domingo, 19 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 4


Capítulo 3


Alguma coisa havia dado muito errado, mas Soares ainda não sabia direito o que.
Como isso tudo tinha acontecido? Há trinta e seis horas, ele estava caminhando, feliz, após ter saboreado um queijo quente(Saborear seria no entanto uma palavra exagerada já que o dito-cujo, ou dito-queijo, nem estava tão bom), sem preocupações quanto ao resto do seu dia, de sua vida, ou aquelas próximas trinta e seis horas. Agora, estava em frente há uma multidão de talvez 20 mil pessoas, gritando slogans subversivos, e o pior de tudo, dividindo um palco com Nara Leão e Raul Seixas. Ah, e Ernesto “Che” Guevara provavelmente também estava em algum lugar por aí.
Frente aos gritos da multidão, uma pessoa qualquer perderia todo o foco e concentração, e se esqueceria desses detalhes à primeira vista desimportantes e inclusive muitos outros. Mas aquela não era uma pessoa qualquer, e sim M. Soares, Detetive Particular.
Um coquetel de suor, ansiedade, cachaça ruim e culinária à base de azeite de dendê começou à se formar em uma zona que ia de sua testa à sua barriga, e, sob os olhos menosprezantes de Nara Leão, se conjugou em um liquidificador de humores entorpecedor que trouxe todas as memórias dessas últimas trinta e seis horas de volta à tona.
Começou com um distintivo. E um Detetive Soares tão suado quanto ele estava agora.

*****


Soares terminara de saborear seu sanduíche de queijo quente e agora se preparava para voltar, tomando todo o tempo possível, para seu escritório. Ainda era de manhã e o dia estava belo, radiante, azul e solar- além de surpreendentemente ameno para uma cidade habitualmente infernal como Salvador.
Adentrou o prédio- Edifício n°505, vulgo João Pessoa-e deparou-se com a primeira má notícia do dia: O corredor modernista que levava ao elevador do prédio, geralmente escuro e mal-iluminado como somente a arquitetura modernista sabe ser, estava dessa vez pura e simplesmente negro. “Outro corte de luz”, amaldiçoou, pontuando sua exclamação, após uma pausa mental, com “Merda.”
Se preparou para dar meia volta e partir novamente para a cidade. Seus braços calorosos e brisas frescas o chamavam.
Pensou porém quase que imediatamente em Sara. E se ela já tivesse chegado?
Segue abaixo uma dramatização do diálogo mental entre duas partes opostas do cérebro de Soares, sendo que uma, de nome Consciência 1, é à favor de ele ignorar seus deveres e voltar para a rua, e a outra, Consciência 2, é à favor dele voltar para o escritório.(Adicionalmente, se essa for a vontade do leitor, poderá representar Consciência 1 como um diabinho e Consciência 2 como um anjinho, ambos flutuando sobre um ombro diferente de Soares)
CONSCIÊNCIA 1:  Blá blá blá, e se Sara tiver chegado? E se quem liga? Esse não é o trabalho dela afinal de contas, chegar cedo, cuidar da papelada e tudo mais? Ela já se atrasou, você deveria é, isso sim, demití-la.
CONSCIÊNCIA 2: Estás maluco? É o dever dele voltar para o escritório; que exemplo ele estaria dando à Sara? Se ela perceber que o seu patrão é malandro, ela vai começar à chegar cada vez mais tarde. Ah, e “E se quem liga” está gramaticalmente incorreta.
CONSCIÊNCIA 1: E se e daí? Eu sou a consciência do mal que não oferece opiniões razoáveis, posso perfeitamente dizer frases gramaticalmente incorretas. Bom, voltando ao assunto, o clima lá fora está delicioso, coisa que é rara nesses tempos. O camarada aqui embaixo acabou de comer um sanduíche de queijo muito do vagaba, e dificilmente vai ter estômago(com perdão do trocadilho) de subir essa escadaria, que ainda por cima está escura e com cheiro de urina.
CONSCIÊNCIA 2: Mas o nosso dinheiro está acabando! Imagina se tiver chegado um cliente endinheirado pedindo para que espiemos a filha dele para ver se ela está saindo com um namorado hippie? Isso resolveria todos os nossos problemas financeiros.
CONSCIÊNCIA 1: Evasão, evasão!            Você não respondeu sobre demitirmos a Sara. Ela é obviamente incompetente, e, com todas as refugiadas do interior enchendo as ruas da cidade, achar uma substituta não vai ser difícil. Secretárias precisam no máximo saber ler e atender ao telefone.
CONSCIÊNCIA 2: É, mas... a Sara é um broto legal.
CONSCIÊNCIA 1: ...
CONSCIÊNCIA 2: Sim?
CONSCIÊNCIA 1: Tá bom, tá bom, vamos subir.

E, findo o combate interno no inconsciente de Soares, ele subiu.

*****


Soares amaldiçoou o próprio nome e sua consciência enquanto dava os seus últimos passos para fora da escadaria cheirando à urina e à o que mais tivessem esquecido nela.
Andou matematicamente, sem pensar duas vezes ou sequer olhar, para seu escritório, respirando fundo e suando. Mas foi ao se aproximar que percebeu que havia algo de errado; ele apenas não conseguia definir o que.
Os seus olhos tinham se apegado tão fortemente à visão que tinha no dia à dia do lado de fora de seu escritório(uma porta de madeira manchada e de qualidade duvidosa, em cujo centro pendurava-se uma pequena placa de metal com os dizeres DR. SOARES, DETETIVE PARTICULAR. ) que eles a modificavam para essa versão “rotineira” automaticamente, mesmo que houvesse alguma coisa diferente- por exemplo, se ela tivesse sido derrubada.
Nesse dia em particular, a porta não havia sido derrubada, mas estava entreaberta. Soares só percebeu isso, finalmente pondo fim à sua charada sobre o que estava diferente afinal de contas, quando tentou enfiar sua chave no buraco e ela simplesmente empurrou a porta. Nesse momento seu cérebro sofreu um indetectável estalo e Soares se preparou para ver qualquer coisa do outro lado da porta, de Sara à um ladrão comum roubando sua... papelada? É, porque não.

*****


-Ora, olá, doutor Soares!
A voz que disse essa frase grave, uniforme e ecoante, digna de um tenor. Ela vinha de um homem moreno e corpulento, de pele oleosa, quase gosmenta. Trajava um sobretudo cinza e um chapéu, espetacularmente inapropriados para essa cidade, ainda que o dia fosse ameno. Mas não era nisso que Soares estava pensando. A frase amigável e cordial dita pelo sujeito não era adaptada à seu tom de voz, severo, sério. A entonação bizarra e fora de lugar transformou uma saudação à princípio perfeitamente comum em uma frase que se assumia como desnecessária, o prelúdio supérfluo de assuntos mais sérios e com conseqüências dramáticas.
-Oh, olá- disse Soares, descartando esses pensamentos em uma patada.
-Como vai?-disse o homem, mantendo o mesmo tom de voz desconfortável.
-Bem, bem- mentiu Soares. Ele não estava bem; na verdade, aquela conversa estava fazendo com que o queijo-quente que comera se debatesse em seu estômago.
-Excelente- respondeu o sujeito, com um sorriso largo. Ele tirou então seu chapéu brilhoso e cinza e seu par de óculos escuros, e sua expressão mudou para outra, mais séria, quase instantaneamente. Curiosamente, debaixo de seu grosso par de óculos escuros, havia um segundo par.
-Eu adoraria continuar falando sobre o dia, Doutor Soares- disse, mantendo um olhar de austera impassividade- Mas não temos tempo para isso. Ao invés disso, vim fazer para você uma proposta.
Nesse ponto, evitando contato visual direto com o homem, Soares andou até a mesa que normalmente era de Sara e nela se sentou, pondo os pés na mesa e as mãos no bolso.
-Não sei se sabe, mas eu não estou exatamente na ativa- respondeu secamente Soares.
O homem riu. Uma risada baixa, gutural.
-Não deseja nem ouvir a proposta?
-Hum...-cogitou Soares, brincando com o bigode fino que cultivava sobre os lábios.- Se por isso você estiver dizendo que poderei fingir que estou interessado, então sim, quero ouví-la.
O homem, suando mais do que nunca, a sua pele derretendo como uma massa oleosa, sorriu mais uma vez enquanto limpava os óculo no sobretudo.
-Não sei se você entendeu direito. Homens, podem entrar.
A porta bateu com força contra a parede. Três figuras entraram na sala com passos pesados, tonitruantes. Em poucos segundos, antes que  Soares pudesse sequer pensar em uma rota de fuga, os três haviam formado um círculo em volta da mesa de Sara. Um deles, usando o característico uniforme verde-oliva do Exército Americano, apontou um rifle para o seu pescoço. Os outros dois eram tipos pálidos, cinzentos quase, trajando ternos negros elegantes e longilíneos. Por alguns segundos, Soares pôde jurar que eles eram quase idênticos.
-Mostre a mala- disse o primeiro à chegar, de um gesto de mão menosprezante.
Um dos homens de preto de fato trazia consigo uma grande e escura mala, que ele jogou sobre a mesa com violência.
Ele continuou à encará-lo por detrás dos óculos escuros, os lábios curvados e endurecidos demonstrando um profundo desprezo, ou talvez apenas uma tática de intimidação psicológica.
-Abra-disse o primeiro homem, sério, quase como se tivesse uma intenção de acabar com isso logo.. O coração de Soares começou à bater cada vez mais forte, ao ponto de quase estourar. O homem de preto, de uma mão lenta e sinuosa, abriu lentamente a mala, perfurando Soares com seu pesado olhar. Soares então viu o conteúdo da mala.

Estava vazia.
Soares percebeu que seu corpo tinha afundado na dura e desconfortável cadeira de Sara, na qual estava agora praticamente deitado. Reergueu-se, suspirando com força.
-Como você pode ver, doutor Soares- disse o homem de sobretudo, recolocando os óculos- essa mala está vazia. Sabe porque?
Soares, nesse momento tinha certeza de que estava lidando não com uma autoridade responsável e sim com algum tipo de maluco, então simplesmente mexeu a cabeça de um lado para o outro.
-Excelente, eu queria mesmo dar essa explicação. Veja só, essa mala está vazia porque normalmente deveria haver algo nela! Só que como essa coisa não existe, a mala não pode ser preenchida. Essa coisa de que estou falando é, para sua informação, Dr. Soares, a sua permissão para exercer sua profissão de detetive particular.
“Esse cara é maluco”-pensou Soares, enquanto tentava encontrar uma desculpa crível para poder fugir de lá o mais rápido possível. Encontrou uma logo.-Puxa, hem... que situação desagradável, né?- disse, entre uma risada amarela e outra.-Mas isso tudo é um grandíssimo engano. Grandíssimo engano. Se puderem gentilmente tirar essa arma do meu pescoço, eu posso ir lá dentro e procurar a...
-Boa tentativa, Soares! Realmente brilhante. É realmente uma pena que já arrombamos a porta do seu escritório e procuramos por lá antes, então sabemos que você não tem permissão porra nenhuma.
-Não, eu tenho sim! Espera aí, vocês o que?
-Williams, Butt.- berrou o de sobretudo. Soares ficou temporariamente cego, e quando recobrou a visão, alguns segundos depois, estava com o rosto sobre a mesa, e uma ardência forte na cabeça. O maldito soldado lhe dera uma coronhada de rifle- felizmente, de leve.
-Entenda, Soares- disse o de sobretudo, acendendo um cigarro com um isqueiro prateado e falando entre baforadas.-Eu poderia te matar agora, mas seria muito simples, quase... sem graça. Tenho domínio total sobre você. Ao invés disso, agora que nós sabemos que você não possui permissão alguma para continuar dirigindo esse negócio xexelento, podemos tirá-lo de você, e você terá uma punição mais lenta e cruel que a morte: será forçado à vagar as ruas e mendigar para as mesmas pessoas que desprezava, sendo reduzido à um mero excremento da sociedade. Ah, e daí nós te matamos.
-Mas qual é o propósito de tudo isso?- choramingou Soares em pânico.- O que vocês querem de mim?
O homem de sobretudo se ergueu, e olhando para a parede, disse, de uma voz ainda mais grave que normalmente:
-Poder. O poder puro, simples, absoluto.
-Isso é sério?
-É claro que não! Eu só estou fazendo troça com essa sua cara de imbecil. Quer dizer, é verdade que o poder absoluto é sempre o nosso objetivo. A salvação da democracia, do capitalismo e do cristianismo são o bônus. Mas não, o verdadeiro motivo é muito mais simples. Nossa inteligência militar diz que você cometeu muitos crimes além de praticar o seu negócio sem licença. O problema é; tanto suas proezas como investigador particular como seus... “outros talentos” são muito úteis para nós.
-E o que... vocês querem que eu faça?- disse Soares massageando levemente o calombo que tinha na cabeça e que parecia estar crescendo.
-É simples. Talvez você já tenha ouvido falar desse sujeito.
O homem de sobretudo assentiu para um dos homens de preto, que tirou do bolso uma fotografia 2X4, em preto e branco e ligeiramente amassada.
-Olha... - disse Soares, sem ter certeza.
-Esse é Cassius Zumbi Mandela Wesizwe.- disse, interrompendo Soares.- Os relatos da maioria das pessoas que tem contato com ele e que pudemos contatar são quase unânimes em dizer que ele chegou na cidade há uns três anos atrás, em abril de 65. À princípio, não era ninguém; mas nos últimos nove meses tem crescido em influência e poder entre a população negra de Salvador. Ele propõe uma mistura estranha de ideologias; comunismo com besteirol racial, se quiser.
-O pior dos dois mundos?-Adicionou Soares, esperando fazer uma nota espirituosa. O homem de sobretudo não riu.
-É mais ou menos isso, mesmo. Pelo que podemos entender por alguns panfletos que tem sido distribuídos por aí, ele vê os negros como a classe oprimida do Brasil. A revolução, além de social, deveria ser racial, e os negros herdariam a Terra por serem os descendentes de escravos que trabalharam o campo sob o sol enquanto os brancos descansavam.
-Minha nossa.
-Foi mais ou menos a minha reação também. O fato é, apesar de sua visão no mínimo genocida da guerra atual, ele tem conseguido angariar seguidores, e estes se reúnem em um prédio na Praia do Porto. As escutas que botamos lá sugerem que eles estão planejando algo grande... para amanhã à noite.
-Amanhã à noite?! Cacete, não podia ter avisado mais cedo não?!
O homem de sobretudo enxugou o suor do rosto com a luva de couro grosso. Ele parecia ser feito só de água.- Descobrimos a primeira menção desse “evento” tem 2 dias. Foi tempo de definirmos nossa estratégia, escolhermos um detetive para nos ajudar na operação, arrombarmos o seu escritório em busca de provas incriminatórias e então cooptá-lo para que se juntasse à nós.
Um certo silêncio se instalou, com o homem de sobretudo olhando para o vazio por alguns instantes enquanto Soares continuava cutucando o galo em sua cabeça.
-Mas uma coisa eu não entendi- perguntou Soares, agora já mais calmo- Esse cara odeia brancos, certo? Como eu sou suposto me infiltrar no grupo dele ou chegar perto o suficiente para poder saber de qualquer coisa?
O homem de sobretudo mais uma vez riu gravemente. Os homens de preto e os soldados continuaram impassíveis, sólidos como rocha. Sem nenhum senso de humor, embora o senso de humor de seu chefe fosse no mínimo... peculiar.
-É impressionante não é? Alguns minutos sob o meu domínio e você já começa à ficar passivo, cooperativo, amigável, tentando criar algum tipo de conexão emocional com o seu reles carcereiro. É um efeito interessante que eu produzo nas pessoas. Penso em chamar de... Síndrome do Capitão Orfeu.
Soares revirou os olhos.
-Você não acha que o fato de eu estar aceitando essa minha situação lastimável tem mais à ver com o fato de minhas únicas alternativas serem morrer de fome na rua ou morrer, ponto?
O homem de sobretudo subitamente quase que transfigurou-se em outra pessoa, mais amigável.
-Ei ei ei, não diga isso. Não se trata de uma escolha de vida ou morte. Vou falar a verdade pra você: Pareces um cara simpático e nós devíamos tomar um chopp ou ir à praia, qualquer dia desses, sabe. Trocar umas idéias. Jogar conversa fora. Quando a guerra acabar. Eu não ligo pra guerra, e nem pros comunistas pra ser sincero. Se eles quiserem usar camisas vermelhas e doar uns manuais de guerrilha aos índios, eu não ligo. Também não ligo pros americanos. Esses americanos aqui do meu lado, eles só conhecem algumas palavras que eu ensinei há 3 dias. O recruta Williams aqui do lado, por exemplo, não sabe nem a palavra em português pra ‘Butt’.
Soares, de súbito, ficou sem ver novamente. Sentiu uma porrada na nuca e um filete de sangue escorrendo pelos cabelos.
-...Que, talvez você saiba, é a palavra em inglês para “coronhada”. Enfim, o fato é, se você nos ajudar nessa missão, o Cassius vai estar acabado, e essa guerra pode acabar no ano que vem; se o Hubert Humphrey ganhar as eleições nos Estados Unidos e os reforços que o Johnson prometeu chegarem, nós derrotamos todos os vermelhos no máximo até 1970. E acabar com essa guerra o mai cedo possível é uma das melhores coisas que possamos fazer agora pelo nosso país.
Soares levando uma cabeça, e, com uma dor fulgurante no crânio, interrompeu-o:
-Você ainda não disse o que tem pra mim.
-Ah, é verdade. Desculpe. É que às vezes eu me empolgo com a perspectiva de realizar algo tangível e parar nos livros de história do mundo todo. Sem problemas. Enfim, como eu disse, quando a guerra acabar, e todas essas guerrilhas irritantes pelo país forem derrotadas, o Rio de Janeiro vai voltar à ser um lugar habitável rapidinho. Sabemos como você gosta de lá, então eu conversei com o General Westmoreland e ele disse que te dará uma casa no bairro de sua preferência, e uma generosa pensão para a vida toda.
No meio disso tudo, Soares só conseguia pensar: “E onde está essa Sara, que não chega?”
-Aceito- disse ele, sem pensar muito.
-Excelente!
-Mas eu tenho um pedido antes de começarmos.
-Ah... sim, diga.
-Me traz um curativo, que eu acho que o meu cérebro pode vazar à qualquer momento.

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