quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

120 Horas em Lhassa - Parte I

Os Himalaias soltando lava. Tempestades de ácido corroendo a paisagem de fundo do quadro Mona Lisa. Um rosto conhecido, que piscou três vezes antes de desaparecer.
Merda.
Lama Poteng estava sentindo a pior dor de cabeça da sua vida. Whisky, pensou ele. Olhou para o lado, e de fato havia uma garrafa de Black Label ao lado de sua cama.
Um barulho ainda tilintava na sua mente. Se concentrou e percebeu que o som monótono vinha do despertador.
Levantou-se da cama, e só quando tentou se desvençilhar dos lençóis percebeu que nela havia mais alguém: uma jovem menina de rosto delicado e longos cabelos negros. Tinha, no máximo, 14 anos.
Ah, não, Onsan, seu incompetente... pensou consigo mesmo, aflito. Onsan era seu assistente pessoal. Ocupava-se de arrumar a papelada, agendar os compromissos de Vossa Excelência e, quando a solidão apertava, arrumá-lo companhia. Ele conhecia a preferência de Poteng por meninas jovens, mas talvez tenha exagerado, afinal mesmo nos tempos de hoje não pegava bem uma menina de 14 anos com cara de 12 saindo do complexo de templos do Palácio Potala.
Notou que Onsan deixara sua túnica dobrada em cima de uma almofada perto da cama. Vestiu-se logo e dirigiu-se para a Sala da Harmonia Celestial, onde aconteciam as reuniões semanais com Vossa Santidade.

0 Horas e 30 minutos.

A Sala da Harmonia Celestial era decorada com várias tapeçarias com desenhos elaborados de Demônios, Lamas, cenas da vida de Buddha e Suásticas, o que sempre rendia um comentário ou dois dos embaixadores que eram convidados para ela.
Várias pessoas já estavam sentadas na sala naquela Segunda-Feira, 28 de Fevereiro de 2011. Eram elas: Dae Wong Sok, Ministro da Economia; Tempa Jamyang, Ministro de Assuntos Exteriores; Lama Gangchen, Superintendente para a Religião; Ministro da Energia e Infraestrutura Dao Rinpoche; Ministro do Interior Laogan Turkveyeni; Zheng Gyatso, Chefe do Estado-Maior e Ministro da Guerra; Lama Poteng, Administrador Geral dos Campos e Vice de Gangchen; e o Coronel Luvsanshara, Diretor do Ulukorbak.

Todos esses respeitáveis senhores, nenhum abaixo da casa dos 70(com a exceção de Luvsanshara; ninguém realmente sabia sua idade, e cada vez que alguém perguntava era algo diferente) estavam dispostos em fileira, ao lado de um pufe central que ficava logo à frente de uma gigantesca estátua de Buddha, e era decorado em detalhes dourados e costurado em seda pura. Seu ocupante ainda não chegara.

-Os atrasos de Vossa Santidade estão ficando mais frequentes- disse Turkveyeni, tomando cuidado para ser o mais neutro possível.
-De fato- disse Gangchen, com uma expressão no rosto que parecia querer expressar surpresa sobre uma constatação que todos sabiam óbvia. Essa expressão deixava sua cara ainda mais gorda e seus olhos ainda mais inchados.
Uma porta se abriu e o silêncio se fez. O protocolo era conhecido de todos; os ministros se atiraram ao chão em sinal de respeito a Vossa Santidade, que entrava fazendo com os pés o som de um lenhador abatendo uma árvore à dezenas de quilômetros.
-Levantem-se, por favor. Não seria prático fazer a reunião nessa posição- Os Ministros se levantaram sorrindo; ele fizera essa piada em todas as reuniões semanais nos últimos três anos. Havia um boato de que quem sugerira essa piada à ele, um jovem serviçal, fora promovido à Coronel. 
-Bom. Wong Sok, qual é o estado da economia?-começou o Dalai Lama.
-Vossa Santidade...- Wong Sok suava; todos se viraram para ele.-Mais três fábricas fecharam nessa última semana no pólo industrial de Qirihar. Desde o início do ano, são sete. A região está num estado emergencial e pode se tornar uma zona de desemprego agudo nos próximos anos. Eu e minha equipe acreditamos que o problema seja o esgotamento das minas de carvão que...
-Alto lá!- esbravejou Dao Rinpoche, o Ministro da Energia.-O senhor não vai culpar o meu ministério pela sua política econômica incompetente, não é?
-Que política? Apenas sigo as recomendações do Banco Central.
-Isso, isso, aproveite e jogue a culpa em quem está doente e não pôde vir. É o tipo de atitude que nos leva para...

Morte ao Dalai Lama! Viva a Liberdade!

Os ministros se entreolharam.
-Mas hein?
-O que?
-Traição!
-Vem lá de fora...
-Ah, essa não, mais uma manifestação!
-Manifestação?!?!
-As minas de carvão fecharam porque o carvão acabou!
-Que sacrilégio! Como alguém pode sugerir que matem Vossa Santidade?
O Dalai Lama abriu espaço entre a turba de idosos senis e dirigiu-se à varanda. Lá embaixo, viu talvez uma centena de monges, trajando vestes douradas, berrando: 

Morte ao Dalai Lama! Viva a Liberdade!

Turkveyeni olhou para Gyatso que olhou para Poteng que olhou para Wong Sok que olhou para Jamyang que olhou para Rinpoche, que disse:
-As minas... de carvão... esgotadas... precisamos de... financiamento...
Luvsanshara, o único que ficara sentado, tomou um gole de seu chá e disse, calmamente:
-Quem são os manifestantes?
-Quem?
-Quem são os manifestantes? Operários, soldados... monges?
-Sim, monges.
-Vestes douradas?
-Ham... Sim.
-Certo.- pegou um celular- Xia, aqui é o Coronel. Mande alguém para o Mosteiro de Tayiuan Nul.
-...Tayiuan Nul?- perguntou Gangchen, temeroso- como em 1996?
-A história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa.
-Espere um pouco... Marx?
-A situação pede. 


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte FINAL

Capítulo 31




D’Este é Soares, pensou Camilla.
Pensando em todos os indícios, estava agora bem óbvio. Eles usavam as mesmas roupas, até o ridiculamente datado sobretudo bege, para não mencionar o mesmo chapéu e inclusive o mesmo bigode. Toda aquela ambigüidade boba sobre a ficção e a natureza dos personagens haviam sido apenas respostas evasivas para que ele não precisasse revelar sua própria natureza.
-Que pós-modernismo o quê- pensou Camilla, enquanto calçava seus sapatos . D’Este não havia criado um personagem. Ele havia contado sua própria história.
Era uma teoria esquisita e provavelmente exagerada, mas Camilla acreditava ter juntado todas as peças. Soares fizera uma promessa – a de encontrar a sobrinha de Cassius, a vítima mais gratuita de toda aquela guerra.
Agora que essa promessa fora realizada, ele buscava uma maneira de contar sua história. Com isso realizado, ele voltava ao ponto de partida; estava novamente na frente do mar, contemplando o barco, contemplando o suicídio. Sua função neste mundo havia acabado. Era isso que, afinal, D’Este- Soares queria dizer. Poderia morrer sem concluir a missão, mas, uma vez que a terminasse, a morte ainda era a única saída. Vários caminhos; um único destino.
Para onde ela estava indo? Camilla não tinha idéia. Mas ela sabia que Soares estaria no ponto indicado, o mesmo de 30 anos atrás, fazendo a mesma coisa que tentara fazer décadas antes. Seu instinto lhe dizia que isso ocorreria hoje. Isso lhe era suficiente.
Botando os sapatos, levou consigo o manuscrito, e saiu correndo pela porta da casa de Rafael, enquanto raiava a aurora, sem ainda saber muito por que.


*****


A aurora se insinuava para Camilla, rosada, ganhando em brilho a cada momento, à cada passo longo que Camilla dava a marina que existia hà 30 anos e lá ainda estava, ainda que diferente,
povoada de barcos recreativos pintados de branco. As casas ao seu redor, postas contra o sol amarelo-azul-púrpura eram ainda pálidas e opacas silhuetas cujos traços eram indistinguíveis. O alvorecer seria o momento perfeito para partir deste mundo; ninguém estaria lá para ver, ninguém diria nada.
Entre os prédios, podia ver um facho amarelo de luz brilhando. O mar. Pôs-se a correr, bufando enquanto se aproximava. Sua bolsa se abria. Tropeçou por um instante, mas logo recuperou o pique . Sua bolsa, porém, inclinada e aberta, deixava escapar as páginas de manuscritos, que, levados por um vento ainda frio da noite anterior, espalharam-se pela rua. Dezenas e dezenas de páginas brancas, bailando no ar em movimentos livres e não-planejados, como pássaros em valsa.
Camilla não viu as páginas brancas, mas uma delas, como que dotada de consciência, foi em sua direção e pareceu querer seguí-la, dando piruetas perto de si, mas finalmente, foi caindo mais e mais e seus círculos se tornaram cada vez mais largos.
Camilla não o viu, mas quando o papel finalmente pousou no chão, nele estava escrito uma única frase, em letras garrafais:


ESTÁ TERMINADO


*****

D’Este não estava no porto; Camilla caminhava, sem compreender, mas dentro de si, se contorcia e em suas mãos repousava sua cabeça, pensativa.
Onde ela errara? Onde estava Soares? Continuou a caminhar, enquanto o sol nascia, indiferente ao que se passava na Terra.
Começava à compreender. Onde estava com a cabeça? Aquela devia ser a teoria mais bizarra que já montara em sua cabeça. O que raios tornava D’Este Soares? Afinal, somente ele parecer com seu personagem não era suficiente. Vários autores escreviam personagens baseados em si mesmos. Na verdade, era mais provável que D’Este fosse um charlatão querendo ganhar
dinheiro com um romance maroto, e que toda essa teoria tivesse saído de sua cabeça em reviravolta pelos eventos das últimas semanas.
Mas então porque tudo fazia tanto sentido?
Parou diante de uma das peras do posto, onde sentava um velho, que desamarrava a corda de um barco. Usando um chapéu de pescador, uma camisa listrada surrada e uma bermuda azul, o velho tinha uma pele avermelhada, escamosa, provavelmente herdada de anos de trabalho. Um grosso, sólido bigode branco com suíças enfeitava-lhe a face, emprestando a ele o candor gentil de um avô. Recuando para desfazer o nó, esbarrou em Camilla.
-Perdão – disse ele, de cabeça curvada.
-Nada – disse Camilla, que hesitava em continuar sua caminhada e parar para pensar aonde exatamente havia errado.
Sentou-se à beira do mar para refletir por um momento, encarando seu reflexo. Absorta em seus pensamentos, fitando os grãos dourados de luz que adornavam seu retrato nas águas, quase não viu o reflexo fluído e indistinto do velho se aproximando.
-Perdão, Camarada – murmurou o velho, segurando seu chapéu perto do peito – Mas gostaria de saber o que uma camarada de sua qualidade está fazendo aqui numa hora tão invulgar.
Camilla virou-se e mirou o velho de cima a baixo, perplexa.
-N-nada. Só vim procurar uma pessoa – disse, desanimada.
-Curioso. Eu venho aqui para não ser procurado – disse o velho, um sorriso debaixo do bigode.
-Acredito que tenha sucesso freqüente.
-Tenho mesmo – o velho disse, sentando-se do lado de Camilla – Esperava também não encontrar ninguém hoje, mas é bom você ter vindo.
-Algum motivo especial? – resmungou Camilla, incomodada com a intromissão do velho.
-Nada. É que depois de todo esse tempo sozinho, queria ter algum rosto para recordar.
-Imagino que seja difícil ser pescador e passar dias no mar. – disse Camilla, desinteressada.
-Ah, eu nunca passo muito tempo. É apenas hoje que pretendo ir mais longe.
Camilla tentou mudar de assunto.
-Você tem certeza que não viu ninguém subindo em um barco e se lançando ao mar?
-Bom, eu pretendo fazer isso agora – disse o velho, e Camilla olhou nos seus olhos. Eles brilhavam de um tipo de alegria infantil, mas no fundo, podia ver neles uma certa melancolia.
O velho se levantou e foi em direção do seu barco. Camilla então tentou ver o barco enquanto este zarpava; primeiro lentamente, e então cada vez mais rápido. De madeira branca descascada, com um pequeno motor velho e barulhento, o barco tremia e rangia; suas peças pareciam todas querer pular fora da embarcação, como que prevendo seu destino iminente. O barco não tinha nome.
Já a uma certa distância, o velho pôs-se a acenar. Gritou então algumas palavras; Camilla não as distinguiu, embora tenha ouvido alguns sons individuais.
Sentiu uma presença atrás de si. Virou-se rapidamente.
A essa altura, reconheceria aquele sorriso besta em qualquer lugar.
-Olá, D’Este.
-Olá, Camilla.
O sorriso besta pairava a dois metros de altura, acompanhado de uma mulher e uma criança, que não devia ter mais de seis anos.
-Você por aqui- disse Camilla, perplexa, levantando-se de seu ponto de reflexão.
-Vejo que compreendeu tudo - disse D’Este, detrás de uma arcada de dentes brilhando e refletindo o sol que já terminava sua ascensão.
-Entendi mesmo – mentiu Camilla, esboçando um sorriso amarelo.
-Que bom. Agora que tudo terminou, gostaria que conhecesse alguns dos outros membros de nosso elenco. Essa é minha querida esposa, Penélope, e esse garoto é meu filho, Telêmaco.
Camilla beijou a face de Penélope e apertou a mão do garoto, que lhe mostrou um sorriso cheio de dentes. Tal pai, tal filho, pensou.
-E acredito que o meu nome você já conheça. – D’Este disse, agora expondo um sorriso mais beatífico.
Camilla estava pronta para dizer “Soares, mas algo, no momento, lhe ocorreu, e sem sequer esboçar um pensamento ou raciocínio a respeito, disse:
-Freeman.
Freeman meneou a cabeça. Todas as outras peças se juntaram: do verbo nasceu a razão.
-Entendo que vieram ver a partida de um velho amigo – disse Camilla, apontando para o barco de Soares, agora um mero ponto no horizonte.
-É mais ou menos isso. Depois daquela noite, Soares se dedicou a realizar a missão que deu para si mesmo, e eu decidi seguí-lo. Era para eu ficar pouco tempo; no meio do caminho, a guerra acabou, conhecia Penélope e acabei ficando. O sotaque se foi com o tempo. Quanto ao Soares, ele queria apenas ter a oportunidade de contar sua história antes de...
Freeman se viu interrompido pela risada de Camilla.
-Eu sei – disse Camilla, não sem parecer que sofria de histeria. – Isso tudo já está dito no seu livro, não precisa me contar de novo.
-Que bom que economizei palavras- riu D’Este. Passados alguns segundos, adicionou:
-Diga, eu e minha família ainda não tomamos café-da-manhã. Sabe, hoje era um dia especial, e não queríamos perder a partida de um amigo tomando suco de laranja. Tem um lugar bom aqui perto que serve café-da-manhã. Quer ir conosco?
-É uma boa idéia. Agradeço o convite – disse Camilla. E agora, sem dificuldade, ela não tinha dúvida quanto a quais eram as últimas palavras que Soares dissera enquanto seu barco zarpava, rumo à infinidade azul.


ESTÁ TERMINADO

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 30

Capítulo 23



A Companhia escapou com sucesso. Na verdade, tinha quase certeza que matamos todos os comunistas que estavam na base.
Mas o que doía era saber que isso não importava nada.
Para todos os efeitos, a cidade estava perdida. Escapamos da base, mas quando saíamos, a Companhia estava completamente dispersa e a maioria simplesmente deserdou, desaparecendo pelas vielas escuras sem olhar para trás, sem dar nenhuma desculpa. Quem sou eu para culpá-los?
A saída da base dava para um pátio cheio de latas de lixo reviradas e cheirando a ratos. Três soldados estavam comigo. Todos recrutados compulsoriamente.
Ordenei que fossem procurar os outros- não podiam estar muito longe, afinal o tiroteio acontecera á menos de meia hora. Marcamos para nos encontrarmos daqui à quarenta minutos perto da praia, que não ficava longe do quartel, onde nos reuniríamos e planejaríamos o contra-ataque. Agora, vejo o problema. Tratei à eles como um oficial trata seus subordinados. À essa altura, ninguém estava com muita vontade de receber ordens. Maldita juventude e sua capacidade inaudita de me fazer sentir um velho antes de chegar aos 30.
Aqui estou, quarenta minutos depois, e ninguém surgiu na praia. Nenhum tipo de reforço, e o pior, ninguém da companhia. A eletricidade da cidade parece ter caído.
Continuar a lutar? Como? Com que? Deixar a base havia sido tarefa complicada, e atravessar as ruas sem arriscar ser notado, mais difícil ainda.
Do que adianta? Mesmo que nos reagrupemos na zona do porto, estaremos ilhados, e somos muito pouco numerosos para efetivamente retomar a cidade. Havíamos perdido a batalha antes mesmo de ela começar.
Parei à frente do mar, que se estendia em uma imensidão negra à minha frente. Uma brisa suave soprava, diferentemente do calor úmido que assolava o resto da cidade. Algumas estrelas no céu; algumas luzes no horizonte. Navios de guerra, sem dúvida.
Sentei-me à beira do mar, em um rochedo úmido, pedra vulcânica lisa. Esperei quinze minutos. Ninguém apareceu. Esperei meia hora.
Ninguém apareceu.
Meu exército sumira. O reagrupamento fracassara.
Havia algo de gratificante na solidão do porto. Sim, eu estava sozinho no escuro; mas também mostravam-se ausentes em explosões, os gritos de agonia á mim tão familiares.
Olhei-me em uma poça. Minha tez estava suada, meu cabelo desarrumado; estava mais sujo e bastante mais magro do que quando deixara os EUA. O último soldado americano em Salvador.
Levantei meu olhar, e, de repente, vi que não estava mais sozinho.

*****

Um homem, cuja silhueta apenas eu via, desamarrava a corda de um barco. Aproximei-me, e disse:
-Vai para algum lugar?
O homem virou o rosto e encarou-me, parecendo positivamente apavorado. Um bigode fino adornar-lhe o rosto; usava apenas um tipo de camisola azul, suja de suor. Era alto e longilíneo; talvez fosse um hippie.
-Fugindo da cidade, eu presumo – disse, não sem rir um pouco da situação. Aqui estava eu, utilizando-me de minha autoridade militar em um país estrangeiro, sem ter nenhuma arma para fazê-la valer.
-Eu vim pôr um fim em tudo – disse o homem, em um inglês surpreendentemente bom.
-Porque? Medo dos comunistas? – perguntei ao homem, que ainda se debatia contra as cordas.
-Não são os comunistas – ele disse, tropeçando um pouco na pronúncia. – Sou eu mesmo Só causo problemas. Tudo que eu faço leva sofrimento a aqueles ao meu redor. Eu fujo, fujo, mas os problemas sempre voltam para me seguir. Eu mudei de cidade, mas as conseqüências de minhas ações me seguiram até aqui. E quando eu tento fugir, acabo gerando mais problemas, para mim e para os outros. Estou vivendo em uma eterna avalanche de sofrimento. Por isso, eu
vim aqui organizar a derradeira fuga. Vou fugir para o mar, vou até onde nenhum problema pode me alcançar, aonde não posso prejudicar ninguém. Lá com sorte, eu vou morrer.
O homem desistiu de desamarrar as cordas e se contentava de contar sua história, despejando as palavras á uma velocidade cada vez maior, e gestivulando vorazmente. Tenho que imaginar que, antes de se suicidar, ele pretendia ao menos realizar um último desabafo. Ele provavelmente era tão solitário que não tinha nem com quem deixar um bilhete de suicídio.
-Antes de fazer isso – eu sugeri, passando a mão em meu cabelo e me sentando ao seu lado. – Pense que tem pessoas cujos erros são maiores que os seus.
-Como os comunistas? – ele produziu uma risada irônica, e continuou a desamarrar o barco.
-Não. Como eu – respondi.
Ele interrompeu novamente o trabalhoso processo e olhou para mim.
-E você é?
-Dieter Freeman.
-E o que você, Dieter Freeman, fez de tão ruim?
-Eu possuía informação confidencial sobre a ofensiva que se iniciou hoje à noite.
-Essa ofensiva? – Soares apontou para uma loja – sem dúvida uma peixaria – que ardia em chamas atrás de si.
-Não tinha visto até agora, mas sim, essa mesma.
-Aham. E pelo visto não entregou sua informação.
-Pior Eu poderia ter entregado. Mas não me precavi, e agora os comunistas tomaram a cidade. Isso poderia ter perfeitamente sido evitado, e milhares de vidas poderiam ter sido salvas não fosse a minha irresponsabilidade.
O homem do bigode fino fitou o horizonte por alguns segundos e disse simplesmente:
-Você está errado.
-Por que?
-Se tivesse entregado essa sua informação, o seu exército – presumo que seja o americano...
-Presumiu certo.
-...Teria esmagado a ofensiva. Esmagado com armas e helicópteros. Milhares teriam morrido de qualquer maneira, eles só não estão do seu lado. O que eu fiz foi pior.
Fiquei atônito coma conclusão daquele homem. Tão atônito que me esqueci de perguntar o que ele tinha feito de tão ruim.
-Pessoas morreram por minha causa – ele completou, sem eu precisar adicionar nada.
-Pessoas morrem todos os dias.
-Cala a boca. É mais complicado que isso. É uma longa história, mas fui contratado pelo governo para espionar um velho amigo meu e descobrir se ele estava realizando alguma atividade subversiva. Pelo que entendi, o que eles pretendiam realizar era a ofensiva de hoje.
-Que coincidência.
-É, mas não é a parte importante. Eu sou um detetive. A forma que encontraram para que ele me contratasse pedindo ajuda, assim permitindo que eu me aproximasse dele e conseguisse as informações que o governo queria, foi fazendo com que ele precisasse de mim para resolver um caso. Como que por coincidência, a sua sobrinha sumiu na mesma semana.
-Cacete.
-Eu não sei o que aconteceu com ela. Eu não sei se está morta, ou viva, escondida em algum armazém por aí. Mas tudo que ela sofreu não ocorreria se eu não estivesse aqui, nessa cidade. Uma cidade onde estou somente por causa dos problemas dos quais fugi.
Alguns segundos se passaram em silêncio, e nós dois olhávamos para o horizonte, para o ponto insondável onde o mar virava céu e os navios viravam estrelas. De súbito, eu disse:
-Você está errado.
-Porque?
-ACARAJÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!
A terceira presença era um homem, empurrando um carrinho com uma grande panela de óleo, e potes contendo vários ingredientes coloridos e estranhos. O outro homem, o do bigode, escondeu sua cabeça entre os braços, e repetiu várias vezes:
-Ai, meu Deus... até aqui... até aqui...
-Quem é esse homem? – perguntei, curioso.
-É mais um exemplo! Eu tive problemas com esse homem no mesmo dia que o conheci e desde então ele tem me seguido!
-Vamos fazer o seguinte – eu disse, e peguei a mão do homem de bigode fino. Estava suada.
-Ei! O que está fazendo? – perguntou, enquanto eu o puxava.
-Você vai ver – respondi.
Paramos na frente do homem, enquanto ele ainda empurrava seu carrinho. Este ajustou seus óculos, saiu de trás do carrinho e veio perguntar algo em português.
-Peça desculpas à esse homem.
-O que? Está maluco.
-Peça desculpas.
O homem de bigode fino pigarreou, hesitando. Finalmente, foi até o outro homem – um pequeno tonel roliço, queimado de sol – e disse algumas palavras. O homem saiu, disse algo, ambos riram, e meu amigo saiu com um esquisito bolinho, recheado de camarão.
-E então? – eu perguntei.
-Funcionou! – ele disse, e me ofereceu o bolinho. – Se chama Acarajé. É uma comida local. Talvez já tenha ouvido falar.
Fiz que não, e tomei em minhas mãos o acarajé, pelando. Começei com uma mordida cautelosa – os apimentados e oleosos sabores da iguaria explodiram em minha boca.
-Nossa, isso é ótimo!
-É, eu não gosto tanto – comentou. – Aliás, você estava dizendo algo sobre eu estar errado.
-Ah, sim. Bom, você não está realmente errado. Entenda, as conseqüências de suas ações podem mesmo ser sua culpa, mas essa não é a questão; a questão é o que você faz com elas.
-Prossiga.
-Pretendia prosseguir mesmo. Quando as consequências do que faz começam à chover sobre você, tem duas opções: fugir, ou enfrentá-las de alguma forma. Você sempre escolheu fugir, e olha aonde isso te deixou. É aí onde mora a sua culpa. Por outro lado, olha o que aconteceu quando você resolveu ir até esse homem, e falar com ele para resolver os problemas que tinha com ele, seja quais fossem, não me importo. A solução não é fugir, e, longe de resolver seus problemas, se jogar ao mar representaria a maior fuga de todas.
-Isso tudo é muito bonito, mas não vai trazer ninguém de volta á vida. – Disse o homem de bigode fino enquanto eu dava mais uma mordida no acarajé, o seu cheiro singular invadindo minhas narinas. Subitamente, ele parou, cutucando os dedos das mãos, e disse:
-Acho que sei o que podemos fazer. Não podemos trazer ninguém de volta. Mas podemos dar um descanso digno aos que se foram.
-Enterrá-los?
-Enterrá-la. Começaremos pela vítima de que mais tenho vergonha: a sobrinha de meu amigo. Uma criança que não tinha nada a ver com essa guerra. À partir de hoje, não fugirei mais: darei meia-volta e correrei atrás. Podemos ser escravos do passado, mas o presente pertence à nós.
Encarado por aquelas luzes e pela imensa escuridão, o peso do que fizera nas minhas costas, a cidade em ruínas a nossos pés, declarei laconicamente:
-Vou com você.
-Ele olhou para mim de cima a baixo, provavelmente não muito impressionado com minha aparência cansada e uniforme em frangalhos, e respondeu:
-Certo, mas lá vai. Quando eu finalmente corrigir aquilo que eu errei, após eu caminhar o mundo atrás de meu passado, eu retornarei para o presente, para esse local e esse momento – e, em um gesto cansado, de um homem desesperado, ele aponta para o mar – e terminarei aquilo que começei.
-Acarajé! Os melhores acarajés da cidade! Não sou eu quem digo! – disse o homem, sumindo em uma esquina mal-iluminada.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 29

Capítulo 22


A insanidade dentro do estádio era palpável, quase tão sólida quanto as densas nuvens de fumaça que se espalhavam pelas arquibancadas.
Soares enxergava isso tudo- e muito mais, as cabeças sorridentes e cabeludas nas arquibancadas, a mistura de cores, a luz dos isqueiros sendo balançados por jovens braços, a animação, os instrumentos, violões, cítaras indianas, berimbaus, reco-recos, cuícas, e muito, muito mais- pela fresta de um longo corredor de toalhas rosa dispostas em formato de túnel, apoiadas em bambus, levando em direção ao palco. Segundo o assistente de som, um tal de “Cabelo”(que de fato possuía uma longa cabeleira em parafuso que descia pelas suas costas e entrava pela gola na camisa azul semi-aberta), isso era para “manter o suspense”, já que o palco ficava bem no meio do estádio, e os artistas saindo de uma pequena porta e correndo até o palco não teria o mesmo impacto. Fazia sentido, mas à Soares, aquele abafado túnel de toalhas rosa lembrava uma vagina. Uma vagina indo diretamente ao palco.
-A vida é um palco- disse Soares.
-Profundo- disse Nara, caminhando, decidida, à seu lado.
-Mas... sério, Nara, quem é esse cara?- disse Cabelo, tentando acompanhá-los enquanto fazia anotações em uma prancheta. Notou que estava ficando para trás, então tentou agarrar Nara pela camisa.- Nunca vi ele na vida, nem sabemos se ele toca!
-Besteira- disse Nara Leão, desvencilhando-se de Cabelo com uma cotovelada ambígua.- Você não ouviu o que o Chico disse? A ordem do dia é a...
-Experimentação- completou Chico Buarque, reclinado em uma cadeira dobrável, com uma camisa listrada desabotoada deixando entrever um peito bronzeado coberto de grossos pêlos pretos sobre o qual repousava uma corrente de ouro na ponta da qual estava um pingente representando a mão de seis dedos budista. Fumava um cachimbo por entre sua farta barba, que mal deixava ver seu antes famoso sorriso, e um par de óculos escuros cobria seus provavelmente já não tão azuis olhos.
-É, experimentação- continuou Nara Leão, apontando um dedo para o rosto de Cabelo. –Soares, o Sabiá do Sertão é um artista de improvisação, a forma mais pura de experimentação, e é por isso que ele vai subir conosco!
-Puta que pariu- exclamou Cabelo, e saiu em direção ao vestiário.
-Bom- disse Nara Leão, suspirando- perdemos nosso tecladista.
-Mas ele não era técnico de som?- perguntou Soares, preocupado.
-E também era tecladista de Nara Leão e as Tarântulas de Vênus- respondeu Nara.
-Quem será o tecladista então?
-Raul!- exclamou Nara, e Soares, olhando para trás, viu que Raulzito Seixas havia brotado atrás de si. Inclusive a terra parecia estar remexida debaixo de seus pés.
-Você pode ser nosso tecladista?
-Raul- respondeu Raul, olhando para o alto.
-Excelente! Completamos a banda! Vamos lá!- Nara Leão disparou em direção ao palco.
-Espera, desde quando ‘Raul’ é uma resposta válida para o que quer que seja?- disse Soares.
-Raul- constatou Raul, não sem alguma irritação.
-Não importa o que significa, isso é subjetivo! Vamos!- disse Nara Leão, saltando, e pegando a mão de Soares, que então pegou a mão de Raul Seixas, e os três entraram no palco juntos.

*****


O estádio inteiro urrava uníssono algumas sílabas indistintas do mesmo nome. Na-Ra. Na. Ra. Alguns “Ra” antecediam os “Nas” ou se misturavam aos mesmos, criando uma massa confusa de sons vagamente semelhante que enchia os tímpanos. A arquibancada se transformara em uma massa humana multicolorida, que pulsava em mil locais, um organismo.
Tudo parecia turvo ao seu redor. Com um zumbido forte no ouvido, Soares sentia que ia vomitar.
-NÓS SOMOS- berrou Nara Leão, e seu microfone fez um chiado ensurdecedor. A platéia inteira momentaneamente parou para recuperar a audição.
-Desculpe- disse Nara com timidez, e comentou para Raul, bem baixo:
-Aí, queimamos a largada de novo.
-Raul- disse Raul, fazendo um comentário irônico.
-NÓS SOMOS NARA LEÃO E AS TARÂNTULAS DE VÊNUS! EU SOU NARA LEÃO E ESSAS SÃO AS TARÂNTULAS DE VÊNUS! UM DOIS TRÊS QUATRO VAI!
Um solo de bateria começou, enquanto Nara Leão pulava e a platéia a imitava. Soares tinha certeza que viu várias pessoas caindo e não se levantando.
-Obrigado, essa foi nossa primeira música, “Cacofonia Megalópolis”. Energia pessoal! Que venha a Era de Aquários!
Soares teve a distinta impressão que Nara se virou para ele e disse “Lá Menor”, mas não entendia porquê.
Ainda estava pensando como uma música podia durar 20 segundos, quando a nova música começou. Era um cover bizarro de Bob Dylan, com uma letra modificada.
-A-América, paraíso- cantava Nara- Pa-pa-paraíso infernal- e vários homens vestidos de capoeiristas subiram no palco, carregando berimbaus.
Nara continuava:
Veio da África pra sofrer
Pra trabalhar e pra morrer
Tirou do solo o amarelo
E nas suas costas, fez um castelo
Sa-sagrada escravidão
Escrachada migração
Correndo sem direção
Indo á caminho da prisão
Soares conhecia a música e tentava tirar alguma nota que soasse parecida com a da versão original de seu violão. Sem resultado. Nunca havia tocado em um violão na vida. Nas festas da faculdade de jornalismo, era sempre o cara que revirava os olhos quando alguém sacava um violão para cantar alguma serenata argentina pegajosa para impressionar as mulheres. O pior de tudo era que sempre funcionava.
A música continuava, e Soares tentava improvisar, embora cada vez mais ficasse claro que até para improvisar, necessitava-se de um pouco de talento.
À distância, uma pessoa saiu da arquibancada e pulou a cerca de metal ironicamente colocada naquele festival celebrando a liberdade.
Era um homem negro, magro, vestido com um enorme roupão branco. Foi chegando cada vez mais perto do palco.
-SOARES, SUA PUTA!- exclamou a figura.
-Ge...Geraldo?- disse Soares, forçando a vista.
Soares largou seu violão e abaixou-se para ficar perto de Ge.
-Soares, o que raios você está fazendo aí, sua piroca esfolada?!- gritava Geraldo, exprimindo uma quantidade assaz grande de raiva.
-Geraldo! Você está bem!
-Não diga! Soares, responda! O que está fazendo nesse palco?!
-Geraldo, eu acho que sei o que Jana pretende fazer! Não é a Milícia de Jesus! São os maoístas, fingindo que são a Milícia de Jesus! E eu acho que eles querem matar os artistas!
-Matar os... Ah, não!- exclamou Geraldo, nocauteando com um soco o segurança que vinha pegá-lo. E chutando-o na costela no mesmo momento em que ele foi ao chão, só para ser derrubado por um outro segurança que se atirou nele.
-Soares, o Che Guevara está na platéia!- berrou Geraldo, enquanto era levado.
-Quem?
-O Che Guevara!- gritava Geraldo.
A coisa mudara de figura. Não era só mais uma leve manipulação da opinião pública; matar artistas para ultrajar dezenas de milhares de cidadãos que, em qualquer outra circunstância, permaneceriam totalmente felizes em um sistema feito para fodê-los. Não era só sujar o nome da Milícia de Jesus e jogar a população contra ela. Aquilo era uma operação militar, provavelmente planejada hà anos.
Porra, que se dane. O Che está na platéia.
Soares ficou paralisado. Estava pensando se, talvez Jana e seus comparsas estariam lá no alto, prontos à fuzilá-los. Procurou na arquibancada por sinais. Se Jana estivesse com um rifle sniper, provavelmente já o teria reconhecido. Poderia estar com a arma apontada para sua cabeça agora mesmo.

*****

Soares ficou tanto tempo perdido em seus pensamentos que não percebeu que o estádio se emudecera. A maioria dos isqueiros ainda estava acesa, mas Soares estava com a ligeira sensação de que todos estavam olhando para ele.
-Soares!- ouviu um murmúrio.
Olhou para o lado e viu Nara Leão murmurando para ele.
-É hora do seu solo, cara!
Então, como se nada fosse, voltou ao microfone, e disse, com um sorriso luminoso:
-Com vocês, pessoal: o alvorecer de uma nova era no violão! Soares, o sabiá do sertão!
Alguma coisa havia dado muito errado, mas Soares ainda não sabia direito o que.
Como isso tudo tinha acontecido? Há trinta e seis horas, ele estava caminhando, feliz, após ter saboreado um queijo quente(Saborear seria no entanto uma palavra exagerada já que o dito-cujo, ou dito-queijo, nem estava tão bom), sem preocupações quanto ao resto do seu dia, de sua vida, ou aquelas próximas trinta e seis horas. Agora, estava em frente há uma
multidão de talvez 20 mil pessoas, gritando slogans subversivos, e o pior de tudo, dividindo um palco com Nara Leão e Raul Seixas. Ah, e Ernesto “Che” Guevara provavelmente também estava em algum lugar por aí.
Frente aos gritos da multidão, uma pessoa qualquer perderia todo o foco e concentração, e se esqueceria desses detalhes à primeira vista desimportantes e inclusive muitos outros. Mas aquela não era uma pessoa qualquer, e sim M. Soares, Detetive Particular.
Um coquetel de suor, ansiedade, cachaça ruim e culinária à base de azeite de dendê começou à se formar em uma zona que ia de sua testa à sua barriga, e, sob os olhos menosprezantes de Nara Leão, se conjugou em um liquidificador de humores entorpecedor que trouxe todas as memórias dessas últimas trinta e seis horas de volta à tona.
Começou com um distintivo. E um Detetive Soares tão suado quanto ele estava agora.


*****


Puta flashback.
De volta ao mundo real, o silêncio total era interrompido por vaias ocasionais, espalhadas.
A ausência de som gradualmente se convertia em vaia coletiva, e o estádio inteiro logo se juntou em coro para caçoar de Soares de várias maneiras, algumas bem criativas. Um homem negro na primeira fileira levantou o traseiro para Soares e abriu o ânus com as mãos.
Sem que o próprio Soares notasse, ele começou à dedilhar. De repente, as vaias diminuíram. Talvez pensassem que aquele silêncio todo tivesse sido uma elaborada introdução.
-Estava à toa na vida, o meu amor me chamou- Começaram Nara e Chico no microfone a lado. Soares não sabia de onde ele tinha vindo, mas sentiu-se salvo pelo gongo.
Notou que a tensão fazia com que sua mão trêmula dedilhasse aquele pobre violão. Decidiu seguir à partir daí, e começou à tocar o violão cada vez mais rápido. Logo, capoeiristas com berimbaus tomaram o palco, e começaram à adicionar um ritmo à melodia aleatória de Soares, que continuou improvisando, tocando cada vez mais rápido. Metade dos versos de “A Banda” viravam gritos enérgicos de Nara, enquanto os capoeiristas começavam uma roda em pleno
palco, e Raul Seixas finalmente despertava de seu sono e tocava “Paradise Now”, dos Beatles, fundindo- à orquestra do improviso.
Roda-Viva. Da vaia, à visão, à virada: da timidez à loucura. Soares segura o violão sobre a cabeça e começa a dançar, se extravasar, se extraviar e se deixar cair ao se atirar no chão em um êxtase místico, que os outros acompanham, em um círculo de adoração ao seu redor.
A platéia batia palmas rítmicas e corria em círculos pela arquibancada. Soares estava caído e continuava caindo no centro de seu círculo, e, no auge da batucada, levanta do nada o braço, abraça no outro o violão, e dedilha uma canção.
A batucada pára, e Soares subitamente salta de sua posição estática, e mete um acorde poderoso no bichinho. A música explode; o transe é absoluto.
-Não adianta fugir!- esbraveja Nara, no último verso da música, que ela mantém por tempo incomum. Saúda então a platéia.
-Obrigado! Vocês abraçaram a experimentação! Vocês são o futuro!
Todo exercício, uma hora, vem cobrar a sua conta, e Soares desabou de cansaço. Respirou fundo e apoiou-se em seu violão.
Com o canto do olho, viu que uma figura diferente estava saindo do túnel rosa. Levantando ligeiramente a cabeça, pôde ver que se tratava de Cabelo, e que falava algo no ouvido de Nara. Com um olhar surpreso, ela andou até Soares e estendeu à ele sua mão.
-Vamos.
-Por quê?- perguntou Soares, aproveitando seu momento de glória.
-O serviço secreto já está aqui.
Soares engoliu aquelas palavras e elas lhe caíram mal. Decidiu pegar na mão de Nara. Quando caiu em si, viu que eram os dois últimos no palco.


*****


O túnel estava em polvorosa. Todos os artistas corriam de volta para o vestiário. Ladeando aquela desorganizada fila, estavam soldados de uniforme preto, botas idem, Keffyieh escondendo o rosto e AK-47 em punho. Ocorreu então à Soares a verdade trágica:
Este era o plano de Jana em marcha.
-Todos para o vestiário! Sigam para a direita!- berrava um dos soldados.
-Temos que ir para a esquerda- disse Soares.
-O que? Por quê?- reagiu Nara, confusa.
-A explicação vai ter que ficar para depois.
Chegando ao vestiário, tiveram que abrir caminho entre a multidão, carregando mochilas e sacolas, com ou sem instrumentos, no mais completo pânico.
Diante do olhar curioso de muitos entraram em um dos vestiários cujas paredes eram ocupadas do teto ao chão por armários verdes metálicos.
-Soares, que droga é essa que está acontecendo?- disse Nara, pela primeira vez tirando os óculos, provavelmente para forçar Soares à fazer contato visual com ela.
-Jana, digo, Nara, é difícil de explicar...
-Tente.
Soares respirou fundo.
-Eu acho que querem te matar.
-Me... hein?- Nara estava visivelmente em choque. –Mas...
-Você e os outros artistas. É um plano para indignar a população e escalar a guerra civil.
-Mas isso não faz sentido!
-Esse é o problema; faz sentido até demais. Pense Jana, quem está escoltando vocês? É um grupo maoísta, não?
Nara, mais uma vez, estava surpresa, e ficou sem palavras.
-Como sabe?
-Se eu fosse te falar como minha vida mudou nos últimos dias, precisaria de um livro inteiro. Mas digamos que um dos efeitos colaterais disso foi que aprendi muitas coisas novas.
Nara manteve o olhar baixo, pigarreando.
-Não... sei se acredito em você.
Soares levou o dedo indicador à boca; ouvia passos indo em direção ao local aonde estavam.
-Preciso saber se já temos as tochas e o álcool- disse uma voz feminina familiar, adentrando o recinto. Soares agarrou-se ao seu violão.
-Temos tudo, já chequei inúmeras vezes e...- a voz interrompida era de uma garota jovem, vestida toda de preto, de olhar decidido ainda que temporariamente abalado pela confusão. Era Jana, já devidamente convertida em líder revolucionária, acompanhada de um segurança parrudo e meio-metro mais alto.
-Nara, o que está fazendo aqui? Precisamos ir!- exclamou Jana, apontando para a saída.
-Não escute ela- murmurou Soares.
-Nara, afaste-se desse homem- disse Jana, na sua melhor imitação de inocência.- Ele é um agente do serviço secreto!
Nara, nesse momento, deu um passo em direção á Jana, e, virando de costas para uma das paredes de armários começou à olhar, de Soares para Jana, de Jana para Soares.
-Nara, lembre do que eu disse- disse Soares.
-Esse é um homem perigoso, Nara- disse Jana, e adicionou: - Você nunca o viu antes de hoje, não?
Nara permaneceu no meio do caminho, olhando para cada lado, seu rosto uma expressão de terror, que se alastrava para sua linguagem corporal.
-Camarada, estamos ficando sem tempo- disse o segurança, apontando para o relógio.
A expressão preocupada de Jana se converteu em uma determinação de pedra.
-Que se dane, então- disse Jana, sacando um revólver, cujo cano longo e lustroso brilhava na luz mortiça do vestiário.
-Vocês me obrigam à não poder argumentar. Venha, ou eu atiro nos dois.
Sem pensar duas vezes, Soares atira o seu violão em Jana.
Nara fica em guarda, mas Soares a segura. O violão parece pairar indeciso no ar antes de pousar nas mãos de Jana.
-Ora, veja só? Deve ser a primeira vez que vejo um violão sendo usado como arma. E é bom que seja usado como arma mesmo. Vi o seu show. A princípio não te reconheci, mas a sua falta de habilidade te entregou. Você não presta como músico, não presta como detetive, presta como o que?
-Vinte mil pessoas lá fora discordam- desafiou Soares, praticamente interrompendo-a.
-Espera, detetive?- disse Nara Leão.
-Diga adeus ao seu violão, seu farsante!
Jana esmagou o violão contra um dos armários, produzindo um estalido de metal. A primeira não foi suficiente e, com fúria nos olhos, a face vermelha de sangue quente concentrado, ela bateu o violão mais duas vezes, e sua madeira tosca e envernizada se esmigalhou.
Estranhamente, quando o violão se partiu, algo pareceu quicar dentro dele, e, na forma de um pequeno objeto, caiu no chão.
Jana olhou, surpresa, para o artefato caído no chão; antes que Nara pudesse distingui-lo, Soares se atirou ao chão, Jana seguiu, tudo ocorreu muito rápido: Soares rolou por cima do objeto e usou seu corpo como bala de canhão, derrubando Jana, que caiu em seu segurança, chocando-se contra a parede de metal.
Soares deu o pulo do gato, e um pulo menos metafórico, ao se levantar e apontar um trabuco para Jana.
-Jana, vá fazer a revolução na puta que pariu!- disse Soares, na falta de uma frase de efeito melhor. Ah, e disparou contra Jana.
Errou. O vulto negro de Jana disparou rumo ao corredor, enquanto seu segurança dava cobertura. Apontou sua escopeta para Soares e Nara. Dois, três, quatro tiros, antes de sumir no escuro do corredor.
As lascas das balas faiscavam ricocheteando nos armários. Soares pegou no braço de Nara e sentiu o pulso à mil. Ambos estavam vivos.
-Temos que pegá-los- disse Soares.

*****

O corredor escuro os ligava à uma sala coberta de pânico, onde muitos corriam e os tiros de escopeta continuavam. Soares podia ver a silhueta dos dois da porta de metal azulado, banhando os vultos de luz branca.
Não era fácil atravessar todas aquelas pessoas correndo para sair, e Soares e Nara acabaram sendo atropelados por alguns.
Ainda assim, logo estavam do lado de fora, o pálido, cálido luar de verão sobre suas cabeças.


*****


Os dois chegaram fora apenas à tempo de ver as vans partindo. Não havia erro. Em um rápido clarão, viu um homem de jaqueta preta e Keffyieh fechando o porta traseira enquanto pessoas do lado de dentro tentavam ver o que se passava.
Bingo, pensou Soares.
-Acho que vi o Chico dentro daquela van!- disse Nara, sua voz quase afogada pela comoção ao redor.
-Como faremos?- exclamou Soares, genuinamente perdido. Não notava que Nara estivera olhando para trás de si, seu rosto uma expressão da palavra “Eureka”.
-Tive uma idéia- disse Nara, correu para uma moto cuja chave estava na ignição.
-Ei! –reclamou uma pessoa na multidão- um português rechonchudo e com um cabelo afro globular ao redor do rosto. –Essa moto é minha!
-O que está esperando- disse Nara à Soares, ignorando o português. –Sobe logo.
-Mas eu não sei andar de moto!- protestou Soares. Da imagem de Nara suada, com as mãos pousadas sobre o acelerador tirou a conclusão: Mulher que dirige é um tesão.
-Há uma primeira vez para tudo- disse Nara, acelerando no guidão.
-Desculpa! É da minha moto que estão à falar!- disse o portuga indignado, colocando o polegar no peito flácido.
Mas não adiantou. Sem dizer nada, Soaresjá tinha subido na garupa da moto e desapareceu na ladeira Fonte das Pedras.


*****


Soares sentia o vento no rosto, nos cabelos, revigorando seu ser. Nada comparado ao infame passeio de bicicleta que tivera com Jana.
Foco, foco, repetiu na mente. Antes, só uma mancha no fim da rua. Agora um quadrado largo cada vez mais próximo. As aberturas de uma porta cada vez mais visíveis mesmo na escuridão opaca.
Um pouco de pele aparecendo .
-SOARES, CUIDADO, ELE TEM UMA ARMA!
Os disparos ecoam, indistintos no banho de fúria dos motores em perseguição. Uma mão com um revólver, passando por uma pequena fenda. As pupilas de Soares se dilatam. O sangue em suas veias parece ácido.
A mira era burra. Uma mão sem olhos para guiá-la não sabia de nada. Já Soares podia perfeitamente ver a mão branca no meio de toda aquela tinta preta. Sacou a arma.
Foi apenas um momento, mas Soares sentiu em suas veias. Talvez o primeiro tiro certeiro que disparara na vida. A mão demorou até perceber o que lhe havia acontecido, mas dela logo choveu uma torrente de sangue, e, tremendo, ela se retirou.
A moto roncava. Nara aprovou.
-Beleza! Vou tentar chegar mais perto- disse.
Ajudada pelo declive, a moto se aproximava rapidamente da van escura.
-Vou tentar achar uma boa posição para pular- disse Soares, se equilibrando de pé na moto.
-Soares!- disse Nara.
-O que?
-Boa sorte- ela disse, virando o rosto e sorrindo.
Soares retribuiu o sorriso, mas acontecimentos mais á frente impediram aquele momento de continuar.
A porta de trás da van se abriu, e a atenção de Soares foi momentaneamente chamada para lá. Ficou atento para o que poderia surgir lá de dentro. Não tinha idéia de que tipo de arma os maoístas tinham preparado para proteger seu butim.
Quando a porta finalmente se abriu, o que saiu do sombrio interior da van o deixou tão surpreso que ficou incapaz de tomar qualquer ação.
Brilhando prateada em meio à noite, saltou da van uma bicicleta, que passou rapidamente pela moto, colidindo de leve. Nara soltou um gemido. Soares mal pôde ver o maoísta que dirigia a bicicleta antes de ele sumir em um dos becos da ladeira.
-Você está bem?- perguntou Soares, elétrico.
-Estou! Atirador á frente!- Nara, focada na direção.
Tiros ecoavam. Soares sentiu-os rasgando o ar perto de seu ouvido. Estava perigosamente próximo, e o atirador, de todos com que tivera que lidar até agora, era habilidoso.
Felizmente, ele também estava perto, e também podia atirar com alguma precisão. Nara era boa motorista; desviava em intervalos curtos para deixar o atirador confuso.
Tiros de um lado, tiros de outro; todos errados.
-Chegue perto!- disse Soares à Nara.
-Está maluco? É suicídio!
-Confie em mim, sou detetive!
Nara parecia ter concordado, pois não contrapôs nenhum argumento e aproximou a moto da van. Soares se levantou na garupa, mantendo um equilíbrio tênue.
O atirador, debaixo de seu Keffiyeh, parecia estupefato. Ele estava se entregando diretamente à sua mira.
Rápido no gatilho, apontou a pistola para Soares.
Soares disparou a sua no rosto do inimigo. Não atirou; só jogou a arma inteira bem no rosto dele. Atordoado, o adversário largou sua arma, e Soares a pegou antes que caísse na estrada.
Um à Zero.
Ele se escondia atrás de seus braços. Escondia uma sobrancelha ensangüentada. Soares encaixou o revólver debaixo de seu queixo. O Keffiyeh passou de cinza à vermelho, e o maoísta caiu da van como um saco de arroz.
Nara teve que se desviar daquele imprevisto, e, girando radicalmente, acabou subindo sobre um carro, e depois sobre outro e outro, como se aquela fosse uma estrada normal.
Dentro da van, outro terrorista apontava timidamente sua arma para Soares, cercado de artistas. Soares não sabia quem eram, mas acreditava tê-los visto em uma revista hà dois anos, e um outro era definitivamente Roberto Carlos.
Soares tirou o revólver de suas mãos, sem mais nem menos, e alvejou-o com duas armas. Aquilo estava fácil demais.
Um flash súbito, seguido de vertigem, e então de dor, tomou conta de seu ser.
Cambaleou para o lado e se apoiou no canto da van, mas a van não tinha cantos então se apoiou na cabeça de Roberto Carlos.
Desnorteado, recuperou pouco à pouco os sentidos e olhou para o lado. Um dos Keffyiehs estava carregando um toco, e estava se preparado para bater de novo. Era pequeno; parecia jovem e leve. Sem pensar muito, Soares carregou-o até a porta da van e jogou-o na rua. Do lado de fora, um jovem revolucionário de nome de guerra Guará Vermelho, mas cujo nome verdadeiro era Felipe Henrique, rolava estabanado para longe da van, e acreditava finalmente estar longe do perigo. Fora derrotado por um detetive magricela, é verdade, mas pelo menos escapara. Essa súbita descoberta foi interrompida por Nara Leão descendo da fileira de carros e projetando sua moto no ar contra o que até então era um ponto vazio no ar, mas em questão de segundos havia se tornado o local da cabeça de Fernando Henrique. Metade do cérebro de Fernando Henrique se espalhou pela rua, e Nara se posicionou perto da van negra, indo cada vez mais rápido.
Lá dentro, Soares libertava os reféns.
-Pessoal, está na hora de vocês pularem!- ele disse.
-Seu sacana vendido, não precisamos de você!- disse Chico Buarque.
Soares sacou seu revólver e disparou no teto da van. Todos os artistas e bacanas se encolheram em seus assentos.
-É para o seu próprio bem!- disse Soares, fazendo-os pularem um á um de uma van em movimento. E um à um eles foram. O único que sobrava era Roberto Carlos. Ele se equilibrava desajeitadamente junto à porta, olhando para estrada com receio.
-Beto, o que está fazendo aí?- disse Soares.
-Não vou pular de jeito nenhum! Posso acabar morrendo! Eu achei que fazer um concerto para maoístas era ruim, mas você consegue ser ainda pior!
-Roberto Carlos?
-Sim?
-Vá para o inferno!
E Soares chutou Roberto Carlos para fora da van.
Beleza, já foram todos. O que falta agora? Soares se lembrou. Na verdade não falta nada. Já impedi o plano deles. Se eu continuar aqui, é por vingança. Ou pra impedir que isso aconteça de novo. É, me parece uma boa desculpa.
Soares correu em direção ao fundo da van. A tinta preta dificultava sua visão da parede, mas no meio de toda aquela escuridão, podia ver uma pequena manivela conectada à uma abertura, que sem dúvida servia como janela entre a cabine de direção e a de carga.
Soares preparou o revólver e, de um gesto rápido, fez deslizar a janela.
-O que está acontecendo aí at... CARALHO! PORQUE VOCÊ NÃO MORRE!
Era Jana conduzindo, usando um tipo de vestido branco.
Uma mão fina se lançou como uma cobra ágil através da fina abertura da janela.
Soares não tinha reflexos ruins, e conseguiu desviar; a mão de Jana carregava uma faca, que ela apontava em várias direções, sem conseguir acertar. Tentou agarrar a mão, mas Jana se desgarrava facilmente e continuava com ataques frenéticos. Soares tentou mais uma vez, e a faca fez um corte de dez centímetros na palma de sua mão.
Algo estranho começou a acontecer; a vertigem tomou conta de sua mente e ele se sentiu indisposto. Mas isso não tinha a ver com o sangue jorrando de sua mão, ou com a droga que tomara havia algumas horas. O chão parecia leve debaixo de si. Sentiu-se indo em direção à uma parede e depois outra. Jana estava mexendo a van.
Chocou-se contra uma parede, e depois foi arremessado para a outra. Não havia como continuar ali. Andando em zigue-zague, batendo nas placas de metal, foi em direção à porta. Lá estava Nara, ainda dirigindo sua moto.
-Nara, me pegue!
-Olha, eu acho que não é a hora certa!
-Não é disso que estou falando! Eu vou pular! Precisamos chegar perto da cabine!
-Trocadilhos infames à parte, Soares pulou sobre a moto. O impacto foi enorme, e ela ficou mais lenta, mas Nara acelerou e, passando pelo espsço limitado entre a van e os carros, chegavam cada vez mais perto da cabine.
-JANA!- gritou Soares, apontando seu revólver para a janela.
Nessa hora, um tiro destroçou o vidro e o farol da motocicleta, e o braço fino de Jana em seu vestido branco saiu da janela, dando mais tiros.
-Vou frear, nunca pegaremos ela aqui!- disse Nara, com o cabelo esvoaçando.
-O que? Nunca! É nossa última chance!- disse Soares.
-É a nossa chance de levar um tiro, isso sim!- disse Nara, e freou a moto. A van foi avançando, para além da ladeira, distante de seus perseguidores.
-Até mais, imbecis!- eles ouviram Jana dizer ao longe.
Sem que houvesse aviso, um caminhão interrompeu a risada triunfal de Jana, se atirando contra a van de Jana e atropelando-a pela lateral, fazendo-a capotar três vezes.
-Hm... talvez tenha sido uma boa frear- comenta Soares, vagamente envergonhado.
Ele pula da moto e corre em direção ao local do acidente.
Percebe que Nara não o está seguindo.
-Nara, venha! Temos que ver o que aconteceu, se ela ainda está viva!- disse Soares, virando-se, mas ainda andando em direção ao acidente.
Nara está sentada na motocicleta, apoiada no guidão. Parecia cansada, abatida.
-Soares... se esse é seu nome mesmo... vou ficar aqui. Vá você, se quiser mesmo.
Aquela reação impactou Soares de uma forma estranha, e ele não soube ao certo como responder. Parou de andar de costas.
-Mas... por que?
-Nada. Só vou ficar aqui.
-Mas...
-Vai logo. Vai perder seu filme.
A frieza de sua voz surpreendeu-o. Querendo evitar mais alguns segundos daquele convívio estranhamente desconfortável. Tirou aquele pensamentos de sua mente e começou à correr rapidamente rumo ao acidente.
A van de Jana terminara exatamente na mesma posição em que começara. A porta estava aberta e, chegando perto, Soares pôde ver o seu braço apontando para o chão.
Jana emergiu de dentro da van, rastejando rumo à um beco, sem olhar para trás, sem prestar atenção em Soares. Seu vestido branco estava coberto de sujeira do asfalto e um filete de sangue atravessava diagonalmente seu rosto. Seu corpo estava retorcido no chão, disposto como uma suástica, e, à julgar pela sua tática de se locomover usando um dos braços, encontrava-se incapaz de andar.
Ela virou a cabeça, e pareceu olhar para Soares.
-NÃO! NÃO!- Ela gritou. Era um grito estridente, e suas pupilas pareciam ocupar todo o olho. Seu corpo inteiro vibrava e tremia em espasmos de terror.
Um tiro. Seu rosto, vermelho, parou de gritar. Soares virou-se para a van. De pé sobre o teto, estava ele, ainda vestido com um poncho branco, com uma escopeta na mão.
-Geraldo!- exclamou Soares.
-Nunca achou que eu chegaria até aqui, não é?- disse Geraldo. E então um tiro acertou sua cabeça, e seu corpo desabou sobre o asfalto.
Soares demorou até entender o que havia acontecido. Mas todas as peças começaram á entrar em ordem, e quando voltou seus olhos para a estrada, já sabia quem havia disparado.
-Olha só. Acho que nos conhecemos já- disse o homem grande, largo, maciço, em um sobretudo marrom, sua pele escura coberta por uma fina e adiposa camada de suor, e um de seus olhos debaixo de um grosso curativo. Seu nome era Orfeu Temporário da Matriz Firmino.
Soares olhou o de cima a baixo, impassível.
-Você está vivo.- disse. Na verdade, era mais uma pergunta do que uma afirmação, mas dissera de um jeito dão sério e com uma expressão tão plácida que soava como uma afirmação, ou uma ordem.
-Estou. Um mero incêndio não iria me parar. Nem um tiro de raspão em uma área tão sensível do corpo- ele disse, apontando para o seu curativo, e curiosamente cutucando-o.
Atrás de Orfeu, estava seu exército particular: Dez soldados de uniformes pretos e viseiras escuras, armados até os dentes.
-Veio com sua guarda pessoal, Orfeu?- disse Soares, apontando com o queixo para os homens de Orfeu.
-Vim sim. Mas estou aqui por outros motivos, que não envolvem você. Embora, esse encontro tenha sido bastante oportuno. Sabe, eu também achei que você não tinha sobrevivido. Esse reencontro... só pode ser coisa de São Jorge. Por isso Soares, eu te declaro detido em nome da lei, pelos crimes de...- Orfeu pausou por um momento e pigarreou.-Na verdade, acabei de perceber, somos o serviço secreto, não precisamos de motivos legais para prender você.
Nesse momento, os soldados de Orfeu apontaram em coro suas armas para Soares.
-Quietos! Eu falei para vocês atirarem nele?- disse Orfeu, erguendo os braços na frente dos rifles.
-Mas você disse que...- começou um dos soldados, encabulado.
-Disse porra nenhuma! Ele é meu! Olho por olho- disse Orfeu, novamente cutucando seu curativo- E dente por dente.
Andou até Soares, banhado pelo feixe de luz de uma viatura atrás.
-Espero que esteja pronto.- ele disse, em um tom soturno, estalando os dedos.
Soares apontou a arma para Orfeu, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, ele pegou seu braço e torceu. A dor intensa percorreu seu braço e fez com que Soares soltasse o revólver.
-Armas? Que feio, Soares. E a honra? E os seus filmes noir que terminam numa luta de socos?
-Eles raramente terminam em lutas de soco- comentou Soares, olhando para cima, cegado pela luz.
-É, mas eles tem lutas. E algumas delas envolvem socos. A moral dessa história é que você vai apanhar.
Orfeu agarrou Soares pelo cabelo e ergueu seu escalpo pelo ar. A luz estava mais forte que nunca, e tudo em volta de Soares parecia branco.
Com a sua outra mão, Orfeu golpeou o rosto de Soares com violência. Soares sentiu os dentes se soltando e deslizando até o fundo de sua boca.
O vento se deslocou e Soares esperou a chegada de outro soco em meio à dor.
Mas nada aconteceu. Abriu os olhos e encontrou o punho de Orfeu à alguns centímetros de seu rosto. Um olhar mais detalhado permitiria à Soares ver que seu punho tremia fortemente, mas, submetido à um enorme feixe de luz e tendo levado uma porrada desestabilizadora, Soares não estava em condição de realizar uma exame detalhada.
A fragilidade de seu braço foi se tornando mais evidente, e Orfeu largou Soares, que caiu de bruços na calçada. Com o olhar vazio, Orfeu andou até seus soldados.
-Alguém me explica porque eu estou usando essa merda?- disse, tirando o sobretudo. –Isso aqui é uma cidade quente. Tropical até! Porque estou usando uma porcaria de um sobretudo? Só porque os detetives de Chicago e Nova Iorque usam? Será que eu estou ficando maluco!- Explodindo de raiva, fez uma bola com o sobretudo e o atirou para longe, e começou à fazer o mesmo com a camisa branca.
-Eu não entendo, porra!- continuou. –Será que é pra nos deixar mais misteriosos? Como você vai ser misterioso e sombrio num país tão ensolarado? Ninguém nos leva á sério! Esse é o pior tipo de cópia! Copiamos um hábito cultural sem copiar o clima! ...Bando de filhos da puta! Quem teve essa idéia afinal?
Exatamente no momento em que Orfeu ia dizer “Estou suando como um porco nessa merda”, Soares começava á se levantar de seu estado catatônico e, recuperando as forças, andava até seu adversário. Por precaução, pegou a escopeta que jazia entre os dedos de Geraldo Ary.
Um tiro destruiu o farol do carro, mergulhando a rua na escuridão.
Orfeu interrompeu seu discurso furioso, bem á tempo de sentir algo se agarrando a seu pescoço. Algo muito mais pesado que uma mão.
Os anos passaram, mas Soares ainda entendia de tortura. Pressionar um ponto específico na omoplata podia paralisar um homem do pescoço para baixo. Isso era bom para causar desespero e extrair informações.
Dessa vez, Orfeu não sentiu uma leve pressão na omoplata. A dor esfuziante que logo se converteu em uma onda de paralisia que se espalhou pelo seu corpo foi de um tiro se escopeta.
Armas carregando. O escuro só iria dar á Soares alguns segundos de vantagem.
Ainda sentado nos ombros de Orfeu, saltou, rolou ao aterrissar, e correu para o que, ao longe, parecia um beco.
Seu olhar começava á se adaptar; pôde ver uma lata de lixo, e buscou segurança atrás dela.
Ainda assim, podia ouvir os passos dos soldados do Serviço Secreto. Eles estariam lá em alguns segundos. Abriu o tambor da arma para ver quantas balas sobravam na escopeta.
Duas.
Havia pelo menos sete soldados. Não seria suficiente.
Colocou as balas de novo dentro do tambor. Não era um homem religioso, mas achou necessário, dessa vez, fazer suas preces.
Pai nosso que estás no céu.
Santificado seja o vosso nome.
Venha a nós a vossa terra, assim na terra como... não, espera.
Rogai por nós, pecadores... não, espera, isso é Ave Maria.
Saco.
Amém.
O beco eclodiu com uma torrente de tiros, que parecia não ter fim. O coração de Soares pulsava, e ele sentia suas costelas queimando e os pulmões forçados até o limite por uma respiração sôfrega.
À essa altura, estava cogitando se render. Eles estavam evidentemente descarregando suas armas contra o beco para impedi-lo de sair, e, na verdade, estavam conseguindo.
Só havia um problema: a torrente continuava. Os tiros incessantes se tornavam uma caótica e constante orquestra levando-o à surdez.
Os tiros, de repente, ficaram bem menos intensos e Soares recuperou parte da sua audição- uma voz franca e em franco desespero dizia, do outro lado do beco:
-Recuar! Recuar!
Então os tiros cessaram completamente. Soares estava a sós com o silêncio e seu batimento cardíaco, que ritmava seus pensamentos.
É algum tipo de armadilha? Se for, é uma péssima armadilha.
Péssima armadilha ou não, ele aos poucos se levantou e montou guarda atrás da lata de lixo atrás da qual estava sentado, tentando visualizar o que estava acontecendo sem se expor demais.
Viu uma trilha de sangue indo do chão de concreto duro do beco até o corpo de um dos soldados do serviço secreto- um uniforme negro crivado de balas, atirado contra uma lata de lixo revirada, uma mão repousando sobre o peito ensangüentado. Uma luz cândida era refletida por sua viseira escura, na qual se via uma rachadura.
Seu peito se movia lentamente- ele ainda respirava.
Atrás dele, indiferente à seu sofrimento, passava um tanque, ruidoso e descomunal.
Um homem armado apareceu logo depois, frágil e inofensivo ao lado do tanque, mas armado de uma AK-47, refletindo a mesma luz branca que banhava o capacete do soldado.
No mesmo momento em que o tanque passava por cima de um carro e o reduzia à sucata, o homem armado executou o soldado com 7 tiros, praticamente simultâneos. O zumbido da
esteira do tanque calou os tiros- mas ainda assim Soares pôde ouvir o suspiro final do soldado do Serviço Secreto.
Mantendo-se impávido diante de um trabalho bem-feito, o homem, que usava apenas uma camisa branca aberta que deixava entrever seu corpo magro e suas costelas pronunciadas, seguiu em frente.
Soares lembrou-se.
Nara.
Ele a havia deixado à uns 20 metros ladeira acima. O tanque estava indo ladeira abaixo. O que teria acontecido quando os dois se encontraram?
Sem pensar duas vezes na sua segurança, correu para a rua.


*****


Um exército inteiro se mobilizara e estava ocupando as ruas da cidade. Caminhões e mais caminhões com a lona verde e a estrela branca do Exército Americano desciam a ladeira, mas quando passavam a Soares olhava para seu interior, estavam cheios até a borda com soldados mirrados, usando roupas civis, armas claramente não-militares e uma ou outra boina. Com a exceção dos tiros que se ouviam surdamente, como uma balbúrdia distante, algumas notas da cantoria indistinta e fora de tom que o exército entoava eram conhecidos por Soares.
A Internacional. Tropas de maltrapilhos saíam dos caminhões e, em um espaço de tempo minúsculo, montavam uma formação organizada, e a pé seguiam para as ruas laterais.
Comunistas.
Soares sentiu que estar ali poderia ser perigoso- mas enquanto os comunistas mantivessem controle completo daquela rua, não haveria tiros, e eles sem dúvida não sacrificariam um mero cidadão que ficasse na sua. Provavelmente. Talvez.
Seguiu ladeira acima. Caminhões e mais caminhões- dezenas, talvez centenas deles. Quando aquilo iria parar? Os caminhões não paravam de vomitar homens, todos eles suados, mirrados, sujos, autômatos, clones? A ditadura do proletariado em marcha.
Alguns o davam rudes cotoveladas, mas Soares prosseguia. Acima, viu o que procurava. A moto de Nara. Estava vazia.
Vendo aquilo, correu ladeira acima. Os soldados passavam, indiferentes, seguindo em sua marcha robótica. Uma mulher jazia caída na rua. Havia uma poça de sangue se espalhando ao seu redor.
-NARA!
O sangue escorria do corpo de Nara Leão em um filete que descia timidamente até sua motocicleta, alguns metros abaixo.
Uma mão fria encostou à de Soares e seu primeiro instinto foi de recuar, mas ele sabia de quem se tratava, e olhou para baixo. Nara abrira os olhos, mas, pálida, estava claramente em agonia.
-Nara... o que aconteceu- Soares sussurrou, quase soluçando.
As palavras que saíam de sua boca eram murmúrios quase indistinguíveis.
-O c... c...
-Ciclista?
-e... ele. Me esfaqueou.
Soares vociferou.
-Eu vou pegar aquele miserável. E você vai ficar bem.
-N...não, Soares. Não vou ficar bem. À essa altura, n... não tem salvação... certas coisas... devem seguir seu caminho.
-NÃO!- Soares gritou, chamando a atenção dos soldados à sua volta, que até então, marchavam, indiferentes. –Tudo que eu fiz na minha vida foi seguir um caminho, e ela só fica cada vez pior por causa disso. E cada pessoa que toco sai um pouco pior depois de me conhecer. Isso acaba hoje.
-S...Soares... não busque vingança. Estou em paz...
Nara então deu um longo suspiro e toda a cor deixou o seu rosto. Soares largou sua mão e se levantou.
Uma chuva fina recomeçava á cair. Soares olhou para o céu acima- amarelado pela luz da cidade, distante e inacessível, pesado.
Uivou.
Uivou como nunca uivara na vida, e as lágrimas escorreram pelo seu rosto.
No rosto de Nara, um sorriso enigmático.


*****


Duas figuras desceram de um caminhão, andando pelos paralelepípedos úmidos e evitando as poças que já começavam a se formar.
Às duas figuras se somaram outras- armadas, andando à passos cadenciados.
Soares desviou seu olhar do céu de tinta e ouro, e, reconhecendo aquelas pessoas, deu dois passos para trás.
Era uma mulher negra, trajando uma jaqueta de couro, óculos de piloto de caça e um enorme Black Power.
-Branquelo?- ela parecia dizer no momento em que abaixou a arma, mas na verdade, permaneceu calada. A outra figura se aproximou. Dessa vez, foi Soares quem falou.
-Sara?
Sara deixara de lado o coque; uma boina adornava seu cabelo, e da sua boca saía um cigarro, cujas cinzas caíam ocasionalmente no cano de seu revólver.
-Soares, vá embora- ela disse, num tom de preocupação. –Essa luta não é sua.
-É por isso que você não vinha trabalhar?- disse Soares, encarando as duas.
-Detalhes. Soares... Deixaremos você passar dessa vez.
Um dos militantes atrás de si deu alguns passos á frente e parecia querer reclamar, mas Sara o fulminou com o olhar.
Soares pegou a deixa e, sem tirar os olhos do cadáver de Nara, em cujo rosto escorriam as gotas de chuva, saiu por um dos becos.