segunda-feira, 20 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 5


Capítulo 4


Apenas uma coisa poderia me fazer sentir melhor naquele momento: uma brisa suave, batendo no meu rosto e me fazendo esquecer do calor que ficava concentrado no meu capacete.
É claro, o calor equatorial de Fortaleza era tão poderoso que mantinha o vento como refém, impedindo o de circular. O ar lá era úmido, grudento. Ensebava a pele.
Eu passara um mês na Amazônia, durante o verão, e ainda por cima um verão especialmente quente; e ainda parecia impossível se acostumar com esse clima, sem dúvida mais ameno que o de lá. O calor massacrava nossas nucas, inundava nossos uniformes de suor, e, com os capacetes forrados que usávamos, acredito que também não fossem uma influência muito positiva para nossa saúde mental. Chegando nos arredores da cidade à bordo de um jipe, pensei ter visto, na beira da estrada, uma fazenda grande e plana, porém miserável e amarelada, seca e morta. Mas não era isso a verdadeira singularidade dessa fazenda, não senhor. Interessante mesmo é o que havia dentro de seus muros: Centenas de homens nus e de quatro, pastando na grama esparsa.
Talvez eu esteja mesmo precisando de ajuda.

*****


Havíamos chegado à um porto seguro, mas, fora dele, a guerra continuava. Pelo menos era o que me dizia o Coronel Sutherland, com suas sobrancelhas grossas de taturana transparecendo por debaixo dos óculos escuros de aviador. Como ele falava! Quando me passava a palavra, era sempre para fazer um pergunta. Era um tipo bem patriótico, provavelmente havia lutado na Segunda Guerra Mundial. Perguntou-me muito sobre a minha família, e se eles estavam orgulhosos do que estava fazendo pelo meu país. Respondi apenas que meu irmão caíra de cabeça no trabalho e minha mãe morrera, então a única pessoa que poderia se interessar no meu trabalho era meu pai. Isso também era uma mentira. Meu pai caíra em desgraça desde o assassinato de minha mãe e compensava a sensação de impotência com bebida. Também preferia Johnny à mim, já que seu emprego envolvia capturar malfeitores de todos os tipos nas ruas de nossa cidade, Detroit. Era sua cruzada pessoal contra os culpados do assassinato de mamãe, jamais pegos, e que ele havia projetado sobre Johnny. Um homem muito charmoso.
Menti para o Coronel apenas para que ele acreditasse que não estava zombando dele. Duas pessoas desinteressadas pelo futuro do país na mesma família ainda estava valendo, mas três? Quem eu achava que era afinal?
Era só eu terminar uma frase que Sutherland desatinava à falar. E continuou falando e falando sobre a importância de servir a América, e, usando uma metáfora que, eu tenho certeza, ele havia passado um bocado de tempo formulando e por isso havia precisado encher tanta lingüiça, avisou-me que meu pai deveria mesmo ter orgulho de mim, já que ao passo que meu irmão tornava a América segura para os “verdadeiros americanos”, eu estava tornando o mundo seguro para a Humanidade. “Nós somos a polícia do mundo”, ele chegou à dizer. “O comunismo é um crime, e nós estamos trabalhando para solucioná-lo.” Era uma analogia interessante. Mas não mais interessante do que veio depois, isso é certo. Após talvez quarenta minutos exaltando as virtudes de nossa nação, Sutherland finalmente passou para uma conversa mais prática, dizendo que, além de minha evidente bravura na defesa de nosso posto de observação, havia outra coisa que não podia ser negada: o fato de que, apesar de nosso valor, coragem, intrepidez e de estarmos indubitavelmente do lado certo da história, estávamos sendo forçados à recuar em todas as frentes. Nosso exército estava ganhando todas as batalhas, destruindo todos os acampamentos da Frente Nacionalista Brasileira, capturando suas armas pesadas e distribuindo as leves a nossos aliados. E ainda assim, faltava algo. Mesmo após a nossa grande retirada da Amazônia, os ataques prosseguiram, e na verdade, ficaram mais fortes do que nunca: aparentemente, o ataque ao nosso posto avançado havia sido apenas uma diminuta parte de uma ofensiva que havia se iniciado por todo o Brasil interior, com direção ao litoral, este ainda em nossas mãos. O plano original, de nos mandar em uma retirada estratégica para que iniciássemos uma ofensiva com o objetivo de recuperar contato terrestre com Brasília agora não era mais realista. Ao invés disso, assumiríamos uma posição defensiva na costa. À essa altura, acreditava que seria mandado para Natal. Era um dos portos mais importantes da Região Nordeste, e, se caísse nas mãos dos comunas, o Ceará ficaria isolado do resto do território sob nosso controle. Foi por isso que me surpreendi quando ele disse “Salvador”.
Salvador?
-“Sim, Salvador”- ele disse, com uma expressão séria.
Não sabia muito sobre Salvador. Tinha algumas noções básicas, que pegava com meus subordinados. A primeira, que era uma cidade grande, o que se podia deduzir pelo fato que além de Natal, a cidade na qual a maior quantidade de tropas dizia ter desembarcado era Salvador. Outras noções importantes eram a comida apimentada e com uma tendência à dar dores de barriga, e as mulheres fogosas e belas, de pele negra. Por esses relatos imaginava que não seria muito diferente de Nova Orléans.
O capitão Leslie “Bubba” Burns era um grande admirador das mulheres de lá e dizia ter tirado a sorte grande com 4. Ele sempre contava essas histórias com grande detalhe e um jeito fascinante de deixá-las muito mais interessantes do que realmente eram, coisa da qual eu não sou capaz. Grande cara, esse Bubba. Hoje, seu intestino está em algum lugar do Rio Xingu.
Segundo o Coronel, devia ir para lá pois as coisas estavam especialmente complicadas. Grupos estranhos rondavam os arredores da cidade e a Represa Ipitanga I, e três atentados mal-sucedidos haviam ocorrido lá desde Setembro passado. Havia também um tipo de guerra urbana entre nossos aliados cristãos e uma guerrilha comunista ainda não identificada.
Foi aí que Sutherland disse que eu iria por mar, pois por terra seria muito perigoso.
O destino soube escolher o momento certo para maximizar a ironia, pois, nesse momento, nós ouvimos um barulho. Era uma explosão. E depois outra. E mais uma. Era uma série de explosões, ininterrupta, sem data para parar, deixando apenas um breve momento para a hesitação entre cada barulho, antes de demolir essa hesitação com mais uma explosão.
Sem me importar muito mais com o que Sutherland estava dizendo, corri para a porta. Ele parece ter entendido que compreender o que estava acontecendo também era parte de seu trabalho, porque eu ouvi seus passos pesados e cansados atrás de mim.
O ambiente lá fora traía os barulhos que havíamos ouvido. O céu continuava de um azul resplandecente, e o sol, brilhando como nunca, começava uma leve descida para o oeste. As ruas, ainda que esburacadas e mal cuidadas, tinham a aparência bucólica de uma cidade pequena, assim como as casas e lojinhas à nossa volta. Porém, bastava virar a esquina para entender o que havia acontecido.
O escritório de Sutherland ficava à um quarteirão do porto, onde, no dia seguinte, eu embarcaria rumo à Salvador. Ao invés disso, o que se via à um quarteirão do escritório de Sutherland era uma gigantesca fogueira.
O porto era modesto, mas mesmo essa modéstia havia sido arrasada. Alguns poucos guindastes instalados pelo Exército jaziam caídos no mar. O orgulhoso pátio de concreto que se avançava sobre o oceano estava agora repleto de buracos, e seus contêineres eram estruturas retorcidas e chamuscadas, longe dos blocos sérios e rígidos de apenas cinco minutos antes.
Eu tinha que ser rápido para ajudar quem quer que tivesse se machucado-e com certeza, eram muitos- mas uma visão me perturbou. Era uma van, pintada com uma meia-dúzia de cores diferentes e vários sinais que eu vira pela última vez em um livro sobre religiões orientais que eu pegara emprestado na biblioteca municipal. A porta da van estava aberta, e, sentados no chão dela, os pés apoiados no chão, estavam eles. Dois daqueles cabeludos, um homem e uma mulher- ou seriam duas mulheres? Dava para ver um terceiro no fundo. Saía fumaça da van, mas meu instinto e a capacidade de raciocínio simples me avisava que não era um incêndio.
Meu pai tinha um ódio profundo desses jovens, que eu não qualifico de irracional simplesmente porque consigo entendê-lo. Para ele, eram crianças ricas que gostavam de gastar seu tempo fumando, bebendo, cantarolando coisas boiolas sobre amor livre e a paz na terra. Segundo meu pai eram também especialistas em zombar de pessoas decentes, trabalhadoras e proletárias- como a nossa família. Em suma, representavam tudo que tinha de errado com o mundo.
Eu me tratei de afastar aqueles pensamentos e voltar ao trabalho.
Porque tinha me tornado soldado, afinal de contas? Virar policial teria comprado o amor de meu pai, como Johnny havia feito. Talvez ter dois filhos tentando fazer voltar atrás o relógio e trazer de volta a mamãe através da captura ou morte de dezenas de ladrõezinhos comuns, traficantes de drogas e estupradores teria alegrado o meu pai da maneira que um filho fazendo tudo isso não podia. Quem sabe assim, ele teria visto mais na vida do que uma mera sequência de decepções e, com menos mágoas para afogar, teria largado a bebida, o que o faria recuperar o emprego na fábrica. Seríamos afinal, uma família feliz, e tudo que precisava ter feito era virar policial.
Ah, é claro, tem a lei da conscrição, o que faz com que tivesse que entrar no Exército de qualquer maneira. É, porque sonhar com essas besteiras, o que poderia ter ocorrido, as conseqüências de pequenas mudanças no passado e tudo mais? É uma perda de tempo.
Deve ser a droga do sol.

domingo, 19 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 4


Capítulo 3


Alguma coisa havia dado muito errado, mas Soares ainda não sabia direito o que.
Como isso tudo tinha acontecido? Há trinta e seis horas, ele estava caminhando, feliz, após ter saboreado um queijo quente(Saborear seria no entanto uma palavra exagerada já que o dito-cujo, ou dito-queijo, nem estava tão bom), sem preocupações quanto ao resto do seu dia, de sua vida, ou aquelas próximas trinta e seis horas. Agora, estava em frente há uma multidão de talvez 20 mil pessoas, gritando slogans subversivos, e o pior de tudo, dividindo um palco com Nara Leão e Raul Seixas. Ah, e Ernesto “Che” Guevara provavelmente também estava em algum lugar por aí.
Frente aos gritos da multidão, uma pessoa qualquer perderia todo o foco e concentração, e se esqueceria desses detalhes à primeira vista desimportantes e inclusive muitos outros. Mas aquela não era uma pessoa qualquer, e sim M. Soares, Detetive Particular.
Um coquetel de suor, ansiedade, cachaça ruim e culinária à base de azeite de dendê começou à se formar em uma zona que ia de sua testa à sua barriga, e, sob os olhos menosprezantes de Nara Leão, se conjugou em um liquidificador de humores entorpecedor que trouxe todas as memórias dessas últimas trinta e seis horas de volta à tona.
Começou com um distintivo. E um Detetive Soares tão suado quanto ele estava agora.

*****


Soares terminara de saborear seu sanduíche de queijo quente e agora se preparava para voltar, tomando todo o tempo possível, para seu escritório. Ainda era de manhã e o dia estava belo, radiante, azul e solar- além de surpreendentemente ameno para uma cidade habitualmente infernal como Salvador.
Adentrou o prédio- Edifício n°505, vulgo João Pessoa-e deparou-se com a primeira má notícia do dia: O corredor modernista que levava ao elevador do prédio, geralmente escuro e mal-iluminado como somente a arquitetura modernista sabe ser, estava dessa vez pura e simplesmente negro. “Outro corte de luz”, amaldiçoou, pontuando sua exclamação, após uma pausa mental, com “Merda.”
Se preparou para dar meia volta e partir novamente para a cidade. Seus braços calorosos e brisas frescas o chamavam.
Pensou porém quase que imediatamente em Sara. E se ela já tivesse chegado?
Segue abaixo uma dramatização do diálogo mental entre duas partes opostas do cérebro de Soares, sendo que uma, de nome Consciência 1, é à favor de ele ignorar seus deveres e voltar para a rua, e a outra, Consciência 2, é à favor dele voltar para o escritório.(Adicionalmente, se essa for a vontade do leitor, poderá representar Consciência 1 como um diabinho e Consciência 2 como um anjinho, ambos flutuando sobre um ombro diferente de Soares)
CONSCIÊNCIA 1:  Blá blá blá, e se Sara tiver chegado? E se quem liga? Esse não é o trabalho dela afinal de contas, chegar cedo, cuidar da papelada e tudo mais? Ela já se atrasou, você deveria é, isso sim, demití-la.
CONSCIÊNCIA 2: Estás maluco? É o dever dele voltar para o escritório; que exemplo ele estaria dando à Sara? Se ela perceber que o seu patrão é malandro, ela vai começar à chegar cada vez mais tarde. Ah, e “E se quem liga” está gramaticalmente incorreta.
CONSCIÊNCIA 1: E se e daí? Eu sou a consciência do mal que não oferece opiniões razoáveis, posso perfeitamente dizer frases gramaticalmente incorretas. Bom, voltando ao assunto, o clima lá fora está delicioso, coisa que é rara nesses tempos. O camarada aqui embaixo acabou de comer um sanduíche de queijo muito do vagaba, e dificilmente vai ter estômago(com perdão do trocadilho) de subir essa escadaria, que ainda por cima está escura e com cheiro de urina.
CONSCIÊNCIA 2: Mas o nosso dinheiro está acabando! Imagina se tiver chegado um cliente endinheirado pedindo para que espiemos a filha dele para ver se ela está saindo com um namorado hippie? Isso resolveria todos os nossos problemas financeiros.
CONSCIÊNCIA 1: Evasão, evasão!            Você não respondeu sobre demitirmos a Sara. Ela é obviamente incompetente, e, com todas as refugiadas do interior enchendo as ruas da cidade, achar uma substituta não vai ser difícil. Secretárias precisam no máximo saber ler e atender ao telefone.
CONSCIÊNCIA 2: É, mas... a Sara é um broto legal.
CONSCIÊNCIA 1: ...
CONSCIÊNCIA 2: Sim?
CONSCIÊNCIA 1: Tá bom, tá bom, vamos subir.

E, findo o combate interno no inconsciente de Soares, ele subiu.

*****


Soares amaldiçoou o próprio nome e sua consciência enquanto dava os seus últimos passos para fora da escadaria cheirando à urina e à o que mais tivessem esquecido nela.
Andou matematicamente, sem pensar duas vezes ou sequer olhar, para seu escritório, respirando fundo e suando. Mas foi ao se aproximar que percebeu que havia algo de errado; ele apenas não conseguia definir o que.
Os seus olhos tinham se apegado tão fortemente à visão que tinha no dia à dia do lado de fora de seu escritório(uma porta de madeira manchada e de qualidade duvidosa, em cujo centro pendurava-se uma pequena placa de metal com os dizeres DR. SOARES, DETETIVE PARTICULAR. ) que eles a modificavam para essa versão “rotineira” automaticamente, mesmo que houvesse alguma coisa diferente- por exemplo, se ela tivesse sido derrubada.
Nesse dia em particular, a porta não havia sido derrubada, mas estava entreaberta. Soares só percebeu isso, finalmente pondo fim à sua charada sobre o que estava diferente afinal de contas, quando tentou enfiar sua chave no buraco e ela simplesmente empurrou a porta. Nesse momento seu cérebro sofreu um indetectável estalo e Soares se preparou para ver qualquer coisa do outro lado da porta, de Sara à um ladrão comum roubando sua... papelada? É, porque não.

*****


-Ora, olá, doutor Soares!
A voz que disse essa frase grave, uniforme e ecoante, digna de um tenor. Ela vinha de um homem moreno e corpulento, de pele oleosa, quase gosmenta. Trajava um sobretudo cinza e um chapéu, espetacularmente inapropriados para essa cidade, ainda que o dia fosse ameno. Mas não era nisso que Soares estava pensando. A frase amigável e cordial dita pelo sujeito não era adaptada à seu tom de voz, severo, sério. A entonação bizarra e fora de lugar transformou uma saudação à princípio perfeitamente comum em uma frase que se assumia como desnecessária, o prelúdio supérfluo de assuntos mais sérios e com conseqüências dramáticas.
-Oh, olá- disse Soares, descartando esses pensamentos em uma patada.
-Como vai?-disse o homem, mantendo o mesmo tom de voz desconfortável.
-Bem, bem- mentiu Soares. Ele não estava bem; na verdade, aquela conversa estava fazendo com que o queijo-quente que comera se debatesse em seu estômago.
-Excelente- respondeu o sujeito, com um sorriso largo. Ele tirou então seu chapéu brilhoso e cinza e seu par de óculos escuros, e sua expressão mudou para outra, mais séria, quase instantaneamente. Curiosamente, debaixo de seu grosso par de óculos escuros, havia um segundo par.
-Eu adoraria continuar falando sobre o dia, Doutor Soares- disse, mantendo um olhar de austera impassividade- Mas não temos tempo para isso. Ao invés disso, vim fazer para você uma proposta.
Nesse ponto, evitando contato visual direto com o homem, Soares andou até a mesa que normalmente era de Sara e nela se sentou, pondo os pés na mesa e as mãos no bolso.
-Não sei se sabe, mas eu não estou exatamente na ativa- respondeu secamente Soares.
O homem riu. Uma risada baixa, gutural.
-Não deseja nem ouvir a proposta?
-Hum...-cogitou Soares, brincando com o bigode fino que cultivava sobre os lábios.- Se por isso você estiver dizendo que poderei fingir que estou interessado, então sim, quero ouví-la.
O homem, suando mais do que nunca, a sua pele derretendo como uma massa oleosa, sorriu mais uma vez enquanto limpava os óculo no sobretudo.
-Não sei se você entendeu direito. Homens, podem entrar.
A porta bateu com força contra a parede. Três figuras entraram na sala com passos pesados, tonitruantes. Em poucos segundos, antes que  Soares pudesse sequer pensar em uma rota de fuga, os três haviam formado um círculo em volta da mesa de Sara. Um deles, usando o característico uniforme verde-oliva do Exército Americano, apontou um rifle para o seu pescoço. Os outros dois eram tipos pálidos, cinzentos quase, trajando ternos negros elegantes e longilíneos. Por alguns segundos, Soares pôde jurar que eles eram quase idênticos.
-Mostre a mala- disse o primeiro à chegar, de um gesto de mão menosprezante.
Um dos homens de preto de fato trazia consigo uma grande e escura mala, que ele jogou sobre a mesa com violência.
Ele continuou à encará-lo por detrás dos óculos escuros, os lábios curvados e endurecidos demonstrando um profundo desprezo, ou talvez apenas uma tática de intimidação psicológica.
-Abra-disse o primeiro homem, sério, quase como se tivesse uma intenção de acabar com isso logo.. O coração de Soares começou à bater cada vez mais forte, ao ponto de quase estourar. O homem de preto, de uma mão lenta e sinuosa, abriu lentamente a mala, perfurando Soares com seu pesado olhar. Soares então viu o conteúdo da mala.

Estava vazia.
Soares percebeu que seu corpo tinha afundado na dura e desconfortável cadeira de Sara, na qual estava agora praticamente deitado. Reergueu-se, suspirando com força.
-Como você pode ver, doutor Soares- disse o homem de sobretudo, recolocando os óculos- essa mala está vazia. Sabe porque?
Soares, nesse momento tinha certeza de que estava lidando não com uma autoridade responsável e sim com algum tipo de maluco, então simplesmente mexeu a cabeça de um lado para o outro.
-Excelente, eu queria mesmo dar essa explicação. Veja só, essa mala está vazia porque normalmente deveria haver algo nela! Só que como essa coisa não existe, a mala não pode ser preenchida. Essa coisa de que estou falando é, para sua informação, Dr. Soares, a sua permissão para exercer sua profissão de detetive particular.
“Esse cara é maluco”-pensou Soares, enquanto tentava encontrar uma desculpa crível para poder fugir de lá o mais rápido possível. Encontrou uma logo.-Puxa, hem... que situação desagradável, né?- disse, entre uma risada amarela e outra.-Mas isso tudo é um grandíssimo engano. Grandíssimo engano. Se puderem gentilmente tirar essa arma do meu pescoço, eu posso ir lá dentro e procurar a...
-Boa tentativa, Soares! Realmente brilhante. É realmente uma pena que já arrombamos a porta do seu escritório e procuramos por lá antes, então sabemos que você não tem permissão porra nenhuma.
-Não, eu tenho sim! Espera aí, vocês o que?
-Williams, Butt.- berrou o de sobretudo. Soares ficou temporariamente cego, e quando recobrou a visão, alguns segundos depois, estava com o rosto sobre a mesa, e uma ardência forte na cabeça. O maldito soldado lhe dera uma coronhada de rifle- felizmente, de leve.
-Entenda, Soares- disse o de sobretudo, acendendo um cigarro com um isqueiro prateado e falando entre baforadas.-Eu poderia te matar agora, mas seria muito simples, quase... sem graça. Tenho domínio total sobre você. Ao invés disso, agora que nós sabemos que você não possui permissão alguma para continuar dirigindo esse negócio xexelento, podemos tirá-lo de você, e você terá uma punição mais lenta e cruel que a morte: será forçado à vagar as ruas e mendigar para as mesmas pessoas que desprezava, sendo reduzido à um mero excremento da sociedade. Ah, e daí nós te matamos.
-Mas qual é o propósito de tudo isso?- choramingou Soares em pânico.- O que vocês querem de mim?
O homem de sobretudo se ergueu, e olhando para a parede, disse, de uma voz ainda mais grave que normalmente:
-Poder. O poder puro, simples, absoluto.
-Isso é sério?
-É claro que não! Eu só estou fazendo troça com essa sua cara de imbecil. Quer dizer, é verdade que o poder absoluto é sempre o nosso objetivo. A salvação da democracia, do capitalismo e do cristianismo são o bônus. Mas não, o verdadeiro motivo é muito mais simples. Nossa inteligência militar diz que você cometeu muitos crimes além de praticar o seu negócio sem licença. O problema é; tanto suas proezas como investigador particular como seus... “outros talentos” são muito úteis para nós.
-E o que... vocês querem que eu faça?- disse Soares massageando levemente o calombo que tinha na cabeça e que parecia estar crescendo.
-É simples. Talvez você já tenha ouvido falar desse sujeito.
O homem de sobretudo assentiu para um dos homens de preto, que tirou do bolso uma fotografia 2X4, em preto e branco e ligeiramente amassada.
-Olha... - disse Soares, sem ter certeza.
-Esse é Cassius Zumbi Mandela Wesizwe.- disse, interrompendo Soares.- Os relatos da maioria das pessoas que tem contato com ele e que pudemos contatar são quase unânimes em dizer que ele chegou na cidade há uns três anos atrás, em abril de 65. À princípio, não era ninguém; mas nos últimos nove meses tem crescido em influência e poder entre a população negra de Salvador. Ele propõe uma mistura estranha de ideologias; comunismo com besteirol racial, se quiser.
-O pior dos dois mundos?-Adicionou Soares, esperando fazer uma nota espirituosa. O homem de sobretudo não riu.
-É mais ou menos isso, mesmo. Pelo que podemos entender por alguns panfletos que tem sido distribuídos por aí, ele vê os negros como a classe oprimida do Brasil. A revolução, além de social, deveria ser racial, e os negros herdariam a Terra por serem os descendentes de escravos que trabalharam o campo sob o sol enquanto os brancos descansavam.
-Minha nossa.
-Foi mais ou menos a minha reação também. O fato é, apesar de sua visão no mínimo genocida da guerra atual, ele tem conseguido angariar seguidores, e estes se reúnem em um prédio na Praia do Porto. As escutas que botamos lá sugerem que eles estão planejando algo grande... para amanhã à noite.
-Amanhã à noite?! Cacete, não podia ter avisado mais cedo não?!
O homem de sobretudo enxugou o suor do rosto com a luva de couro grosso. Ele parecia ser feito só de água.- Descobrimos a primeira menção desse “evento” tem 2 dias. Foi tempo de definirmos nossa estratégia, escolhermos um detetive para nos ajudar na operação, arrombarmos o seu escritório em busca de provas incriminatórias e então cooptá-lo para que se juntasse à nós.
Um certo silêncio se instalou, com o homem de sobretudo olhando para o vazio por alguns instantes enquanto Soares continuava cutucando o galo em sua cabeça.
-Mas uma coisa eu não entendi- perguntou Soares, agora já mais calmo- Esse cara odeia brancos, certo? Como eu sou suposto me infiltrar no grupo dele ou chegar perto o suficiente para poder saber de qualquer coisa?
O homem de sobretudo mais uma vez riu gravemente. Os homens de preto e os soldados continuaram impassíveis, sólidos como rocha. Sem nenhum senso de humor, embora o senso de humor de seu chefe fosse no mínimo... peculiar.
-É impressionante não é? Alguns minutos sob o meu domínio e você já começa à ficar passivo, cooperativo, amigável, tentando criar algum tipo de conexão emocional com o seu reles carcereiro. É um efeito interessante que eu produzo nas pessoas. Penso em chamar de... Síndrome do Capitão Orfeu.
Soares revirou os olhos.
-Você não acha que o fato de eu estar aceitando essa minha situação lastimável tem mais à ver com o fato de minhas únicas alternativas serem morrer de fome na rua ou morrer, ponto?
O homem de sobretudo subitamente quase que transfigurou-se em outra pessoa, mais amigável.
-Ei ei ei, não diga isso. Não se trata de uma escolha de vida ou morte. Vou falar a verdade pra você: Pareces um cara simpático e nós devíamos tomar um chopp ou ir à praia, qualquer dia desses, sabe. Trocar umas idéias. Jogar conversa fora. Quando a guerra acabar. Eu não ligo pra guerra, e nem pros comunistas pra ser sincero. Se eles quiserem usar camisas vermelhas e doar uns manuais de guerrilha aos índios, eu não ligo. Também não ligo pros americanos. Esses americanos aqui do meu lado, eles só conhecem algumas palavras que eu ensinei há 3 dias. O recruta Williams aqui do lado, por exemplo, não sabe nem a palavra em português pra ‘Butt’.
Soares, de súbito, ficou sem ver novamente. Sentiu uma porrada na nuca e um filete de sangue escorrendo pelos cabelos.
-...Que, talvez você saiba, é a palavra em inglês para “coronhada”. Enfim, o fato é, se você nos ajudar nessa missão, o Cassius vai estar acabado, e essa guerra pode acabar no ano que vem; se o Hubert Humphrey ganhar as eleições nos Estados Unidos e os reforços que o Johnson prometeu chegarem, nós derrotamos todos os vermelhos no máximo até 1970. E acabar com essa guerra o mai cedo possível é uma das melhores coisas que possamos fazer agora pelo nosso país.
Soares levando uma cabeça, e, com uma dor fulgurante no crânio, interrompeu-o:
-Você ainda não disse o que tem pra mim.
-Ah, é verdade. Desculpe. É que às vezes eu me empolgo com a perspectiva de realizar algo tangível e parar nos livros de história do mundo todo. Sem problemas. Enfim, como eu disse, quando a guerra acabar, e todas essas guerrilhas irritantes pelo país forem derrotadas, o Rio de Janeiro vai voltar à ser um lugar habitável rapidinho. Sabemos como você gosta de lá, então eu conversei com o General Westmoreland e ele disse que te dará uma casa no bairro de sua preferência, e uma generosa pensão para a vida toda.
No meio disso tudo, Soares só conseguia pensar: “E onde está essa Sara, que não chega?”
-Aceito- disse ele, sem pensar muito.
-Excelente!
-Mas eu tenho um pedido antes de começarmos.
-Ah... sim, diga.
-Me traz um curativo, que eu acho que o meu cérebro pode vazar à qualquer momento.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 3


Capítulo 25

Freude!
A Nona Sinfonia de Beethoven se iniciava mais uma vez, alardeada pela rádio do metrô cheio. As palavras em alemão chamaram brevemente a atenção daqueles ali presentes, mas a banalidade de ouvir uma sinfonia do mestre alemão no transporte público, principalmente a mais batida, logo fez com que tudo voltasse à apatia costumeira.
Camilla Buri está entre essas pessoas, sentada em um dos assentos acolchoados do trem, protegida do freqüentemente obsceno calor do verão de Salvador pelo ar-condicionado, instalado dentro dos trens e em todos os cantos das diversas estações de metrô.
-Próxima parada, Estação Aurora. Desembarque pelo lado direito. Atenção para o vão entre trem e a plataforma.- uma voz metálica anunciou, e, como muitos, Camilla levantou a cabeça de sua leitura: o jornal cotidiano O Trabalhador, distribuído em português e espanhol, incluindo as melhores republicações de notícias do Pravda. Data: 1° de Dezembro de 1997.
Como de costume, havia pouco de interessante no jornal. A maioria das notícias falava de assuntos internacionais, e sequer eram notícias internacionais chamativas. Nova rodada de negociações entre o Presidente dos Estados Unidos e o Secretário-Geral do Partido Comunista da República Californiana, recessão piora na China, Embaixador Soviético confirma presença na Festa da Música Baiana, cachorro resgata garotinha de poço. Chato.
Camilla enrolou o jornal e guardou-o na bolsa, caso quisesse ler depois. Sua mão encostou em uma coisa dura. Enfiando a mão na bolsa, pôde sentir sua superfície lisa, e com um gesto, tirou de dentro dela um livro.
O Mundo é um enigma, de Umberto Eco. Era um autor italiano que fizera algum sucesso nos anos 80 ao defender o socialismo na Itália, então o último grande país da Europa Ocidental que não tinha assinado algum tipo de acordo com a União Soviética. Lembrava vagamente de ter lido um ou outro poema de sua autoria naquela época- a mídia naquela época ainda imprimia diligentemente qualquer coisa relacionada ao socialismo e que soasse elogioso.
Mas o que realmente a interessava no livro era o fato de ser uma autobiografia, contendo os detalhes mais suculentos da vida do autor: Isso incluía, sem dúvida, o motivo de sua nebulosa e controversa renúncia à Presidência do Conselho Europeu pela Cooperação, Desenvolvimento e Socialismo. O motivo oficial é de que renunciara por humildade: era “apenas um autor” e não tinha idéia de como administrar uma organização tão importante.
O livro ainda não fora publicado na Itália, e, na verdade, em lugar nenhum. Camilla iria terminar de ler o livro e decidir se seu conteúdo era, digamos, “seguro” o suficiente para ser publicado.
Acontece que Camilla é uma editora para a Saber do Povo, responsável pela edição de títulos de todos os tipos na região Nordeste da República Popular do Brasil. A censura fora oficialmente abolida em 1981, quando se julgou que todos os inimigos interno e traidores da nação haviam sido erradicados. É claro, muitos diretores de editoras continuavam sendo membros do Partido, e, para ser promovido dentro do Partido, era melhor evitar irritar muita gente.
As portas do trem se abriram. Estação Aurora: entraram de uma vez só talvez uma dúzia de crianças vestidas de calças curtas, camisa branca e um lenço vermelho ao redor do pescoço. Pequenos Curupiras, os mais jovens membros do Partido. Camilla fora uma deles, mas não consegue se lembrar de quase nada de seu período com os Curupiras. Visões turvas de tendas sendo porcamente montadas, sol escaldante, uma colher com pirão indo na boca de uma velhinha, não, senhora, fecha a boca que é mais fácil, sol escaldante, aprender a atirar com um rifle, infelizmente falso, picada de mosquito.
Os Curupiras começaram a cantar. Mais uma de suas músicas falando de caminhadas e de aventura, o que seria menos bizarro se eles não estivessem todos parados. E menos chato, se eles não estivessem plantados do lado de Camilla.
Beethoven. Curupiras. Um duelo até a morte para ver quem conseguia superar o outro.
Retornou ao seu livro. Tipicamente, lia três manuscritos por dia, mas para esse estava dedicando mais atenção. Começara pelos últimos capítulos, para ver se encontrava alguma menção do incidente. Até agora, nada.
Absorta que estava no livro, se esqueceu de sua estação. Não ajudou o fato que os Curupiras continuaram cantando por cima da voz metálica da anunciante.
Guardou o manuscrito na bolsa e se levantou, dizendo Com licença e abrindo caminho entre os partidários mirins e uma ou outra pessoa lendo jornal. Por sorte, havia apenas mais ou menos um quilômetro de distância entre a estação e a Editora onde trabalhava, embora a perspectiva de cobrir essa distância não animasse Camilla ás sete da manhã.
A Estação, uma caverna de concreto pintada de branco, era decorada por painéis colossais, pastiches de Portinari, misturados á estética do Realismo Socialista. Caboclos de peito largo, empunhando enxadas e rifles, seguindo uma figura que carrega uma enorme bandeira vermelha. Um emaranhado de escadas rolantes transportava pessoas para dentro da caverna e para o mundo lá em cima. Beethoven continuava sua sinfonia.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 2


Capítulo 2


Os tiros me fizeram acordar de sobressalto. Olhei para o meu despertador, caído no chão, virado para o teto: 4 da manhã. Os tiros não pararam; ao invés disso, se intensificaram, e o espaço de tempo entre as rajadas diminuiu ao mesmo tempo em que seu barulho aumentava. A companhia corria ao meu redor em um agito frenético.
Era mais uma daquelas noites.
Agarrei o mais rápido que pude minhas calças, que estavam guardadas e dobradas debaixo da cama, e, tentando me equilibrar sobre uma única perna, amarrei minha jaqueta camuflada.
Quase toda a companhia já tinha deixado o dormitório, e eu agora podia ouvir a alternância dos tiros dos rifles M-16 com... pareciam ser Kalashnikovs, mas posso estar enganado. Precisava acelerar.

*****


Em cerca de 30 segundos estava pronto. Era rápido até para mim.
A porta do dormitório dava diretamente para o pátio, que dava diretamente para o grande portão de entrada. Não era necessário um binóculo para perceber que havia uma poderosa força invasora tentando realizar um ataque frontal.
Conseguia distinguir talvez uma centena de soldados na escuridão correndo em nossa direção, sem qualquer tipo de proteção- ou estratégia. Esses comunistas nunca aprendem mesmo.
Fiz um sinal para três homens que estava correndo à esmo procurando uma posição. Acreditava conhecer um deles; era franzino, seu rosto era ossudo e tinha sobrancelhas grossas, o que o tornava bastante semelhante ao Major Sullivan. Mas não, era mais provável que fossem voluntários patriotas com apenas dois neurônios de algum cafundó esquecido no Arkansas ou na Geórgia. Lá eles eram o orgulho da família; aqui, eram bucha de canhão.
Com balas voando por toda parte, nos reunimos atrás de um jipe. Ordenei, com meu bom humor característico e que cultivava desde minha chegada ao Brasil para manter a moral em alta, que dessem cobertura à mim e à eles mesmos, não como o resto dos idiotas que ficavam petrificados na frente dos vermelhos, como que esperando levar um tiro. Deveriam preservar a sua pele atrás do jipe ao mesmo tempo em que matavam o maior número de cucarachas possíveis, o que me daria tempo suficiente para dar partida no jipe, que por sua vez nos daria poder de fogo suficiente para ganhar essa batalha.
No começo tudo estava dando certo, sem levar em conta, é claro, todas as balas que voavam por cima de mim. Era possível ouvir distintamente as cucarachas caindo uma após a outra no chão, e o barulho das Kalashnikovs foi diminuindo. Mas então um som começou á dominar todos os outros: o ronco de um motor. E não vinha do jipe.
Levantei ligeiramente a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas uma luz cegou meus olhos. Nesse exato momento, ouvi algumas vozes gritando atrás de minha nuca, e algo me pegando pelo pescoço.
O ronco cresceu e se tornou um estrondo. Tudo que se seguiu foi muito rápido.
Subitamente eu fui projetado para trás, não só pelo que estava me agarrando mas por um impacto que eu não sabia dizer de onde tinha vindo. Quando dei por mim estava de costas no chão. Tinha levado um baque e minhas costelas doíam como se eu tivesse sido atropelado. O que eu precisei entender nos segundos seguintes é que isso era precisamente o que tinha acontecido.
A dor excruciante ainda era motivo de risada perto de minha juventude jocosa, e por ISS me levantei pouco depois sem nenhum esforço. Demorou um pouco mais, porém, para recobrar a visão, ainda sob efeito do baque e misturando uma brancura possivelmente ligada à falta de sangue circulando por poucos segundos na minha cabeça, com vários pontinhos coloridos e brilhantes, possivelmente ligados à Deus-sabe-o-que.
Mas logo, quando mais um dos recrutas me balançou como um boneco de pano e me fez o sinal de me deitar no chão, eu recobrei meus sentidos e pude ver o que acontecera. Era uma moto. Uma moto, sabe-se lá como, havia conseguido impulso suficiente para se lançar no ar e aterrissara sobre o jipe no exato momento em que eu tentava acioná-lo. O Sullivan de mentirinha me salvara, e agora... agora estava preso sob a moto? Puta merda.

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É, o recruta estava sob a moto. Sem pensar duas vezes, me joguei sobre a moto e tentei levantá-la. Meu esforço, porém, não surtiu nenhum efeito. Olhando para trás, chamei o outro recruta, que parecia ter deixado crescer alguns cachos ruivos sob o capacete.
Antes que ele pudesse chegar, porém, senti algo sob a moto. Não era uma coisa viva.
           
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Mais um tiro, mas desta vez, ele vinha de perto. Olhei para trás, e pude ver que meu instinto não me falhara desta vez. O recruta ruivo foi ao chão com a perna sangrando.
A reação quase-automática foi olhar para baixo.
Era de fato uma segunda coisa viva com Sullivan. Um cucaracha soltando um rio de sangue pela sobrancelha, obviamente agonizante. Porém, o que tinha no braço era mais importante; um revólver calibre 38 com o qual acabara de ferir, possivelmente de maneira fatal, o recruta ruivo.
Vi que ele estava tentando brandir o revólver em minha direção. O ruivo era provavelmente apenas o aperitivo, e depois da prática ele iria tentar o jogo de verdade.
Tentei não lhe dar essa chance, sem ser injusto. Levantei meu joelho o mais alto que pude e pisei com força e com minha bota em seu antebraço. Pude ouvir o barulho sonoro de ossos rachando. No ponto. O infeliz, que parecia ter seus 30 e poucos anos, ficou choramingando. O próximo passo foi dar-lhe uma coronhada com o M-16, à nível do olho.
Estava me sentindo vivo e cheio de energia, e a depressão que acomete quem vê a morte de perto ainda não se abatera sobre mim. Ao contrário, estava leve e eufórico. Dei três tiros no ar, só por dar, soltando um uivo que comemorava o meu poder guerreiro.
Três homens logo apareceram e eu tive que escapar de minha ilusão. Nos juntamos e levantamos a moto, recuperando os cadáveres do cucaracha e do Sullivan.
Subi então na canhoneira da moto, enquanto um dos outros homens dirigia. Olhando de perto, pude ver que era George Halliwell, capaz com esse tipo e equipamento pesado, o que significava que estava em boas mãos. Com a confianças nas alturas e sentindo em minhas mãos uma máquina de matar possante, comecei á atirar.
Atravessamos o portão principal, com o jipe atropelando sem dificuldades fileira após fileira de comunas. Enquanto isso, eu atirava. E atrava. E atirava mais. Com cada tiro a metralhadora tremia e esquentava, e um cucaracha ia ao chão. Ou quase isso, afinal eu tenho certeza que gastei muito mais balas aquela noite do que matei cucarachas. Mas isso não importava, afinal eram as balas gastas e o chute que a máquina dava que forneciam a verdadeira emoção.
Tenho certeza que vi pelo menos alguns vermelhos não com armas de verdade-e por isso eu entendo até as malditas Kalashnikovs- e sim com utensílios de cozinha, facões, ancinhos, enxadas pontiagudas e sacos que acreditava serem frondas. Ocasionalmente, via um cucaracha com uma arma de fogo que possuía um brilho especial ao luar em sua ponta- era uma baioneta artesanal, uma faca de caça acoplada à uma espingarda.
O jipe semeou o caos entre os comunas, cujo ataque frontal começou à derreter e se transformar em uma retirada desajeitada, uma fuga para todos as direções que não conduzissem à base. Eu não estava mais atirando em um exército, e sim em uma multidão.
A fuga tornou tudo mais fácil, pois os comunas não estavam mais atirando, apenas correndo para os cantos de um círculo em cujo centro eu estava. Pude atirar panoramicamente enquanto o resto da força invasora se escondia na mata densa de palmeiras.

*****


O jipe deu meia-volta e eu e Halliwell descemos, recebendo uma acolhida de heróis. Quase toda a nossa base estava n pátio e comemorava a vitória atirando para cima. Havia alguns feridos, mas nada muito sério-e de fato, mesmo que houvessem centenas de feridos, nossa base contava com um centro médico de qualidade.
Ou ao menos, era isso que eu achava, até ouvir o estrondo.
Todos na base se viraram ao mesmo tempo para um único ponto, seus rostos iluminados pela luz alaranjada do fogo.
Era o hospital da base. Suas janelas quebradas cuspiam labaredas que elas próprias pareciam engolir o ar à sua volta, formando uma parede de chamas e de fumaça. Podíamos ver, forçando um pouco os olhos, os muitos remédios e frascos lá dentro, submetidas à fúria do fogo, rachando e escurecendo com o calor.
Algum cucaracha devia ter entrado na base com um coquetel Molotov ou outro explosivo enquanto enfrentávamos o ataque no portão. Engenhoso. Mais engenhoso do que poderia ter imaginado, vindo dos cucarachas.
Mas não adiantava fingir que parte da culpa não era minha. Havia subestimado os comunas, mas isso não iria acontecer de novo.
Sem um hospital para curar os soldados, essa vitória não valia de nada. Já era dificilmente uma vitória, já que nosso objetivo naquela base era recuar- sim, recuar. Para cada homem que perdíamos, eles perdiam cinqüenta, mas isso não impedia queseus ataques prosseguissem com um fanatismo suicida. Quanto mais atirávamos, mais bombas jogávamos, menos efeito parecia ter, e mais fortes eles ficavam. A missão na Amazônia havia sido um desastre- a tentativa de abrir um novo front na maior floresta tropical da Terra esbarrou em todos os problemas possíveis: falta de suprimentos e preparação, e uma hostilidade de todas as forças possíveis, fossem elas animais, vegetais, bacterianas ou humanas. Todas estavam unidas com a preocupação de nos matar. Eu havia chegado tarde no front Amazônico, mas o que vi me deu medo. Uma tropa reduzida à procurar por comida em árvores ou roubar de habitantes locais, dividindo fardas e roupas de baixo, sem se barbear há semanas. Meus subordinados riam de mim quando eu tentava impor a disciplina, e meus superiores me aconselhavam à desistir de fazê-lo.        
Passávamos a maior parte de nosso tempo atirando em inimigos invisíveis. Atirávamos quando havia inimigos, quando achávamos que poderiam haver inimigos escondidos, e às vezes, atirávamos por atirar. Nem sabíamos porque. Raramente víamos qualquer comunista na floresta; atirávamos porque, acredito, mantinha a moral em alta, e nos dava algo para fazer nas longas viagens de barco que fazíamos.
A operação fracassara totalmente, e, após um único mês na Amazônia, recebi ordens de retirada. E não seria uma retirada pequena; toda a força do Exército dos Estados Unidos  iria abandonar a Amazônia, e seria realocado para vários lugares no Brasil. Assim esperava-se que o colapso de nossa moral combatente na Amazônia seria compensado pela chegada de tropas “frescas” nas outras zonas de ocupação, e que a causa comunista seria enfraquecida por ter que ocupar nossas velhas bases na Amazônia.
Balela. Após uma única noite em uma base no Estado do Maranhão, estávamos sendo atacados por uma centena de cucarachas que destruíram nosso hospital. Essa retirada tinha sido fatal para nossas forças- uma fatalidade cara e sangrenta. Enquanto isso, nosso inimigo ficava mais forte. ‘Zil, como chamávamos, ainda ia engolir muitos garotos.