quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

120 Horas em Lhassa - Parte I

Os Himalaias soltando lava. Tempestades de ácido corroendo a paisagem de fundo do quadro Mona Lisa. Um rosto conhecido, que piscou três vezes antes de desaparecer.
Merda.
Lama Poteng estava sentindo a pior dor de cabeça da sua vida. Whisky, pensou ele. Olhou para o lado, e de fato havia uma garrafa de Black Label ao lado de sua cama.
Um barulho ainda tilintava na sua mente. Se concentrou e percebeu que o som monótono vinha do despertador.
Levantou-se da cama, e só quando tentou se desvençilhar dos lençóis percebeu que nela havia mais alguém: uma jovem menina de rosto delicado e longos cabelos negros. Tinha, no máximo, 14 anos.
Ah, não, Onsan, seu incompetente... pensou consigo mesmo, aflito. Onsan era seu assistente pessoal. Ocupava-se de arrumar a papelada, agendar os compromissos de Vossa Excelência e, quando a solidão apertava, arrumá-lo companhia. Ele conhecia a preferência de Poteng por meninas jovens, mas talvez tenha exagerado, afinal mesmo nos tempos de hoje não pegava bem uma menina de 14 anos com cara de 12 saindo do complexo de templos do Palácio Potala.
Notou que Onsan deixara sua túnica dobrada em cima de uma almofada perto da cama. Vestiu-se logo e dirigiu-se para a Sala da Harmonia Celestial, onde aconteciam as reuniões semanais com Vossa Santidade.

0 Horas e 30 minutos.

A Sala da Harmonia Celestial era decorada com várias tapeçarias com desenhos elaborados de Demônios, Lamas, cenas da vida de Buddha e Suásticas, o que sempre rendia um comentário ou dois dos embaixadores que eram convidados para ela.
Várias pessoas já estavam sentadas na sala naquela Segunda-Feira, 28 de Fevereiro de 2011. Eram elas: Dae Wong Sok, Ministro da Economia; Tempa Jamyang, Ministro de Assuntos Exteriores; Lama Gangchen, Superintendente para a Religião; Ministro da Energia e Infraestrutura Dao Rinpoche; Ministro do Interior Laogan Turkveyeni; Zheng Gyatso, Chefe do Estado-Maior e Ministro da Guerra; Lama Poteng, Administrador Geral dos Campos e Vice de Gangchen; e o Coronel Luvsanshara, Diretor do Ulukorbak.

Todos esses respeitáveis senhores, nenhum abaixo da casa dos 70(com a exceção de Luvsanshara; ninguém realmente sabia sua idade, e cada vez que alguém perguntava era algo diferente) estavam dispostos em fileira, ao lado de um pufe central que ficava logo à frente de uma gigantesca estátua de Buddha, e era decorado em detalhes dourados e costurado em seda pura. Seu ocupante ainda não chegara.

-Os atrasos de Vossa Santidade estão ficando mais frequentes- disse Turkveyeni, tomando cuidado para ser o mais neutro possível.
-De fato- disse Gangchen, com uma expressão no rosto que parecia querer expressar surpresa sobre uma constatação que todos sabiam óbvia. Essa expressão deixava sua cara ainda mais gorda e seus olhos ainda mais inchados.
Uma porta se abriu e o silêncio se fez. O protocolo era conhecido de todos; os ministros se atiraram ao chão em sinal de respeito a Vossa Santidade, que entrava fazendo com os pés o som de um lenhador abatendo uma árvore à dezenas de quilômetros.
-Levantem-se, por favor. Não seria prático fazer a reunião nessa posição- Os Ministros se levantaram sorrindo; ele fizera essa piada em todas as reuniões semanais nos últimos três anos. Havia um boato de que quem sugerira essa piada à ele, um jovem serviçal, fora promovido à Coronel. 
-Bom. Wong Sok, qual é o estado da economia?-começou o Dalai Lama.
-Vossa Santidade...- Wong Sok suava; todos se viraram para ele.-Mais três fábricas fecharam nessa última semana no pólo industrial de Qirihar. Desde o início do ano, são sete. A região está num estado emergencial e pode se tornar uma zona de desemprego agudo nos próximos anos. Eu e minha equipe acreditamos que o problema seja o esgotamento das minas de carvão que...
-Alto lá!- esbravejou Dao Rinpoche, o Ministro da Energia.-O senhor não vai culpar o meu ministério pela sua política econômica incompetente, não é?
-Que política? Apenas sigo as recomendações do Banco Central.
-Isso, isso, aproveite e jogue a culpa em quem está doente e não pôde vir. É o tipo de atitude que nos leva para...

Morte ao Dalai Lama! Viva a Liberdade!

Os ministros se entreolharam.
-Mas hein?
-O que?
-Traição!
-Vem lá de fora...
-Ah, essa não, mais uma manifestação!
-Manifestação?!?!
-As minas de carvão fecharam porque o carvão acabou!
-Que sacrilégio! Como alguém pode sugerir que matem Vossa Santidade?
O Dalai Lama abriu espaço entre a turba de idosos senis e dirigiu-se à varanda. Lá embaixo, viu talvez uma centena de monges, trajando vestes douradas, berrando: 

Morte ao Dalai Lama! Viva a Liberdade!

Turkveyeni olhou para Gyatso que olhou para Poteng que olhou para Wong Sok que olhou para Jamyang que olhou para Rinpoche, que disse:
-As minas... de carvão... esgotadas... precisamos de... financiamento...
Luvsanshara, o único que ficara sentado, tomou um gole de seu chá e disse, calmamente:
-Quem são os manifestantes?
-Quem?
-Quem são os manifestantes? Operários, soldados... monges?
-Sim, monges.
-Vestes douradas?
-Ham... Sim.
-Certo.- pegou um celular- Xia, aqui é o Coronel. Mande alguém para o Mosteiro de Tayiuan Nul.
-...Tayiuan Nul?- perguntou Gangchen, temeroso- como em 1996?
-A história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa.
-Espere um pouco... Marx?
-A situação pede. 


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