Capítulo
1
-OLHA O
ACARAJÉ! ACARAJÉ FRESQUINHO!
O som
viajou da rua até a altura do apartamento, na Rua Padre Feijó, Bairro da Canela,
cidade de Salvador, República Legalista do Brasil, Mundo. Cruzou a varanda,
intrometeu-se pela janela entreaberta e reverberou com um estrondo pelas
paredes grosseiras pintadas com uma fina camada de cal. De lá seguiu, como que
tendo vida própria, mas na verdade limitando-se ao simples papel que a física
lhe prescrevera, até a cama que ficava no centro do quarto e à orelha de quem
nela dormia.
Essa
pessoa era o Detetive Particular Soares, e seu dia acabara de começar.
Resolveu
se levantar de uma vez. Em um raciocínio rápido, concluiu que, agora que o
grito matinal do homem dos Acarajés o fizera cruzar a fina porém quase
intransponível linha que existe entre o estado do sono e do meramente
sonolento, voltar à dormir seria penoso e prejudicial, pois significaria
fazê-lo perder mais algumas horas na cama, girando e tentando dormir, um verdadeiro
feito depois que se ouve um homem gritando sobre Acarajés às... 8 da manhã? 9?
Não importava muito. De qualquer jeito, esse raciocínio tão lógico e cristalino,
efetuado em uma hora em que sua mente funciona em geral lentamente, foi o
suficiente para que sentisse uma pequena pontada de orgulho.
-OLHA O
ACARAJÉ! É O MELHOR, É O MELHOR ACARAJÉ DA CIDADE!
Soares
saltou para fora da cama em um surto súbito de atividade, acreditando que isso
talvez fosse melhor para começar o dia. De cima de uma mesa de cabeceira
rústica, quase tosca, tirou um pequeno relógio. 9h31. Olhar o relógio era um
reflexo, mas o tempo deixara de importar há... há quanto tempo mesmo? Enfim.
Andou
trôpego pelo quarto, esperando que sangue fluísse para suas pernas e sua
cabeça, tentando pensar com sua falha mente matinal o que faria à seguir. Viu
algumas roupas no chão: calça amassada, camisa idem. Gravata feia. Estava bom o
suficiente. Provavelmente tinha roupas
melhores e mais limpas na pequena cômoda pseudo-colonial que ficava em frente à
cama, mas, mais uma vez, não importava muito. Dificilmente precisaria encontrar
alguém nesse dia, o que também tinha suas vantagens, como não precisar tomar
banho, e cultivar sua barba por fazer.
Se o
tempo e a aparência importavam tão pouco na vida de Soares era porque, na
verdade, essas são coisas com as quais você precisa se preocupar quando tem que
se relacionar com as pessoas, ou depende delas de alguma forma. O seu espelho
jamais dirá que você está com uma aparência horrível; apenas pessoas fazem
isso.
Soares
na verdade dependia sim, e muito, de outras pessoas, mas já tinha pensado em um
contra-argumento: as pessoas, talvez, não dependessem dele. Quando se é um
detetive particular, costuma-se pedir que donas de casa ou maridos ciumentos
dependam de você, afinal esse é o seu ganha-pão. Mas a vida parecia ter
planejado um rumo diferente para a carreira de Soares e, desde que ele abriu
seu pequeno consultório recebera, à cada semana, menos pedidos de trabalho que
na anterior.
No
início, o negócio até prosperava: a invasão acabara de ocorrer e os americanos
tinham dissolvido a polícia, supostamente repleta de elementos subversivos
esquerdistas, e haviam-na substituído por outra autoridade: a deles. Mas, como
sempre, havia uma certa diferença entre a promessa de estabilidade e segurança
dos americanos e a realidade. O efetivo de ocupação era pequeno e, depois de um
tempo, absorveu o jeitinho brasileiro. A corrupção começou à comer solta,
ajudada pelo fato de que a situação de guerra se traduzia em uma privação
permanente de tudo que todos precisavam- comida, água, gás.
O
Exército Americano passou à ter que cuidar de besteiras, como roubo de
galinhas, assaltos na calada da noite e todos os grandes problemas de uma
cidade com quase 1 milhão de habitantes. Os soldados não gostaram nem um pouco,
e a população, que ainda não criara confiança neles- e à cada dia se afastava
mais disso- precisava de novos heróis. Foi mais ou menos nessa época em que
começaram à surgir por toda a cidade, e, de fato, por todas as regiões ocupadas
pelos americanos e seus aliados da República Legalista do Brasil, a chamada
justiça paralela- privada, com uma moral geralmente dúbia e uma tendência à não
fazer perguntas quanto à origem do dinheiro dos seus contribuintes. Essa
miríade de pequenos consultórios de detetives particulares, milícias cascudas e
justiceiros noturnos tinha em suas fileiras muitos daqueles que trabalhavam
para a polícia até a instauração da Lei Marcial. Não eram muito confiáveis, mas
se tinha alguém de quem os habitantes de Salvador desconfiavam ainda mais era
dos estrangeiros de pele rosada e sotaque estranho, em seus uniformes verde
oliva. Se comparada com eles, a velha polícia tinha pelo menos a vantagem de
ser composta por Brasileiros. Os americanos logo souberam se adaptar à essa
situação, e rapidamente delegaram a área da segurança pública à Justiça
Paralela.
Isso
ocorrera há dois anos e alguns meses, mais ou menos na época em que Soares
chegara em Salvador. A abundância de casos, preocupações e chatices variadas
dos habitantes da cidade era absolutamente enorme na época, principalmente
porque, na ausência de qualquer autoridade competente, o reino do caos se estabelecera
e a cidade havia sido em grande parte tomada pelo crime. Mas a Justiça Paralela
fora rápida em matar sua galinha dos ovos de ouro, aniquilando as quadrilhas de
ladrões, assassinos e facínoras que haviam prosperado nessa terra sem lei.
Desde então, a fonte havia secado, o que não era ajudado pelo fato de Soares
nunca ter sido particularmente acolhedor com seus clientes.
“É”-pensou
Soares, vestindo-se rapidamente-“Quem disse que vida de profissional liberal é
fácil?”.
*****
Devidamente
vestido, Soares deixou seu pequeno quarto, atravessando seu escritório
moderadamente arrumado, certamente mais arrumado que o necessário, e a porta
que ficava de frente para sua escrivaninha, uma porta sofisticada, de madeira
escura, sobre a qual um retângulo havia sido grosseiramente escavado para dar
espaço à uma larga janela de vidro opaco, na qual estava escrito em uma
pretensiosa caligrafia negra: DR. SOARES, DETETIVE PARTICULAR. Soares não fazia
idéia de porque adicionara “Dr.” à seu título na porta, já que não tinha
pós-graduação em absolutamente nada. À qualquer hora, deveria mudar aquilo,
talvez pondo um ponto entre o D e o R, fingindo que se chama Dário Roberto, ou
algum nome pior. Também teria uma hora ou outra que lidar com o fato de que
quem entrasse no escritório veria a frase ,SERAOS .RD RALUCITRAP EVITETED, pois
ele fizera a caligrafia do lado de dentro de sua sala.
Atravessou
logo a terceira e última sala que compunha o seu lar, ou a coisa mais próxima
que ele tinha disso. Era uma sala de espera diminuta e discreta, com dois
bancos estofados cobertos de couro bege, e uma mesa no canto, na qual sua
secretária Sara recebia quem lá chegasse. Isso é, é o que ela faria, se não
tivesse desenvolvido uma tendência irritante para atrasos. Provavelmente havia
chegado à mesma conclusão do que Soares, no que tocava à questão da raridade
crescente dos clientes.
Fungando
pesadamente, desceu a escada do prédio, mal iluminada e cheirando à urina. A
chance de escorregar em uma poça mais úmida que as outras e de rolar escada
abaixo, porém, ainda eram menores que as de sofrer um acidente no elevador, em
pane constante devido à privação de eletricidade. Pelo menos, era isso que
Soares achava; era também uma maneira de justificar sua claustrofobia crescente,
motivo pelo qual passava cada vez menos tempo em seu escritório fechado e sem
janelas. Era um homem das ruas.
O lado
ruim, é claro, de ser um homem das ruas é que tornava a possibilidade de
esbarrar no homem dos Acarajés muito maior.
-OLHA O
ACARAJÉ! ACARAJÉ ACARAJÉ! O MAIS FRESQUINHO! OS MELHORES INGREDIENTES!
Saindo
de seu prédio, pôde enxergá-lo com o canto do olho. Passeava morosamente pela
rua, empurrando um carrinho, em cujo interior uma frigideira entoava um chiado
indefectível. Sem pensar duas vezes, virou-se e andou na direção oposta.
Soares
lembrava-se ainda nos mínimos detalhes da primeira vez em que se encontrou com
o homem dos Acarajés. Tinha acabado de chegar em Salvador, ainda morava em um
pequeno e insalubre hotel e seu consultório ainda não passava de uma mera
especulação. A cidade o fascinava; sua mistura de cheiros fortes, culturas,
cores de pele, hábitos, credos; morara no Brasil toda a sua vida, mas aquilo
para ele era um outro país, um outro planeta talvez. Principalmente, via a cidade
com o olhar do forasteiro que acabara de se instalar nela. Salvador não era uma
simples cidade; era um horizonte, um mar de oportunidades desconhecidas que
iriam saltar em sua direção, uma cornucópia de lugares e pessoas diferentes e
interessantes que ele deveria conquistar.
Nessa
época ainda tinha uma curiosidade juvenil quanto à cultura Bahiana,
especialmente sua famosa culinária. Assim, em um dia- o segundo, se se lembrava
bem- em que andava à esmo na cidade, com o objetivo deliberado de se perder, encontrou,
não muito longe do local em que futuramente viria à morar, aquele, o homem dos
Acarajés- Um senhor escuro e enrugado, de cabelos brancos densos e um sorris
banguela. Ansioso e emocionado de provar um prato típico, estendeu ao velho os
500 cruzeiros que pedira. Enquanto fritava a massa em azeite de dendê, dando-a
sua consistência amarronzada, explicava a história de como se mudara para
Salvador havia mais de duas décadas, nos tempos de Getúlio Vargas, conhecendo
uma famosa cozinheira Baiana, daquelas que se vestem com vário panos, e que,
desde sua morte, largara o velho emprego – qual era, ele não se preocupou em
dizer – para assumir sua função. Comentou também negativamente sobre as várias
mudanças que estavam acontecendo na cidade, e como tinha esperança que os
americanos ajeitassem as coisas.
Ao
terminar sua infindável ladainha, recheou o Acarajé com um camarão graúdo, e um
tipo de molho, entregando-o á Soares, que tascou-lhe uma tremenda dentada,
esperando por um lanche suculento e com o toque local.
Não foi
o que ele teve.
A
combinação de vários fatores ainda desconhecidos de Soares- a forte pimenta em
quantidade demasiada, o camarão ligeiramente estragado, um azeite de dendê de
qualidade inferior e excesso de tempo fritando a massa- contribuirão para um
gosto tão torpe que sua reação instintiva foi um gemido de agonia, que se
desdobrou em vários pedaços de massa de Acarajé voando de sua boca e acertando
o velho vendedor em cheio no rosto. Desde então, evitava sequer cruzar com o
homem dos Acarajés, quanto mais estabelecer contato visual. Fizera isso apenas
duas vezes depois do incidente e, em ambas, o vendedor lhe jogou um olhar capaz
de enregelar a espinha da Morte.
Assim,
tomando todo o tempo necessário-e o desnecessário também- Soares seguiu para a
padaria mais próxima. Comprou um queijo-quente e um café preto, e então voltou,
com igual lentidão, para seu escritório, se preparando para mais um dia de
ociosidade.
Oi Franco, a tete indicou o blog pro pessoal hoje, e so quero dizer que adorei todos os artigos que eu li, inclusive a parte 1 do seu romance( nao vou ler o resto por causa do sono mas vou continuar amanha), continue postando! enfim, so passei aqui pra dar uma força, deve ser agadavel receber comentarios em seu blog :) - manon
ResponderExcluirIxe, mas nem tinha visto esse comentário. Ando meio relapso. Bom, Manon, que bom que você está gostando! E sim, receber comentários é sempre uma surpresa agradável.
ExcluirEspero que esse blog continue te surpreendendo positivamente!
Olá Franco,
ResponderExcluirEstou lendo com atenção o seu romance. Espero que continue a nos brindar com a sua inteligência e talento. Um abraço e votos de muito sucesso. Jana
Ora ora Obrigado Jana! Eu diria que é uma honra receber um comentário de uma de minhas mentoras aqui. Obrigado pelos votos e espero que você goste do romance! :)
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