domingo, 12 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 28

Capítulo 21


-Gê. -Diga. -Estava pensando... -Larga essas reticências. Desembucha logo. -Se poderia ir com você para essa sua missão. Seria um grande aprendizado para mim. -Ah, claro. Porque não. -E além disso, acho que Jana pode estar envolvida com tudo isso. -Porra, porque não disse isso logo? Na verdade, posso apostar que essa é sua verdadeira motivação pra ir. Quer ver Jana de novo e pedir alguma satisfação. -Sou tão transparente assim? -Mais ou menos. Você é invisível, quase.

*****

-Mas quando iremos? -Assim que saírmos desse banheiro. Isso já está ficando estranho. Geraldo estendeu a mão para Soares, ajudando-o à se levantar. -Vamos no meu carro- ele disse, atravessando o corredor à passos largos. -Acho que você ainda está apresentável.

*****

O carro estava um lixo. -Puta merda, esse carro está um lixo!- diz Geraldo, não sem alguma obviedade. Voltando o carro: algo, sem dúvida, havia acontecido com ele na hora e pouca em que tinha ficado do lado de fora da casa, além da vigilância do olhar de Geraldo. Especificamente, ele havia sido pichado e suas janelas tinham sido quebradas. Assinaturas incompreensíveis haviam sido caligrafadas no porta-malas, e um líquido com um odor semelhante ao de mijo contaminava o banco do carona. -Cacete, HMHMQHMHGHMHGGG (incompreensível, vagamente traduzível como: "que criatura fudida faria uma merda dessas?")
-Tem um bilhete no porta-luvas- comentou Soares, ignorando a raiva impotente de Geraldo. Na verdade, depois de tudo que passara, aquilo quase o alegrava. Geraldo, furioso, espumando, arrancou o bilhete do porta-luvas e passou-o através do resquício de janela quebrada. Desdobrou-o com a mesma raiva espumante, e desatou à lê-lo em voz alta. -"Preto safado, isso é pra você aprender à não mexer com a namorada dos outros..."- os olhos de Geraldo lentamente se levantaram da carta e miraram o horizonte. Soares mordeu o lábio inferior. -Isso quer dizer que eles sabem? Geraldo não respondeu. Ficou parado, segurando a carta, mas amolecendo em sua postura. -Será que o carro ainda funciona?- disse Soares, em um murmúrio alto, tentando amenizar a catástrofe. -Vou tentar- Geraldo saiu de sua posição e saltou para dentro do carro destruído, tentando levar sua mente à um outro lugar. Soares logo se distanciou da torrente de insultos que Geraldo catarticamente despejava contra a pobre máquina, e levou sua atenção ao outro lado da rua. Lá estavam eles. Roupas coloridas, pintadas com flores esmagadas, ou algo do gênero, perto de uma Kombi repleta de desenhos de flores, e alguns deuses orientais vesgos.
Hippies.
Ao contrário de muita gente por aí, Soares na verdade era indiferente ao fenômeno hippie. Ele parecia atrair uma atenção desproporcional da mídia; o movimento, se é que dá pra chamar de movimento algo que não possuía nenhuma idéia clara sobre nada, permanecera restrito aos Estados Unidos e à Europa. Nunca deslanchara direito no Brasil; estava apenas engatinhando quando a guerra começou, matando as chances da ingênua retórica de Paz & Amor de ter algum efeito duradouro. Mesmo assim, os jornais saíam freqüentemente com manchetes sensacionalistas sobre a sedução dos inocentes realizadas pelos hippies; histórias de vans que atraíam crianças de 13 anos com a promessa de liberdade, e os levavam em uma espiral descendente de promiscuidade e vícios. Na verdade, aqueles dois hippies eram os primeiros que Soares vira em toda a sua vida. A falta de hippies no Brasil e o foco desproporcional que recebiam da mídia davam margem à idéia de que eles na verdade não passavam de uma história sensacionalista para distrair a população dos verdadeiros problemas do país, dentre os quais o mais óbvio era a guerra.
Antes que Soares pudesse completar esse raciocínio, um deles (delas?) veio andando em sua direção. Soares não sabia como reagir, então apenas sorriu educadamente e meneou a cabeça.
-Paz e Amor, bicho. Tem fogo?- falou o hippie, com uma voz exausta.
-Eu... ham... sinto muito- disse Soares, encabulado. Por favor, não me roube, era o que ele pensava.
-Sente pelo quê?
-Sinto por...
-O pecado é uma invenção da sociedade conservadora, bicho. Liberte sua mente.
-PORRA! QUE MERDA DE CARRO!- Exclamou Geraldo atrás deles.
-Não, eu sinto. Sinto muito. Porque não tenho fogo. Algo assim.
-Ah, tá. Sem problemas, bicho.
-PORRA!- Continuou Geraldo.
-Fala tu, o seu amigo parece meio tenso. O que ele tem?- perguntou o hippie tirando um isqueiro do bolso e acendendo um cigarro. Malditos hippies que não fazem sentido, pensou Soares.
-Ah, ele só está meio tenso. Não consegue dar partida no carro. - disse Soares, tentando não deixar transparecer seu constrangimento.
-Acontece.
-É, pois é.
-Mas sabe...
Soares respirou fundo. Lá vem pedrada.
-Diga.
-Pra que um carro, bicho? Um carro é só uma latinha movida com óleo preto e fedido. Ele te leva pra todos os lugares, isso é, se você gosta de ficar apertado, e de ficar preso em filas intermináveis, esperando, esperando, quando poderia estar VIVENDO. Pensa nisso.
Soares suspirou. –Suponho que sim- ele disse, no piloto automático.
-Falando nisso, vocês sabem onde eu arranjo gasolina? Precisamos para voltar pra casa.
-PORRA! CARALHO!
-Cacete, Ge, não quer se controlar aí não?- estourou Soares.
-Ah, desculpa, o seu carro foi destruído hoje? ALGUÉM URINOU NELE?
-Eu nem tenho carro.
-TANTO FAZ!
-Bicho!- exclamou o hippie. - Tive uma grande idéia. Porque você não vem com a gente! Nós levamos vocês aonde vocês precisam ir.
Soares à essa altura já estava absorto em seus próprios pensamentos, tanto que quase não notou quando o hippie disse:
-Ah, a única coisa é que antes temos que ir para um show nosso, depois vocês podem dirigir a van aonde quiserem. Quer dizer... espera...
-Perdão, o que você disse?- perguntou Soares, reinteressando-se.
-Ah, é o show. O festival cultural e tal. Vai ser animal, bicho!
-Aquele que vai ter a...
-Nara Leão, Caetano Veloso, Raulzito e até o grande Chico Buarque. Todos os grandes estão de volta!
-Fascinante.
Soares não conseguia conter o entusiasmo. Só estranhou o fato de Orfeu e seus asseclas do Serviço Secreto não terem percebido antes a escala que aquele show teria.
Foi até a janela quebrada do carro e aproximou-se da orelha de Geraldo, pensando em murmurar, mas então viu que não havia necessidade para tal.
-Geraldo, ouviu? Esses hi... digo, educados jovens estão se oferecendo para nos levar para o Festival!
-Eu tenho a sua idade- falou o hippie, bem baixo.
-Seguinte, por que está berrando no meu ouvido?- reclamou Geraldo, e Soares saiu de sua posição inclinada.
-Olha, você quer, ou não quer?- perguntou Soares.
-... Cara, em uma hora em que eu fiquei longe do meu carro conseguiram depredar ele inteiro. O que vão fazer se eu passar o resto do dia longe da minha casa?
-Ora, seja homem!
-Mas... eles são hippies- sussurrou Geraldo.
-Ora, Geraldo, preconceito nunca levou ninguém à lugar nenhum- disse Soares em voz alta, gerando uma reação indignada de Geraldo.
-Nós não podemos simplesmente pegar um táxi?
-É verdade. - Soares refletiu um pouco. - Se bem que, entrar na Kombi deles é o jeito mais fácil de chegar lá sem chamar atenção.
-Certo, concedo esse ponto, mas um táxi...
-Ora, Geraldo, você quer ou não quer chegar lá?
-Quero- disse Geraldo, e, hesitante, adicionou: - Preciso.
-Além do que, minha tese é de que a Milícia de Jesus vai estar lá. A Milícia é mancomunada com Orfeu. Se você vai para lá, eles já estão sabendo. Eles provavelmente vão estar inspecionando os táxis que chegam, e, na verdade, esse carro está repleto de sinais deixados por eles.
Geraldo encarou, pensativo, o volante coberto de urina por alguns segundos, e então abriu a porta e saiu do carro.

*****

Uma Kombi, segundo consta, é um carro espaçoso, mas a maioria das Kombis não contava com um colchão, tapetes de motivos indianos e sacolas recheadas de... algo.
-Bicho, vai ser animal- disse o hippie vagamente feminino, sentado no “banco de trás”- na verdade, a enorme zona ocupada pelo colchão e outros equipamentos sortidos.
-Acho que sim, “bicho”- comentou Soares, sentando-se no colchão. Notou então que tinha sentado sobre algo duro, e dobrou o colchão para retirá-lo.
-É. Vocês fazem o quê da vida?- comentou Geraldo, encolhido num canto, desconfortável, tentando quebrar o gelo. Só então viu que essa pergunta era uma péssima idéia.
-Nós viajamos o mundo, bicho- disse o hippie fêmea, se levantando e agarrando-se no teto, enquanto o carro disparava.
-Nós temos novas experiências e descobrimos a natureza e a realidade do mundo fora de um contexto urbano e opressor, bicho- continuou o hippie macho.
-Fascinante- comentou Soares, em piloto automático novamente. Já conseguira levantar o colchão, e então viu que o que o incomodava era uma cítara, com três cordas soltas.
O hippie fêmea olhou para baixo, com um olhar de surpresa.
-Caraca! Você achou a minha cítara! Isso merece uma comemoração!
Geraldo olhou para Soares. Os dois sabiam o que isso significava.
-O que devo cantar?- ela perguntou, sorridente, torcendo o pescoço e segurando a cítara perto da orelha.
-Nada- os dois responderam em coro.
-Uma do Chico Buarque- respondeu o hippie macho- Pra comemorar a volta dele- adicionou.
-Excelente escolha!
-O que fazemos?- comentou Geraldo, com uma expressão de desespero tomando-lhe o rosto.
- VOCÊS TEM COMIDA?!- exclamou Soares, dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
-Vocês estão com fome?- disse a hippie fêmea, tirando os dedos da cítara.
-Sim.
-Não!- disse Geraldo levantando as mãos ao nível dos ombros.
-Vai se fuder! Tudo que eu comi na sua casa saiu na mesma hora!- disse Soares.
-Tem umas balinhas lá atrás- disse o hippie macho, ainda dirigindo, concentrado.
-Eu pego- disse Soares, se levantando, os pés afundando no colchão macio enquanto ele andava para a outra direção do carro, rumo às sacolas empilhadas no fundo, que iam até o teto.
-É essa branca- disse a hippie fêmea, dedilhando na cítara.
-Mas... são todas brancas.
-Era a única cor que tinha.
-Certo- Soares pegou a primeira sacola que viu, e, olhando dentro, viu que continha balas. Puxa, que sorte.
-Ei galera, achei as balas!- exclamou.
Eram pequenos quadrados com o desenho do “S” do Super-Homem. Soares pegou um para si e jogou um para Geraldo.
-Acho que é de chupar- disse Soares, colocando na boca. Era bom ter algo consistente no estômago uma vez que fosse.
A hippie parecia preocupada, e Soares chupou vigorosamente sua bala enquanto a fitava.
-Sabe, eu acho que você... não, deixa pra lá- disse ela, gesticulando, e olhando para baixo.
-O que que houve?- perguntou Geraldo.
-Não tenho idéia. Quer outra bala?
-Claro, está ótima.
Soares pegou mais uma bala do saco e jogou-a para Geraldo. Ao jogar a bala, percebeu que sua mão estava suada, grudenta. Os cantos estavam aderindo uns aos outros. Tentava descolá-los- tentava mesmo- mas não conseguia, e havia uma força invisível agarrando seus dedos e fazendo-os se colarem.
-Cara, minha mão ta zuada, digo, suada- vociferou Soares, caindo em seus joelhos.
-É normal nesse estágio- disse a hippie, pegando uma das balas do saco e botando na boca.
-Cara. Soares. SOARES!- exclamou Geraldo.
-O que foi?
-Não sinto minhas pernas.
-Isso é normal também- disse o cogumelo falante, tocando violino.
-Caralho cogumelo, você toca bem- comentou amigavelmente Soares, esparramando-se no colchão, cuja consistência tinha se reduzido ao de uma teia de aranha feita de pudim.
-PORRA SOARES, QUE PORRA É ESSA!- berrava Geraldo, em uma língua morta. Um dialeto do Klingon misturado ao suave mascar do chiclete por uma garota de escola católica.
A mão grande e insólita apareceu na frente de seu olhar novamente. Já não era mais suor nem grudeira, e sim pedaços de pele esparramada formando canais e tubos conectando partes diferentes, fechando os dedos, atraindo uns aos outros, formando uma massa amorfa.
-Gê, Gê, minha mão está derretendo, comentou a boca de Soares, que viajava pelo céu como uma vagina alada, e Geraldo respondeu
-Cara, cara, que parada é essa? O que nos deram de comer?- sua voz virava uma lamúria de Marlene Dietrich, convertendo-se em um flato verde e pegajoso que caia, sujando a imensidão branca daquele mar imenso.
-Koé, essa parada parece boa! Carmen, passa pra mim!- falou um amontoado de formas geométricas acima de Soares, Geraldo, e o exército de lobisomens, e logo recebeu uma bala perdida com um sorriso humano.
-Boiolagem, é tudo isso,- orgasmou a consciência estomacal de Soares, transformada em metáfora aérea no meio do leitesco paradigma triangular. Era um gigantesco oceano de porra.
-SOARES, VOCÊ VAI PAGAAAAAAAAAAAAAAR- sussurrou uma voz vinda do além de uns dez ou quinze buracos negros, e a Deus caminhou até Soares saindo de sua espaçonave biológica em formato de guitarra, saindo do mar em câmera lenta. Como que entrando, só que ao contrário, e as ondas iam deixando de sentir seu impacto. Coisa de Hollywood. A Deusa, em sua pele diáfana (ou seria o leite?) andou até Soares, formando-se um pilar de solidez em meio à realidade fluida e gosmenta que se fundia à sua consciência, fluida.
Deusa branca, Deusa Deusa, Deusa dos muitos cabelos, dos muitos nomes, dos dois olhos, dos corpo perfeito, Deusa do nome, Deusa do real em meio à ilusão, Deusa das cem alegorias e das mil metáforas, Deusa das mamas redondas sob céu de caco de vidro.
A Deusa avançou e se inclinou, capturando a poça viscosa, de Soares, deveras tarântula patinando. Rato em uma rodinha, uma roleta que girava rápido, onde as cores se fundiam em novas cores, e as novas cores se fundiam nas novas cores, e tudo se juntava ao oceano e oceano era tudo.
-SOAAAAAAAAAAREEEEEEES- mas Soares não ouvia mais. Até porque, eles estavam reduzidos à um par de óculos. Soares perdera seus 5 sentidos originais, mas ganhara 7 novos.
Chuva de cacos, quebrando em migalhas o oceano ao redor. A Deusa se inclina. Soares pode ver seus peitos esticando-se para o chão enquanto seu corpo se inclina e se contorce para servi-lo. Ela retira cuidadosamente a tanga marrom que oculta sua parte marrom.
Soares gritam.
Ela tem três pênis.
Um lápis, uma tomada e uma lanterna que entram pelo umbigo de Soares. O início de uma sinfonia o avisa que eles chegaram ao outro lado e o perfuraram completamente.
Um pássaro asteca de nome impronunciável declama versos de Baudelaire, iniciando uma reação em cadeia que explode o sol, mandando pedaços de torta para destruir todas as catedrais, todos os shoppings, deixando apenas queimaduras de sol na pata dos leões educados em latim e grego, que iniciam uma orgia gastronômica sobre o corpo inchado e cheio de vermes cibernéticos da Deusa, entrando em erupção em uma manifestação literária, sit-in de proporções épicas, bíblicas, demoníacas, sobrevivendo ao Holocausto nuclear e embebendo a realidade de petróleo até que a poesia morra, morra, morra.
Ah, e Shakespeare também estava lá.


*****


A sobrancelha de Soares estava úmida, e seus olhos estavam arenosos.
Esfregou o rosto, e um som não muito familiar o atingiu. Abriu seus olhos ainda muito limitados, e viu que um gato estava lambendo sua sobrancelha.
Tentou se levantar. Perguntou-se se era por causa das arapucas de couro de Jana, mas então lembrou que tinha se livrado delas já fazia muito tempo. Era apenas seu corpo que estava entorpecido.
Notou então que estava escuro. Havia mesmo passado tanto tempo assim?
Deu um salto e enxergou toda a Kombi: todos estavam deitados: Geraldo, e os dois hippies. Os três estavam enrolados em um tipo de manta colorida, grossa, e fedida, coberta de desenhos bordados de olhos e motivos indianos.
Cheiro. Suas narinas, após um breve período desativadas, estavam de volta e não gostavam do que viam- ou melhor, sentiam. Um cheiro nauseante tomava conta da Kombi.
Soares olhou ao seu redor, procurando a fonte. Se abaixou e levantou um canto do colchão, na procura daquele cheiro ignóbil.
Foi então que restos de comida saltaram de sua lapela. O gosto infecto na sua boca não permitia outra explicação. Estragara o sobretudo de Geraldo.
Bom, em minha defesa, ele que me estragou com aquela comida- pensou Soares.
Sem poder suportar o cheiro tão perto de seu rosto, arrancou o sobretudo, só para ver que parte do vômito havia escorrido para sua camiseta. Com nojo, e sentindo novamente as náuseas, fez rapidamente uma bola com as roupas e as jogou em um canto do carro.
Tem que ter algo aqui, pensou, fuçando a pilha de sacolas brancas no fim do carro. A maioria estava repleta de estranhos objetos tubulares, com dois orifícios saindo de lados opostos, e que tinham uma variedade de formatos; um parecia um gnomo, outro um crânio, outro era uma caricatura de Arnon de Farias Mello, o Presidente da República.
Quase desistindo, sentiu tecido ao enfiar a mão em uma das sacolas. Puxou-o para fora, e a roupa se desenrolou como um pergaminho. Uma camisola comprida e azul, com braços curtos e uma gola dourada. Um olhar mais detalhado veria que, novamente o tecido estava coberto de motivos indianos. Vestiu-o sem muita cerimônia; pelo menos não estava coberto de vômito.
-Geraldo, Geraldo, você está bem?- Soares se abaixou e cutucou Geraldo. Só então notou que ele estava pelado.
-Eu te mato no sono, filha da puta- ele falou com raiva, e espuma escorreu do canto de sua boca. Ele então caiu no sono.
Charmoso, pensou Soares, e andou até o guidão, desviando-se de seringas vazias e flores secas espalhadas pelo colchão úmido e com uma cor marrom-acinzentada pela sujeira.
-O que pretende fazer aí?- disse uma voz que à Soares era estranhamente familiar.
Olhou para trás, e como quem não tinha visto nada, voltou à mirar à frente, só para olhar para trás de novo, e ver a sua companhia. Um enorme, gordo, volumoso hipopótamo amarelo.
-Tudo bem, charmoso- disse o hipopótamo sem abrir as mandíbulas, mirando Soares com um olhar sedutor.
-O QUE CARALHOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI- gritou Soares, se virando contra o vidro e tentando escapar através dele, sem sucesso.
-Vários usuários de LSD já disseram ter presenciado figuras que apareceram em seus sonhos durante uma viagem- respondeu o hipopótamo, em tom acadêmico.
-POR FAVOR, NÃO ME ESTUPRE- disse Soares, continuando sua escapada, e percebendo a consistência líquida e viscosa do vidro.
-Ah meu Deus... Eu ainda estou sonhando!- Soares percebeu, em desespero.
-Não seu merda, só está chapado. Ah, olha, um hippie. É melhor eu tirar fora esse pau largo e começar meu trabalho- Comentou casualmente o hipopótamo, arreando um calção branco com estampa de corações que estranhamente tinha se materializado.
-NÃO, NÃO! POR FAVOR!
-Soares, o que houve?- disse o hippie macho, sacudindo Soares. –Ai Alá, ele ta tendo uma bad trip!
-O que foi amor?- disse, em uma voz sonolenta e arrastada, a hippie fêmea, que tinha acabado de acordar.
-Amor, pega a água sanitária rápido!
-TENHO QUE FUGIR!- gritava Soares, e ligou a chave de ignição.
-Ai fudeu, ele está tentando fugir do hipopótamo- disse o hippie.
A Kombi disparou. Mais à frente, em meio à escuridão, havia uma barreira pouco visível.
-Sabe, você está se mexendo, mas eu continuo aqui dentro- disse o Hipopótamo.
-AI SOCORRO!- gritou Soares.
-FREIA! FREIA! FREIA SEU HIPPIE MALUCO- falou o hippie, entrando em pânico.
O impacto se fez sentir no vidro e em um enorme solavanco, jogando Soares contra o teto. Enquanto ele e os outros integrantes da Kombi pulavam, Soares pôde sentir um filete de sangue escorrendo pela testa. Era o maldito calo que o soldado de Orfeu tinha feito dias antes, agora uma ferida.
Quando o carro terminou seu solavanco (mas não seu deslize), Soares olhou à sua volta. O vidro estava rachado, uma daquelas rachaduras grandes e circulares que lembravam teias de aranha. A hippie gemia atrás, e o hippie jazia desacordado ao seu lado. Felizmente, o hipopótamo sumira.
Só então percebeu que ainda estava com o pé no acelerador.


*****

Tirou o pé, e pisou forte no freio, mas isso não foi o suficiente. O carro desacelerou brutalmente, mas continuava deslizando no asfalto brilhoso e molhado ao seu redor; pelo visto, chovera enquanto estava dormindo.
De súbito, sentiu outro solavanco. Não tão forte quanto o primeiro, mas podia jurar que dessa vez, tinha visto alguma coisa. Como um flash rápido passando diante de seus olhos. Ou uma pessoa sendo atropelada. É, algo assim.
O carro finalmente parou.
Abriu a porta e pulou para fora, aterrissando com os pés diretamente em uma poça d’àgua.
-Merda- disse, instintivamente.
-Merda!- disse outra pessoa.
Soares se lembrou do que havia aprendido na guerrilha de Marighella sobre locais desconhecidos; olhar rápido ao seu redor para tentar montar um mapa mental de onde estava, e principalmente, descobrir em que ponto da cidade estava.
Não precisou ir muito longe. Olhando para o lado, viu a estrutura larga de concreto, repleta de luzes amarelo-alaranjadas. O estádio Fonte Nova, em toda sua feia e magnânima redondez.
Olhando à sua volta, Soares viu fileiras e mais fileiras de carros, entregando que estava no estacionamento, o que era estranhamente conveniente.
-Você está bem?- disse a voz ainda sem corpo. Logo surgiu de trás da Kombi. Uma mulher não muito alta. Usava um cabelo escorrido em forma de coco, por algum motivo muito na moda na época. Chamava-se corte Chanel, ou algo assim. Rosto ligeiramente oval. Usava óculos escuros redondos. Sua pele e jeito de ficar parada lhe lembravam um pouco de Jana.
-Foi um belo acidente que aconteceu aí.
Era estranhamente familiar.
-Você me é estranhamente familiar- disse Soares. –Sua voz inclusive.
-Já escutei isso algumas vezes. Me chamo Nara.
-Nara? Você por acaso não seria...
-Nara Leão?
-Ô Nara!- reclamou outra voz, vindo de um carro ao longe. Soares viu dos vultos entre o brilho fraco de cigarros.
-Já to indo, Chico!- ela disse, tirando um cigarro do maço no bolso.
-Chico...
-Buarque?- ela completou.
-De Hollanda?
-Precisamente. Estamos aqui dando uma relaxada antes do show. Você veio pro show, não veio?
-E... eu... e...
Soares estabanou-se nas palavras.
-É claro que está, olha o jeito que tá vestido.
Soares não tinha pensado nessa.
-É claro, é claro- ele disse, enrubescendo.
-Amigo, você pode fazer uma coisa por mim? Avisa pro Caetano que se ele não vier logo, nós vamos acender o bagulho sem ele.
-Ele...
-Ele está lá atrás. Perto da grade. Foi assinar uns autógrafos ou alguma coisa assim.
-Caetano...
-Caetano Veloso. Sabe, o meio afetado.
-É isso aí Nara, só fala dos outros pelas costas- falou um dos vultos com cigarro.
-Ah, cala a boca, Raul. Você é mesmo um chato.
-Tipo uma pedra no sapato?
-Rimou. Mas acho que está mais para mosca na sopa.
-Vou anotar essa- disse Raul Seixas, dando uma baforada no cigarro.
-Bom- disse Nara Leão se virando- Você pode então ir buscá-lo?
Mas Soares já tinha ido.
“Caralho, é a Nara Leão. Isso está mesmo acontecendo.” Só tinha uma idéia muito vaga de qual seria o plano de Jana, mas se estivesse certo, Nara e seus amigos corriam sério perigo.
Estava andando tão rápido e com tanto desinteresse sobre o asfalto molhado que levou um verdadeiro susto quando tropeçou e quase deu de cara com o chão- embora, pensando à posteriori, talvez não devesse ter ficado surpreso.
Aquele desnível súbito parecia não fazer muito sentido, e Soares, ainda se sentindo cheio de energia, se levantou com um só braço e deu um passo para trás para ver no que exatamente havia tropeçado.
O calombo era uma massa estranha no meio de uma poça. Algumas roupas molhadas, sobre o que parecia ser uma caixa torácica coberta de sangue. Sobre a caixa torácica, pousado sobre ela como a vela de um bolo de aniversário, uma bola de cabelos, hirsuta, cobrindo a superfície redonda e disforme.
Soares, sem pensar duas vezes, chutou a bola cabeluda, e ela caiu rolando na poça.
Os pêlos ganharam uma consistência úmida, revelando a superfície da bola, embora alguns pêlos teimosos e molhados permanecessem grudados á ela.
Soares agora podia ver melhor sua obra. Ela lembrava bastante Caetano Veloso, se este tivesse tido sua cabeça arrancada. Caetano Veloso se tivesse tido sua cabeça arrancada e ela tivesse rolado em uma poça de água da chuva imunda, e o seu cabelo molhado tivesse aderido ao rosto.
Se o seu tórax tivesse sido triturado por um objeto se locomovendo em alta velocidade- uma Kombi dirigida por um detetive alterado, por exemplo.
O efeito do LSD havia passado e as peças se juntaram.
-Caralho- disse Soares, em voz alta- Eu matei Caetano Veloso!
Soares pensou em procurar por sinais de vida, e se abaixou para fazer um boca à boca. Daí lembrou que Caetano estava sem cabeça. Assim, permaneceu, catatônico, admirando o cadáver largado no chão, enquanto recomeçava a chuva.


*****

A chuva fazia nascerem pequenos círculos na rasa poça d’àgua, círculos que cresciam e tocavam Caetano Veloso enquanto o sangue escorria da superfície de seu tórax, ensopando sua camiseta, deixando-a viscosa e espalhando-se progressivamente pela poça. O avanço do sangue era parado apenas pelas gotas de chuva, que o diluíam e faziam buracos na imponente capa
vermelha que se alastrava pelo chão e turvavam os fracos globos de luz amarela que emanavam dos postes.
Enquanto tudo isso acontecia, Soares montava seu plano, e ia até a Kombi para pegar sua arma.
Nara Leão ainda estava ao lado da Kombi, fumando. Tentava, sem muito sucesso, cobrir o cigarro da chuva com sua mão, e a fumaça ao seu redor, ajudada pela luz dos postes, ganhava uma qualidade etérea e enevoada.
-O que você está fazendo com esse violão?- ela disse, soltando uma baforada.
-Ele disse que não vem. Ficou lá atrás com algumas tietes.
-Ah, esse Caetano... Pera, eu achei que ele mordesse fronha.
-Que conceito mais carola, Nara- disse uma voz vinda lá de trás. A voz- ou seu detentor- se limpou, e adicionou- A experimentação é a palavra de ordem, nas artes como no sexo.
Nara revirou os olhos por detrás dos óculos.
-Certo. Caetano não vem. Bom, não é a primeira vez que isso acontece. Deve ter pego isso do João Gilberto. Enfim- dirigiu-se à Soares- O que você está fazendo com esse violão?
Soares deu dois passos à frente e disse, com o peito estufado:
-Eu posso tocar.
Nara Leão abaixou os óculos e olhou para Soares de cima á baixo, de baixo para cima, e de cima para baixo de novo. E então de baixo para cima mais uma vez, com uma cara de “Você está falando sério?”
-Você está falando sério?- ela disse, com incredulidade.
-Sério é o meu nome do meio- disse Soares, e tirou algumas notas dissonantes do violão.
Nara deu outra baforada, franzindo o cenho e fazendo aquele olhar em que uma sobrancelha fica abaixada e a outra, levantada e curva. Era muito legal.
-Você tem cara de ser um daqueles que sempre quis ser uma estrela do rock- ela disse, sorrindo.
-Sou mesmo- era mentira.
-Então prepare-se- ela agarrou seu braço e, virando-se, começou à conduzi-lo em direção ao estádio- Seu sonho de infância vai se realizar.

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