correu para dentro da alcova, tentando se levantar em um movimento mal-preparado e desastrado com os braços e as pernas em alternação, caindo repetidamente.
Também guardou um segundo para perceber como aquela parte da casa era tão mal decorada quanto o resto.
O apartamento, além de sua feiúra, também tinha como característica o fato de ser bem mais complexo do que á primeira vista. Consistia de um emaranhado de corredores que, na maioria das vezes, não davam em nenhum quarto; apenas em alcovas muito semelhantes àquela pela qual ele havia entrado, todas com uma pequena porta de persiana branca. Era, talvez, o labirinto de pior gosto estético já criado, mas relativamente útil como sede de uma organização terrorista.
Soares já podia sentir o cheiro da fumaça, quando abriu uma das milhares de portas e se deparou com algo... Diferente. Não um quarto, não um armário de vassouras, só o escuro.

Alguém se esquecera de instalar o elevador.