segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte FINAL

Capítulo 31




D’Este é Soares, pensou Camilla.
Pensando em todos os indícios, estava agora bem óbvio. Eles usavam as mesmas roupas, até o ridiculamente datado sobretudo bege, para não mencionar o mesmo chapéu e inclusive o mesmo bigode. Toda aquela ambigüidade boba sobre a ficção e a natureza dos personagens haviam sido apenas respostas evasivas para que ele não precisasse revelar sua própria natureza.
-Que pós-modernismo o quê- pensou Camilla, enquanto calçava seus sapatos . D’Este não havia criado um personagem. Ele havia contado sua própria história.
Era uma teoria esquisita e provavelmente exagerada, mas Camilla acreditava ter juntado todas as peças. Soares fizera uma promessa – a de encontrar a sobrinha de Cassius, a vítima mais gratuita de toda aquela guerra.
Agora que essa promessa fora realizada, ele buscava uma maneira de contar sua história. Com isso realizado, ele voltava ao ponto de partida; estava novamente na frente do mar, contemplando o barco, contemplando o suicídio. Sua função neste mundo havia acabado. Era isso que, afinal, D’Este- Soares queria dizer. Poderia morrer sem concluir a missão, mas, uma vez que a terminasse, a morte ainda era a única saída. Vários caminhos; um único destino.
Para onde ela estava indo? Camilla não tinha idéia. Mas ela sabia que Soares estaria no ponto indicado, o mesmo de 30 anos atrás, fazendo a mesma coisa que tentara fazer décadas antes. Seu instinto lhe dizia que isso ocorreria hoje. Isso lhe era suficiente.
Botando os sapatos, levou consigo o manuscrito, e saiu correndo pela porta da casa de Rafael, enquanto raiava a aurora, sem ainda saber muito por que.


*****


A aurora se insinuava para Camilla, rosada, ganhando em brilho a cada momento, à cada passo longo que Camilla dava a marina que existia hà 30 anos e lá ainda estava, ainda que diferente,
povoada de barcos recreativos pintados de branco. As casas ao seu redor, postas contra o sol amarelo-azul-púrpura eram ainda pálidas e opacas silhuetas cujos traços eram indistinguíveis. O alvorecer seria o momento perfeito para partir deste mundo; ninguém estaria lá para ver, ninguém diria nada.
Entre os prédios, podia ver um facho amarelo de luz brilhando. O mar. Pôs-se a correr, bufando enquanto se aproximava. Sua bolsa se abria. Tropeçou por um instante, mas logo recuperou o pique . Sua bolsa, porém, inclinada e aberta, deixava escapar as páginas de manuscritos, que, levados por um vento ainda frio da noite anterior, espalharam-se pela rua. Dezenas e dezenas de páginas brancas, bailando no ar em movimentos livres e não-planejados, como pássaros em valsa.
Camilla não viu as páginas brancas, mas uma delas, como que dotada de consciência, foi em sua direção e pareceu querer seguí-la, dando piruetas perto de si, mas finalmente, foi caindo mais e mais e seus círculos se tornaram cada vez mais largos.
Camilla não o viu, mas quando o papel finalmente pousou no chão, nele estava escrito uma única frase, em letras garrafais:


ESTÁ TERMINADO


*****

D’Este não estava no porto; Camilla caminhava, sem compreender, mas dentro de si, se contorcia e em suas mãos repousava sua cabeça, pensativa.
Onde ela errara? Onde estava Soares? Continuou a caminhar, enquanto o sol nascia, indiferente ao que se passava na Terra.
Começava à compreender. Onde estava com a cabeça? Aquela devia ser a teoria mais bizarra que já montara em sua cabeça. O que raios tornava D’Este Soares? Afinal, somente ele parecer com seu personagem não era suficiente. Vários autores escreviam personagens baseados em si mesmos. Na verdade, era mais provável que D’Este fosse um charlatão querendo ganhar
dinheiro com um romance maroto, e que toda essa teoria tivesse saído de sua cabeça em reviravolta pelos eventos das últimas semanas.
Mas então porque tudo fazia tanto sentido?
Parou diante de uma das peras do posto, onde sentava um velho, que desamarrava a corda de um barco. Usando um chapéu de pescador, uma camisa listrada surrada e uma bermuda azul, o velho tinha uma pele avermelhada, escamosa, provavelmente herdada de anos de trabalho. Um grosso, sólido bigode branco com suíças enfeitava-lhe a face, emprestando a ele o candor gentil de um avô. Recuando para desfazer o nó, esbarrou em Camilla.
-Perdão – disse ele, de cabeça curvada.
-Nada – disse Camilla, que hesitava em continuar sua caminhada e parar para pensar aonde exatamente havia errado.
Sentou-se à beira do mar para refletir por um momento, encarando seu reflexo. Absorta em seus pensamentos, fitando os grãos dourados de luz que adornavam seu retrato nas águas, quase não viu o reflexo fluído e indistinto do velho se aproximando.
-Perdão, Camarada – murmurou o velho, segurando seu chapéu perto do peito – Mas gostaria de saber o que uma camarada de sua qualidade está fazendo aqui numa hora tão invulgar.
Camilla virou-se e mirou o velho de cima a baixo, perplexa.
-N-nada. Só vim procurar uma pessoa – disse, desanimada.
-Curioso. Eu venho aqui para não ser procurado – disse o velho, um sorriso debaixo do bigode.
-Acredito que tenha sucesso freqüente.
-Tenho mesmo – o velho disse, sentando-se do lado de Camilla – Esperava também não encontrar ninguém hoje, mas é bom você ter vindo.
-Algum motivo especial? – resmungou Camilla, incomodada com a intromissão do velho.
-Nada. É que depois de todo esse tempo sozinho, queria ter algum rosto para recordar.
-Imagino que seja difícil ser pescador e passar dias no mar. – disse Camilla, desinteressada.
-Ah, eu nunca passo muito tempo. É apenas hoje que pretendo ir mais longe.
Camilla tentou mudar de assunto.
-Você tem certeza que não viu ninguém subindo em um barco e se lançando ao mar?
-Bom, eu pretendo fazer isso agora – disse o velho, e Camilla olhou nos seus olhos. Eles brilhavam de um tipo de alegria infantil, mas no fundo, podia ver neles uma certa melancolia.
O velho se levantou e foi em direção do seu barco. Camilla então tentou ver o barco enquanto este zarpava; primeiro lentamente, e então cada vez mais rápido. De madeira branca descascada, com um pequeno motor velho e barulhento, o barco tremia e rangia; suas peças pareciam todas querer pular fora da embarcação, como que prevendo seu destino iminente. O barco não tinha nome.
Já a uma certa distância, o velho pôs-se a acenar. Gritou então algumas palavras; Camilla não as distinguiu, embora tenha ouvido alguns sons individuais.
Sentiu uma presença atrás de si. Virou-se rapidamente.
A essa altura, reconheceria aquele sorriso besta em qualquer lugar.
-Olá, D’Este.
-Olá, Camilla.
O sorriso besta pairava a dois metros de altura, acompanhado de uma mulher e uma criança, que não devia ter mais de seis anos.
-Você por aqui- disse Camilla, perplexa, levantando-se de seu ponto de reflexão.
-Vejo que compreendeu tudo - disse D’Este, detrás de uma arcada de dentes brilhando e refletindo o sol que já terminava sua ascensão.
-Entendi mesmo – mentiu Camilla, esboçando um sorriso amarelo.
-Que bom. Agora que tudo terminou, gostaria que conhecesse alguns dos outros membros de nosso elenco. Essa é minha querida esposa, Penélope, e esse garoto é meu filho, Telêmaco.
Camilla beijou a face de Penélope e apertou a mão do garoto, que lhe mostrou um sorriso cheio de dentes. Tal pai, tal filho, pensou.
-E acredito que o meu nome você já conheça. – D’Este disse, agora expondo um sorriso mais beatífico.
Camilla estava pronta para dizer “Soares, mas algo, no momento, lhe ocorreu, e sem sequer esboçar um pensamento ou raciocínio a respeito, disse:
-Freeman.
Freeman meneou a cabeça. Todas as outras peças se juntaram: do verbo nasceu a razão.
-Entendo que vieram ver a partida de um velho amigo – disse Camilla, apontando para o barco de Soares, agora um mero ponto no horizonte.
-É mais ou menos isso. Depois daquela noite, Soares se dedicou a realizar a missão que deu para si mesmo, e eu decidi seguí-lo. Era para eu ficar pouco tempo; no meio do caminho, a guerra acabou, conhecia Penélope e acabei ficando. O sotaque se foi com o tempo. Quanto ao Soares, ele queria apenas ter a oportunidade de contar sua história antes de...
Freeman se viu interrompido pela risada de Camilla.
-Eu sei – disse Camilla, não sem parecer que sofria de histeria. – Isso tudo já está dito no seu livro, não precisa me contar de novo.
-Que bom que economizei palavras- riu D’Este. Passados alguns segundos, adicionou:
-Diga, eu e minha família ainda não tomamos café-da-manhã. Sabe, hoje era um dia especial, e não queríamos perder a partida de um amigo tomando suco de laranja. Tem um lugar bom aqui perto que serve café-da-manhã. Quer ir conosco?
-É uma boa idéia. Agradeço o convite – disse Camilla. E agora, sem dificuldade, ela não tinha dúvida quanto a quais eram as últimas palavras que Soares dissera enquanto seu barco zarpava, rumo à infinidade azul.


ESTÁ TERMINADO

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