quarta-feira, 15 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 1


Capítulo 1


-OLHA O ACARAJÉ! ACARAJÉ FRESQUINHO!
O som viajou da rua até a altura do apartamento, na Rua Padre Feijó, Bairro da Canela, cidade de Salvador, República Legalista do Brasil, Mundo. Cruzou a varanda, intrometeu-se pela janela entreaberta e reverberou com um estrondo pelas paredes grosseiras pintadas com uma fina camada de cal. De lá seguiu, como que tendo vida própria, mas na verdade limitando-se ao simples papel que a física lhe prescrevera, até a cama que ficava no centro do quarto e à orelha de quem nela dormia.
Essa pessoa era o Detetive Particular Soares, e seu dia acabara de começar.
Resolveu se levantar de uma vez. Em um raciocínio rápido, concluiu que, agora que o grito matinal do homem dos Acarajés o fizera cruzar a fina porém quase intransponível linha que existe entre o estado do sono e do meramente sonolento, voltar à dormir seria penoso e prejudicial, pois significaria fazê-lo perder mais algumas horas na cama, girando e tentando dormir, um verdadeiro feito depois que se ouve um homem gritando sobre Acarajés às... 8 da manhã? 9? Não importava muito. De qualquer jeito, esse raciocínio tão lógico e cristalino, efetuado em uma hora em que sua mente funciona em geral lentamente, foi o suficiente para que sentisse uma pequena pontada de orgulho.
-OLHA O ACARAJÉ! É O MELHOR, É O MELHOR ACARAJÉ DA CIDADE!
Soares saltou para fora da cama em um surto súbito de atividade, acreditando que isso talvez fosse melhor para começar o dia. De cima de uma mesa de cabeceira rústica, quase tosca, tirou um pequeno relógio. 9h31. Olhar o relógio era um reflexo, mas o tempo deixara de importar há... há quanto tempo mesmo? Enfim.
Andou trôpego pelo quarto, esperando que sangue fluísse para suas pernas e sua cabeça, tentando pensar com sua falha mente matinal o que faria à seguir. Viu algumas roupas no chão: calça amassada, camisa idem. Gravata feia. Estava bom o suficiente. Provavelmente tinha         roupas melhores e mais limpas na pequena cômoda pseudo-colonial que ficava em frente à cama, mas, mais uma vez, não importava muito. Dificilmente precisaria encontrar alguém nesse dia, o que também tinha suas vantagens, como não precisar tomar banho, e cultivar sua barba por fazer.
Se o tempo e a aparência importavam tão pouco na vida de Soares era porque, na verdade, essas são coisas com as quais você precisa se preocupar quando tem que se relacionar com as pessoas, ou depende delas de alguma forma. O seu espelho jamais dirá que você está com uma aparência horrível; apenas pessoas fazem isso.
Soares na verdade dependia sim, e muito, de outras pessoas, mas já tinha pensado em um contra-argumento: as pessoas, talvez, não dependessem dele. Quando se é um detetive particular, costuma-se pedir que donas de casa ou maridos ciumentos dependam de você, afinal esse é o seu ganha-pão. Mas a vida parecia ter planejado um rumo diferente para a carreira de Soares e, desde que ele abriu seu pequeno consultório recebera, à cada semana, menos pedidos de trabalho que na anterior.
No início, o negócio até prosperava: a invasão acabara de ocorrer e os americanos tinham dissolvido a polícia, supostamente repleta de elementos subversivos esquerdistas, e haviam-na substituído por outra autoridade: a deles. Mas, como sempre, havia uma certa diferença entre a promessa de estabilidade e segurança dos americanos e a realidade. O efetivo de ocupação era pequeno e, depois de um tempo, absorveu o jeitinho brasileiro. A corrupção começou à comer solta, ajudada pelo fato de que a situação de guerra se traduzia em uma privação permanente de tudo que todos precisavam- comida, água, gás.
O Exército Americano passou à ter que cuidar de besteiras, como roubo de galinhas, assaltos na calada da noite e todos os grandes problemas de uma cidade com quase 1 milhão de habitantes. Os soldados não gostaram nem um pouco, e a população, que ainda não criara confiança neles- e à cada dia se afastava mais disso- precisava de novos heróis. Foi mais ou menos nessa época em que começaram à surgir por toda a cidade, e, de fato, por todas as regiões ocupadas pelos americanos e seus aliados da República Legalista do Brasil, a chamada justiça paralela- privada, com uma moral geralmente dúbia e uma tendência à não fazer perguntas quanto à origem do dinheiro dos seus contribuintes. Essa miríade de pequenos consultórios de detetives particulares, milícias cascudas e justiceiros noturnos tinha em suas fileiras muitos daqueles que trabalhavam para a polícia até a instauração da Lei Marcial. Não eram muito confiáveis, mas se tinha alguém de quem os habitantes de Salvador desconfiavam ainda mais era dos estrangeiros de pele rosada e sotaque estranho, em seus uniformes verde oliva. Se comparada com eles, a velha polícia tinha pelo menos a vantagem de ser composta por Brasileiros. Os americanos logo souberam se adaptar à essa situação, e rapidamente delegaram a área da segurança pública à Justiça Paralela.
Isso ocorrera há dois anos e alguns meses, mais ou menos na época em que Soares chegara em Salvador. A abundância de casos, preocupações e chatices variadas dos habitantes da cidade era absolutamente enorme na época, principalmente porque, na ausência de qualquer autoridade competente, o reino do caos se estabelecera e a cidade havia sido em grande parte tomada pelo crime. Mas a Justiça Paralela fora rápida em matar sua galinha dos ovos de ouro, aniquilando as quadrilhas de ladrões, assassinos e facínoras que haviam prosperado nessa terra sem lei. Desde então, a fonte havia secado, o que não era ajudado pelo fato de Soares nunca ter sido particularmente acolhedor com seus clientes.
“É”-pensou Soares, vestindo-se rapidamente-“Quem disse que vida de profissional liberal é fácil?”.

*****


Devidamente vestido, Soares deixou seu pequeno quarto, atravessando seu escritório moderadamente arrumado, certamente mais arrumado que o necessário, e a porta que ficava de frente para sua escrivaninha, uma porta sofisticada, de madeira escura, sobre a qual um retângulo havia sido grosseiramente escavado para dar espaço à uma larga janela de vidro opaco, na qual estava escrito em uma pretensiosa caligrafia negra: DR. SOARES, DETETIVE PARTICULAR. Soares não fazia idéia de porque adicionara “Dr.” à seu título na porta, já que não tinha pós-graduação em absolutamente nada. À qualquer hora, deveria mudar aquilo, talvez pondo um ponto entre o D e o R, fingindo que se chama Dário Roberto, ou algum nome pior. Também teria uma hora ou outra que lidar com o fato de que quem entrasse no escritório veria a frase ,SERAOS .RD RALUCITRAP EVITETED, pois ele fizera a caligrafia do lado de dentro de sua sala.
Atravessou logo a terceira e última sala que compunha o seu lar, ou a coisa mais próxima que ele tinha disso. Era uma sala de espera diminuta e discreta, com dois bancos estofados cobertos de couro bege, e uma mesa no canto, na qual sua secretária Sara recebia quem lá chegasse. Isso é, é o que ela faria, se não tivesse desenvolvido uma tendência irritante para atrasos. Provavelmente havia chegado à mesma conclusão do que Soares, no que tocava à questão da raridade crescente dos clientes.
Fungando pesadamente, desceu a escada do prédio, mal iluminada e cheirando à urina. A chance de escorregar em uma poça mais úmida que as outras e de rolar escada abaixo, porém, ainda eram menores que as de sofrer um acidente no elevador, em pane constante devido à privação de eletricidade. Pelo menos, era isso que Soares achava; era também uma maneira de justificar sua claustrofobia crescente, motivo pelo qual passava cada vez menos tempo em seu escritório fechado e sem janelas. Era um homem das ruas.
O lado ruim, é claro, de ser um homem das ruas é que tornava a possibilidade de esbarrar no homem dos Acarajés muito maior.
-OLHA O ACARAJÉ! ACARAJÉ ACARAJÉ! O MAIS FRESQUINHO! OS MELHORES INGREDIENTES!
Saindo de seu prédio, pôde enxergá-lo com o canto do olho. Passeava morosamente pela rua, empurrando um carrinho, em cujo interior uma frigideira entoava um chiado indefectível. Sem pensar duas vezes, virou-se e andou na direção oposta.
Soares lembrava-se ainda nos mínimos detalhes da primeira vez em que se encontrou com o homem dos Acarajés. Tinha acabado de chegar em Salvador, ainda morava em um pequeno e insalubre hotel e seu consultório ainda não passava de uma mera especulação. A cidade o fascinava; sua mistura de cheiros fortes, culturas, cores de pele, hábitos, credos; morara no Brasil toda a sua vida, mas aquilo para ele era um outro país, um outro planeta talvez. Principalmente, via a cidade com o olhar do forasteiro que acabara de se instalar nela. Salvador não era uma simples cidade; era um horizonte, um mar de oportunidades desconhecidas que iriam saltar em sua direção, uma cornucópia de lugares e pessoas diferentes e interessantes que ele deveria conquistar.
Nessa época ainda tinha uma curiosidade juvenil quanto à cultura Bahiana, especialmente sua famosa culinária. Assim, em um dia- o segundo, se se lembrava bem- em que andava à esmo na cidade, com o objetivo deliberado de se perder, encontrou, não muito longe do local em que futuramente viria à morar, aquele, o homem dos Acarajés- Um senhor escuro e enrugado, de cabelos brancos densos e um sorris banguela. Ansioso e emocionado de provar um prato típico, estendeu ao velho os 500 cruzeiros que pedira. Enquanto fritava a massa em azeite de dendê, dando-a sua consistência amarronzada, explicava a história de como se mudara para Salvador havia mais de duas décadas, nos tempos de Getúlio Vargas, conhecendo uma famosa cozinheira Baiana, daquelas que se vestem com vário panos, e que, desde sua morte, largara o velho emprego – qual era, ele não se preocupou em dizer – para assumir sua função. Comentou também negativamente sobre as várias mudanças que estavam acontecendo na cidade, e como tinha esperança que os americanos ajeitassem as coisas.
Ao terminar sua infindável ladainha, recheou o Acarajé com um camarão graúdo, e um tipo de molho, entregando-o á Soares, que tascou-lhe uma tremenda dentada, esperando por um lanche suculento e com o toque local.
Não foi o que ele teve.
A combinação de vários fatores ainda desconhecidos de Soares- a forte pimenta em quantidade demasiada, o camarão ligeiramente estragado, um azeite de dendê de qualidade inferior e excesso de tempo fritando a massa- contribuirão para um gosto tão torpe que sua reação instintiva foi um gemido de agonia, que se desdobrou em vários pedaços de massa de Acarajé voando de sua boca e acertando o velho vendedor em cheio no rosto. Desde então, evitava sequer cruzar com o homem dos Acarajés, quanto mais estabelecer contato visual. Fizera isso apenas duas vezes depois do incidente e, em ambas, o vendedor lhe jogou um olhar capaz de enregelar a espinha da Morte.
Assim, tomando todo o tempo necessário-e o desnecessário também- Soares seguiu para a padaria mais próxima. Comprou um queijo-quente e um café preto, e então voltou, com igual lentidão, para seu escritório, se preparando para mais um dia de ociosidade.

4 comentários:

  1. Oi Franco, a tete indicou o blog pro pessoal hoje, e so quero dizer que adorei todos os artigos que eu li, inclusive a parte 1 do seu romance( nao vou ler o resto por causa do sono mas vou continuar amanha), continue postando! enfim, so passei aqui pra dar uma força, deve ser agadavel receber comentarios em seu blog :) - manon

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    1. Ixe, mas nem tinha visto esse comentário. Ando meio relapso. Bom, Manon, que bom que você está gostando! E sim, receber comentários é sempre uma surpresa agradável.
      Espero que esse blog continue te surpreendendo positivamente!

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  2. Olá Franco,

    Estou lendo com atenção o seu romance. Espero que continue a nos brindar com a sua inteligência e talento. Um abraço e votos de muito sucesso. Jana

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    1. Ora ora Obrigado Jana! Eu diria que é uma honra receber um comentário de uma de minhas mentoras aqui. Obrigado pelos votos e espero que você goste do romance! :)

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