Capítulo
4
Apenas
uma coisa poderia me fazer sentir melhor naquele momento: uma brisa suave,
batendo no meu rosto e me fazendo esquecer do calor que ficava concentrado no
meu capacete.
É
claro, o calor equatorial de Fortaleza era tão poderoso que mantinha o vento
como refém, impedindo o de circular. O ar lá era úmido, grudento. Ensebava a
pele.
Eu
passara um mês na Amazônia, durante o verão, e ainda por cima um verão
especialmente quente; e ainda parecia impossível se acostumar com esse clima,
sem dúvida mais ameno que o de lá. O calor massacrava nossas nucas, inundava
nossos uniformes de suor, e, com os capacetes forrados que usávamos, acredito
que também não fossem uma influência muito positiva para nossa saúde mental.
Chegando nos arredores da cidade à bordo de um jipe, pensei ter visto, na beira
da estrada, uma fazenda grande e plana, porém miserável e amarelada, seca e
morta. Mas não era isso a verdadeira singularidade dessa fazenda, não senhor.
Interessante mesmo é o que havia dentro de seus muros: Centenas de homens nus e
de quatro, pastando na grama esparsa.
Talvez
eu esteja mesmo precisando de ajuda.
*****
Havíamos
chegado à um porto seguro, mas, fora dele, a guerra continuava. Pelo menos era
o que me dizia o Coronel Sutherland, com suas sobrancelhas grossas de taturana
transparecendo por debaixo dos óculos escuros de aviador. Como ele falava!
Quando me passava a palavra, era sempre para fazer um pergunta. Era um tipo bem
patriótico, provavelmente havia lutado na Segunda Guerra Mundial. Perguntou-me
muito sobre a minha família, e se eles estavam orgulhosos do que estava fazendo
pelo meu país. Respondi apenas que meu irmão caíra de cabeça no trabalho e
minha mãe morrera, então a única pessoa que poderia se interessar no meu
trabalho era meu pai. Isso também era uma mentira. Meu pai caíra em desgraça
desde o assassinato de minha mãe e compensava a sensação de impotência com
bebida. Também preferia Johnny à mim, já que seu emprego envolvia capturar
malfeitores de todos os tipos nas ruas de nossa cidade, Detroit. Era sua
cruzada pessoal contra os culpados do assassinato de mamãe, jamais pegos, e que
ele havia projetado sobre Johnny. Um homem muito charmoso.
Menti
para o Coronel apenas para que ele acreditasse que não estava zombando dele.
Duas pessoas desinteressadas pelo futuro do país na mesma família ainda estava
valendo, mas três? Quem eu achava que era afinal?
Era só
eu terminar uma frase que Sutherland desatinava à falar. E continuou falando e
falando sobre a importância de servir a América, e, usando uma metáfora que, eu
tenho certeza, ele havia passado um bocado de tempo formulando e por isso havia
precisado encher tanta lingüiça, avisou-me que meu pai deveria mesmo ter
orgulho de mim, já que ao passo que meu irmão tornava a América segura para os
“verdadeiros americanos”, eu estava tornando o mundo seguro para a Humanidade.
“Nós somos a polícia do mundo”, ele chegou à dizer. “O comunismo é um crime, e
nós estamos trabalhando para solucioná-lo.” Era uma analogia interessante. Mas
não mais interessante do que veio depois, isso é certo. Após talvez quarenta
minutos exaltando as virtudes de nossa nação, Sutherland finalmente passou para
uma conversa mais prática, dizendo que, além de minha evidente bravura na
defesa de nosso posto de observação, havia outra coisa que não podia ser
negada: o fato de que, apesar de nosso valor, coragem, intrepidez e de estarmos
indubitavelmente do lado certo da história, estávamos sendo forçados à recuar
em todas as frentes. Nosso exército estava ganhando todas as batalhas,
destruindo todos os acampamentos da Frente Nacionalista Brasileira, capturando
suas armas pesadas e distribuindo as leves a nossos aliados. E ainda assim,
faltava algo. Mesmo após a nossa grande retirada da Amazônia, os ataques
prosseguiram, e na verdade, ficaram mais fortes do que nunca: aparentemente, o
ataque ao nosso posto avançado havia sido apenas uma diminuta parte de uma
ofensiva que havia se iniciado por todo o Brasil interior, com direção ao
litoral, este ainda em nossas mãos. O plano original, de nos mandar em uma
retirada estratégica para que iniciássemos uma ofensiva com o objetivo de
recuperar contato terrestre com Brasília agora não era mais realista. Ao invés
disso, assumiríamos uma posição defensiva na costa. À essa altura, acreditava
que seria mandado para Natal. Era um dos portos mais importantes da Região
Nordeste, e, se caísse nas mãos dos comunas, o Ceará ficaria isolado do resto do
território sob nosso controle. Foi por isso que me surpreendi quando ele disse
“Salvador”.
Salvador?
-“Sim,
Salvador”- ele disse, com uma expressão séria.
Não
sabia muito sobre Salvador. Tinha algumas noções básicas, que pegava com meus
subordinados. A primeira, que era uma cidade grande, o que se podia deduzir
pelo fato que além de Natal, a cidade na qual a maior quantidade de tropas
dizia ter desembarcado era Salvador. Outras noções importantes eram a comida
apimentada e com uma tendência à dar dores de barriga, e as mulheres fogosas e
belas, de pele negra. Por esses relatos imaginava que não seria muito diferente
de Nova Orléans.
O
capitão Leslie “Bubba” Burns era um grande admirador das mulheres de lá e dizia
ter tirado a sorte grande com 4. Ele sempre contava essas histórias com grande
detalhe e um jeito fascinante de deixá-las muito mais interessantes do que
realmente eram, coisa da qual eu não sou capaz. Grande cara, esse Bubba. Hoje,
seu intestino está em algum lugar do Rio Xingu.
Segundo
o Coronel, devia ir para lá pois as coisas estavam especialmente complicadas.
Grupos estranhos rondavam os arredores da cidade e a Represa Ipitanga I, e três
atentados mal-sucedidos haviam ocorrido lá desde Setembro passado. Havia também
um tipo de guerra urbana entre nossos aliados cristãos e uma guerrilha
comunista ainda não identificada.
Foi aí
que Sutherland disse que eu iria por mar, pois por terra seria muito perigoso.
O
destino soube escolher o momento certo para maximizar a ironia, pois, nesse
momento, nós ouvimos um barulho. Era uma explosão. E depois outra. E mais uma.
Era uma série de explosões, ininterrupta, sem data para parar, deixando apenas
um breve momento para a hesitação entre cada barulho, antes de demolir essa
hesitação com mais uma explosão.
Sem me
importar muito mais com o que Sutherland estava dizendo, corri para a porta.
Ele parece ter entendido que compreender o que estava acontecendo também era
parte de seu trabalho, porque eu ouvi seus passos pesados e cansados atrás de
mim.
O ambiente
lá fora traía os barulhos que havíamos ouvido. O céu continuava de um azul
resplandecente, e o sol, brilhando como nunca, começava uma leve descida para o
oeste. As ruas, ainda que esburacadas e mal cuidadas, tinham a aparência
bucólica de uma cidade pequena, assim como as casas e lojinhas à nossa volta.
Porém, bastava virar a esquina para entender o que havia acontecido.
O
escritório de Sutherland ficava à um quarteirão do porto, onde, no dia seguinte,
eu embarcaria rumo à Salvador. Ao invés disso, o que se via à um quarteirão do
escritório de Sutherland era uma gigantesca fogueira.
O porto
era modesto, mas mesmo essa modéstia havia sido arrasada. Alguns poucos
guindastes instalados pelo Exército jaziam caídos no mar. O orgulhoso pátio de
concreto que se avançava sobre o oceano estava agora repleto de buracos, e seus
contêineres eram estruturas retorcidas e chamuscadas, longe dos blocos sérios e
rígidos de apenas cinco minutos antes.
Eu
tinha que ser rápido para ajudar quem quer que tivesse se machucado-e com
certeza, eram muitos- mas uma visão me perturbou. Era uma van, pintada com uma
meia-dúzia de cores diferentes e vários sinais que eu vira pela última vez em
um livro sobre religiões orientais que eu pegara emprestado na biblioteca
municipal. A porta da van estava aberta, e, sentados no chão dela, os pés
apoiados no chão, estavam eles. Dois daqueles cabeludos, um homem e uma mulher-
ou seriam duas mulheres? Dava para ver um terceiro no fundo. Saía fumaça da
van, mas meu instinto e a capacidade de raciocínio simples me avisava que não
era um incêndio.
Meu pai
tinha um ódio profundo desses jovens, que eu não qualifico de irracional
simplesmente porque consigo entendê-lo. Para ele, eram crianças ricas que
gostavam de gastar seu tempo fumando, bebendo, cantarolando coisas boiolas
sobre amor livre e a paz na terra. Segundo meu pai eram também especialistas em
zombar de pessoas decentes, trabalhadoras e proletárias- como a nossa família.
Em suma, representavam tudo que tinha de errado com o mundo.
Eu me
tratei de afastar aqueles pensamentos e voltar ao trabalho.
Porque
tinha me tornado soldado, afinal de contas? Virar policial teria comprado o
amor de meu pai, como Johnny havia feito. Talvez ter dois filhos tentando fazer
voltar atrás o relógio e trazer de volta a mamãe através da captura ou morte de
dezenas de ladrõezinhos comuns, traficantes de drogas e estupradores teria
alegrado o meu pai da maneira que um filho fazendo tudo isso não podia. Quem
sabe assim, ele teria visto mais na vida do que uma mera sequência de decepções
e, com menos mágoas para afogar, teria largado a bebida, o que o faria
recuperar o emprego na fábrica. Seríamos afinal, uma família feliz, e tudo que
precisava ter feito era virar policial.
Ah, é
claro, tem a lei da conscrição, o que faz com que tivesse que entrar no
Exército de qualquer maneira. É, porque sonhar com essas besteiras, o que
poderia ter ocorrido, as conseqüências de pequenas mudanças no passado e tudo
mais? É uma perda de tempo.
Deve
ser a droga do sol.