sexta-feira, 28 de junho de 2013

De Homens e Coxas

Virou moda dizer que os protestos que se apoderaram do Brasil nas últimas semanas foram 'gentrificados'. Que teriam sido tomados por aquele grupo social que é a fonte de todo o mal no país: a Classe-Média. Que a dita-cuja, seguindo seus instintos fascistas, estaria 'sequestrando' a pauta da manifestação com reivindicações de... gasp... direita!
Eu já falei um pouco disso ontem, na minha revisão do texto 'Fascistas!' mas queria elaborar melhor esse tema, principalmente porque é um que me afeta muito. Eu, como muitos, fui acusado de ser fascista(parece ser um problema frequente comigo: a esquerda tende à me chamar de fascista, enquanto que direitistas conservadores me chamam de comunista. Guiando-se exclusivamente pelo meu nome, eu acho que talvez os esquerdistas estejam mais certos). Isso, é desnecessário dizer, me deixa um pouco irritado. 
Vamos aos problemas básicos dessa argumentação da esquerda, e porque eu acho que eles o estão fazendo:
1) 'Cuidado, a Direita está tomando as manifestações!' So what? Supondo que as pessoas que se manifestaram são mesmo de Direita, isso tira o direito delas de se manifestarem? A esquerda, por acaso, tem o monopólio dos movimentos sociais?
2) Se não fosse o bastante, é muito difícil realmente dizer que as pessoas que se manifestam de camisa branca são 'de Direita'. Nos círculos da dita Esquerda, bandeiras 'contra a corrupção' são condenadas. Essas bandeiras, por coincidência, são agora o foco das manifestações, desde que as tarifas foram derrubadas. Uai? Quer dizer que, ser contra a corrupção agora é ser de Direita? Eu pensei que isso fosse a tarefa de qualquer cidadão com vergonha na cara. 
3) Sobre o ponto acima, está na cara que isso traduz muito mais uma preferência ideológica da Esquerda. Embora não seja na verdade o partido mais corrupto, como muitos gostariam de achar,o PT tem contra si o peso de ter sempre sido um partido que prezava antes de tudo a ética na política, tornando as acusações contra si mais pesadas que as outras. Assim, a Esquerda enxerga a luta contra a Corrupção como uma 'luta contra o PT', um equívoco paranóico. Para eles, o Governo Dilma Rousseff, contra o qual eles também protestam, é o 'mal menor'; sua guerra verdadeira é contra o PSDB e o moribundo Partido cachorro-morto-mas-vamos-chutar-ele-mesmo-assim Democratas, sem se importar com a posição virtualmente idêntica ao Governo Federal que esses partidos adotam, tornando a tal bipolaridade da política brasileira(se é que ela já foi bipolar em algum lugar que não o segundo turno das eleições) mais parecida com uma unipolaridade maquiada. Assim, o Governo Dilma deve ser em última análise criticado, mas somente pela Esquerda, pois uma crítica da Direita significa antes de tudo um complô para derrubar o Governo do PT; o inimigo é a Classe Média fascista que deve ser extirpada desse país(como isso se daria nunca é detalhado).
4) Apartidarismo é fascista desde quando? Eu não sei de onde essa ideia veio, mas já está me dando nos nervos. O pior é que as pessoas dizendo isso reclamam que quem não concorda com eles é alienado, que deveria ler livros de História para saber o que está acontecendo, mas eu duvido que algum deles tenha lido qualquer análise que seja sobre a subida ao poder do Terceiro Reich ou do fascismo italiano. Sim, a estratégia dos Nazistas envolvia protestar contra 'tudo que está aí'- mas, como a galera do "Hitler foi eleito" gosta de nos lembrar, boa parte da chegada ao poder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães se deveu à convencer às pessoas de que eles iriam salvar a Alemanha se as pessoas lhes dessem um voto de confiança. No caso, um voto literal, porque eles disputaram eleições. E quase ganharam( Não, galera do "Hitler foi eleito", aqui vai uma novidade para vocês: Hitler NÃO FOI eleito, pelo menos não como nós elegemos um Presidente). Assim, mais que o apartidarismo, o que define o fascismo é a presença de um partido centralizado, forte, ativo e cheio de gente disposta à bater em outras pessoas. O que me leva ao próximo ponto...
5) Boa parte da Esquerda que faz essa crítica do fascismo é, ela mesma, extremamente anti-democrática. Essa Esquerda dos "Partidos nanicos" como PSTU, PSOL e PCO, que são sempre figuras engraçadas no horário eleitoral, vem de uma tradição que remonta aos partidos revolucionários. Nunca vimos o que um Partido desses faz, parcialmente porque nenhum deles chegou ao poder(Ah é, com a exceção daquele Psolista que foi eleito prefeito de Macapá e foi prontamente expulso. Tudo bem, vida de situação não é pra qualquer um), mas temos dicas aqui e ali do que eles poderiam fazer, com base em seu Modus Operandi. Um amigo meu me contou(esqueci vários dos detalhes dessa história) que, depois de passar vários anos no comando do DCE de uma faculdade, uma chapa financiada e organizada pelo PSOL e formada por integrantes seus decidiu abolir as eleições, acabando com toda consulta popular dos estudantes. Pelo que eu soube, a decisão foi revertida depois, mas isso mostra a extensão do ímpeto anti-democrático dessa Esquerda e como seus métodos são escusos.
6) À aqueles que estão dizendo que "vão abandonar o movimento porque ele foi tomado por Direitosos": Porque raios vocês passaram tanto tempo respondendo à críticas aos seus movimentos, dizendo que "Ninguém nunca faz nada e quando alguém decide fazer é achincalhado!" se agora é pra fazer a mesma coisa? Bando de hipócritas.
7) Sobre o ponto acima, também vejo muitas pessoas de Esquerda reclamarem pedindo "união", dizendo que não podem levar bandeiras de Partido senão recebem saraivadas de reclamações e críticas e gritos. Puxa, mas eu achei que trazer um símbolo "à mais" te distinguisse da multidão. Não é assim que funciona na matemática? Você não alcança o menor denominador comum cortando as gorduras? E eu ainda estou para ouvir uma explicação convincente sobre em que trazer a bandeira de um partido difere de fazer propaganda política. Os caras piram com isso. Falam que é uma democracia, que todos tem direito de se expressar politicamente, e trazem até o velho direito de ir e vir( primeiramente defendido por liberais no Século XVII, mas ok) para dizer que eles tem direito de estar onde quiserem com uma bandeira enorme. Interessante. Me pergunto se eles trazem essa bandeira para sair de casa, se levam ela para a praia, usando como canga. Se eles estão casualmente andando pela rua com uma bandeira, e dizem "Puxa, caramba, uma manifestação! É uma enorme coincidência eu ter saído de casa com uma bandeira!" É claro que eles tem o direito de aparelharem a manifestação que quiserem, mas divido aqui uma história com vocês: bem no início desse movimento, em princípios de Maio, foi organizada por um conhecido meu uma manifestação apartidária, em um evento no Facebook. Me pareceu claro que, vendo aquele título, membros de partidos não iriam para essa manifestação. Mas o que se seguiu foi uma verdadeira guerra; o fórum foi invadido por partidários reiterando seus "direitos", falando que apartidarismo é fascismo, que era ditatorial banir bandeiras e que iriam com todas as bandeiras que encontrassem. Embora eles tenham um ponto- de fato, não tínhamos como baní-los de levar nada, e não o fizemos- a situação torna-se no mínimo irônica quando a Esquerda começa à acusar a Direita de ter "sequestrado" a manifestação. Ora, a rua não é de todos? o movimento não é de quem quiser entrar? Nós não temos o direito de ir e vir? Então enfia no cu o seu direito de propriedade! 
8) Palavrões são bons e saudáveis de vez em quando.
9) Por fim, o desespero da Esquerda começou à se mostrar verdadeiramente fora de controle quando tentam equacionar nacionalismo com Fascismo. Não somente isso é idiota e reducionista- Ruy Barbosa e aquele manolo que escreveu "Porque me ufano de meu País" seriam então fascistas? Antes mesmo de existir o fascismo? Wut?- reducionista porque o Fascismo é muito, mas muito mais complexo que um simples nacionalismo, precisando acima de tudo de elementos mitológicos para criar uma narrativa messiânica- como também ignora a diferença entre Nacionalismo e Patriotismo. Nacionalismo é melhor definido pelo velho ditame "Brasil, ame-o ou deixe-o" ou "Meu país, certo ou errado". É a ideia de amar incondicionalmente o país, considerá-lo perfeito do jeito que é e nunca, nunca querer mudá-lo, pois fazer isso trairia sua essência. Já o patriotismo é você amar não apenas o que o seu país é, mas o que ele poderia ser. É lutar para que ele melhore. A bandeira do Brasil nas ruas não é a celebração da escravidão, do genocídio dos índios, do massacre de pobres ou da Ditadura. É a celebração do Brasil que ainda não somos, mas que queremos ser.

Algumas considerações finais: Como muitos não puderam deixar de notar, essa é a primeira grande manifestação no país desde a redemocratização que não conta com o PT em suas fileiras. Isso está acontecendo por motivos práticos- o PT está no poder e parte dessa ira se dirige à ele- mas também mostra à que nível os partidos políticos estão desacreditados no Brasil, algo expresso na insistência de vários de seus participantes de se denominarem 'Apartidários'. Deixando de lado por um segundo se isso é bom ou ruim, vou me concentrar nas reações à esse fenômeno, e porque a Esquerda se mostra tão incapaz de entendê-lo. Afinal, a Esquerda(que, quando não é o PT, é o PSTU ou o PSOL, geralmente) está acostumada a liderar esses movimentos, não a ser deixada de lado. A Esquerda não consegue conceber um movimento social popular não liderado por ela; e, seguindo a máxima de que se hostiliza aquilo que não se compreende, sua primeira reação é chamá-lo de "Fascista". A lógica que se segue à essa é no mínimo idiossincrática: Se o movimento não é liderado por nós, é fascista, e se é fascista, a classe média com certeza está por trás! Daí nasce a ideia de chamar todo e qualquer manifestante apartidário de "coxinha"- um termo que, fui ensinado um tempo atrás, é referente ao pequeno-burguês típico. Curiosamente, eu participei da manifestação e, embora a tal classe média de fato estivesse presente em peso, vi pessoas de todas as classes sociais, estudantes de escolas públicas, moradores de favelas, aposentados, moradores de rua. Isso está longe de ser 'apenas' um movimento classe-média. A Esquerda pode até querer inventar agora que, quando fala de 'Coxinha', fala não da classe-média mais de pessoas que defendem posições de classe-média- mas o estrago está feito.
Eu quero muito acreditar que a Esquerda não faz por mal, que ela apenas não entende, e que isso não é um esforço consciente para tentar pisar em um movimento que se tornou muito, muito maior que ela e grande demais para ser controlado e conduzido como gado. Mas eu não sei mais se acredito.

Franco Alencastro já pegou ônibus em pelo menos três países

Música do Dia: Animal Collective - Applesauce

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Fascistas! 3 meses depois

Uma das coisas que critico com frequência nesse blog (na verdade não, eu critico mais na vida real mesmo) é a nossa irremediável obsessão com o passado recente, que vai desde turnês especiais de bandas que acabaram hà mais de dez anos, até a transformação em 'História', com h maiúsculo, de acontecimentos que ainda não acabaram, evidenciado pela vontade geral de proclamar todo evento recente como o maior acontecimento desde que o homem pisou na lua. 
Mas notem que eu usei "nossa" em "nossa irremediável obsessão", não "a sua". Se eu falei isso é porque sim,  eu faço parte dessa obsessão. Eu sofro dela. E hoje, eu vou me entregar à ela, analisando o passado recente  dessa que foi minha maior realização do ano passado: Esse blog! (Sim, foi um ano particularmente desprovido de realizações) Agora que ele está prestes à completar um ano(bom, está um pouco longe ainda, mas vamos fingir isso por um momento) eu vou voltar atrás e trazer de volta algum de meus antigos textos que seja relevante para o momento atual. E, olhando para trás, eu acho que nenhum texto meu é tão relevante quanto 'Fascistas!', uma prova viva de como minha escrita é atual e visionária, pois foi escrito hà longínquos três meses.
O texto sobreviveu à passagem do tempo? Eu diria que sim, e surpreendentemente bem. Mas talvez não pelos motivos que você acha.
Hà 3 meses, eu condenava aqueles que acusavam o Governador Sérgio Cabral de 'fascista', comentando o quão ridículo era usar esse epíteto já que a Alerj não havia sido fechada, não tínhamos uma 'juventude cabralista', nem prisioneiros políticos. Hoje, eu me encontro com outros na rua que gritam 'Cabral fascista!' sem pensar duas vezes.
Vale aqui uma explicação. A violência policial que os manifestantes precisaram enfrentar desde que o Brasil explodiu em revolta, por volta de um mês atrás, abriu meus olhos para o imenso problema da violência em nosso país. Eu e outros, confortáveis em nossa vida de classe média, mantidos afastados dos violentos confrontos nas favelas, não tínhamos ideia da extensão das atrocidades praticadas pela polícia. 
'Mas eu achava que a polícia só matava bandido'
Esse é exatamente o problema. Polícia que mata bandido é polícia que reprime manifestação. O pacote é o mesmo, você compra tudo junto. A Tropa de Choque é apenas outra faceta do 'Bandido bom é bandido morto'. 
E o que isso tem à ver com o fascismo? Pouca coisa, na verdade, mas aqui vai uma ideia: Eu reclamei hà 3 meses atrás sobre como as pessoas banalizavam a palavra fascismo, transformando-a em um insulto descaracterizado e descontextualizado, e como isso era perigoso, pois quando um grupo começava à fazê-lo, todos fariam, inclusive a extrema-direita; e isso cegaria as pessoas para a emergência do verdadeiro fascismo. Mas quando a polícia começa à vasculhar as casas ao redor do Maracanã para procurar supostos 'vândalos', como aparentemente ocorreu, estamos vivendo realmente em uma democracia? Ainda é uma banalização usar 'Gestapo' como um adjetivo?
Dito isso, algumas partes do texto se mantém verdadeiras, curiosamente. Como vimos, nas últimas semanas, o movimento ganhou um caráter fortemente apartidário, se isolando inclusive dos grupos de esquerda que tradicionalmente comandam protestos como esse(e que, de fato, deram o pontapé inicial nessa mesma onda de protestos). Desde então, tenho visto a internet se encher de acusações de que o movimento teria ido 'muito à direita'; que inclusive, a direita estaria 'sequestrando o movimento' para seus próprios interesses, e que isso estaria sendo 'tramado pela Globo'. Essas risíveis acusações chegaram à um clímax quando a vontade expressa por muitos de que os partidos se limitassem à levar bandeiras do Brasil, e não tentassem fazer propaganda trazendo suas próprias bandeiras, foi tratada com um conhecido adjetivo- Sim, compararam a vontade de organizar um protesto sem a presença de partidos de 'fascismo', essa palavra feia, esse insulto. Chegaram à ponto de equacionar automaticamente todo tipo de nacionalismo com fascismo. Existem críticas inteligentes ao nacionalismo, mas soltar o adjetivo 'fascismo' e esperar pra ver se cola não é uma delas.
E com isso, deixo vocês até meu próximo texto- ando demorando, é verdade, mas- com o perdão da contradição com o que eu disse logo no início- a história está sendo feita nas ruas.

Franco Alencastro  é blogueiro, estudante, desocupado e Feliciano não o representa

Música da semana: Sonic Youth - Sunday

domingo, 16 de junho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 9

Capítulo 27

-Bom, Camarada...
-D’Este.
-Isso. Certamente, é um incipit interessante. Esse detetive, esse...
-Soares.
-Soares, exato. Personagem interessante. Parece um apanhado de clichês da literatura noir, às vezes subvertidos, às vezes não muito. É verdade que ele é meio... pacato para ser um daqueles detetives durões em preto e branco.
D’Este deu de ombros.
-É verdade.
-E esse soldado. Personagem interessante também. É interessante também você pegar o ponto de vista do inimigo- Camilla, ao dizer essas palavras, notou um leve sorriso e um brilho no olhar de D’Este.- Traz mais densidade e uma nova camada ao livro. Mas tem uma coisa...
-O que?
-Vai ser difícil para mim publicar um livro que retrata um soldado da força de ocupação americana de forma simpática. Já pensou em, não sei, talvez modificar um pouco ele? Transformá-lo num vilão?  Talvez... Dar a ele um capanga, ou um tapa-olho?
D’Este novamente deu de ombros, mas Camilla pôde perceber que ele não havia gostado daquele comentário.
-Eu posso fazer uma modificação ou outra, mas essa é fundamentalmente uma história de...
-Eu sei, eu sei, eu tenho certeza de que tem uma metáfora profunda no livro que provavelmente apenas você entende, mas que você ‘espalhou várias dicas pelo livro, então só um idiota não percebe’. Escuto isso com freqüência, e é provável até que você esteja certo. Mas a verdade é que essa Editora só publica livros de utilidade pública. Se eu sentir que um livro faz bem à nossa nação e precisa ser lido por um grande público, ele ganha o meu sinal verde. Ao mesmo tempo, preciso garantir que esse livro seja legível pelo grande público, sem, no entanto, sacrificar precisamente aquilo que o torna grande. Como se não bastasse preciso obedecer a várias diretrizes e regras hierárquicas. Entende como o meu trabalho é difícil?
Antes mesmo de Camilla terminar o seu monólogo, D’Este já estava tirando sua carteira do bolso.
É claro que Camilla jamais tomaria esse tipo de atitude se o livro fosse um campo minado de subversão anti-Partido; ela simplesmente o rejeitaria por cautela. Não. Era quando o livro era bom o suficiente para ser publicado que ela pedia um agrado. Ela sabia disso, D’Este sabia disso, talvez até seus superiores soubessem disso. Algumas pessoas apenas querem seus livros publicados, sem se importar com a qualidade; querem apenas ser um Autor com A maiúsculo, e se apresentar dessa forma nas festas em que forem. Outras sabem que seu livro é bom e sentem que tem uma missão de torná-lo disponível. Para Camilla, o que juntava as duas categorias era uma disponibilidade de pagar para chegar a seus objetivos.
-Posso perguntar uma coisa- disse D’Este.
-Pois não- disse Camilla, contando o maço de Pesos Latino-Americanos que acabara de receber.
-Eu queria que esse livro fosse publicado até Janeiro do ano que vem.
Camilla parou de contar por um instante e olhou para o alto.
-Seria por causa do aniversário de 30 anos da tomada de Salvador?- perguntou, acariciando p pescoço com os dedos e olhando para o teto.
-Precisamente. Achei que seria uma boa data para trazer esse assunto de volta à tona e refletirmos sobre o legado histórico da Rev...
-Entendi, entendi. Querido, vai ficar difícil. Sabe como é, estamos em Dezembro, e essas coisas demoram. Com toda a edição, revisão, criação da capa, impressão, pode só ficar pronto em 1999.
Resignado, D’Este abaixou a cabeça.
-É só isso?- Camilla tirou seu olhar do teto e encarou D’Este fazendo uma expressão amigável de “Muito bom ver você! Até a próxima!”, mas que terminou parecendo o olhar maníaco e enregelado de um serial killer.
-Acho que não- disse D’Este, se levantando e andando de costas, em direção à porta.
-Só uma coisa- perguntou Camilla.
-Pois não.
-O livro se chama “Eu Matei Caetano Veloso”... e nenhuma referência à esse acontecimento ou a ele foi feita até agora.
D’Este sorriu novamente, um sorriso cândido e brincalhão.

-Se quiser descobrir como termina, vai ter que continuar lendo- disse, e, sem dizer mais nada, saiu do escritório de Camilla.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 8

Capítulo 6


Uma mosca bateu no vidro. É a terceira em menos de uma hora.
Os últimos dias haviam sido uma longa espera. Eu entrava e saía de carros, entrava e saía, entrava e saía. Às vezes, tirava a sorte grande, e era o último à entrar, e então minha única preocupação era me apertar o suficiente para que não caísse em um abismo que, em verdade, não existia. Outras, porém, eu era o primeiro à entrar no carro, e nele era atirado por minha própria força de vontade como o tomate mais feio do supermercado, sendo logo espremido por outros tomates mais graúdos, redondos e brilhantes do que eu, vermelhos de sol e falando alto sobre as suas primeiras experiências de combate.
O lado bom dessas longas viagens de jipe é que elas me lembravam de minha infância. Pode parecer sacanagem ou papo de um hippie ou Kerouac da vida, mas é isso mesmo.
Por mais infernal que Zil possa ser às vezes, não dá pra negar que é um país lindo. Confesso que fiquei enjoado da Amazônia depois do período lá, com aquelas matas densas como que querendo esconder alguma coisa de nós, e aquele ar pesado cheirando à morte. Mas o interior do Nordeste é uma outra história, e acho que vai demorar até eu enjoar dele. A paisagem arenosa e vermelha ao pôr-do-sol me lembrava do Arizona, embora eu só tenha ido lá uma vez(família, trailer, 1956). Mas o Arizona imaginário que eu construí na minha cabeça tinha muito à ver com os anúncios coloridos da Marlboro que eu via nas revistas do meu pai, com seus Cowboys, paisagens áridas e pores-do-sol. De fato, a paisagem do Nordeste brasileiro lembrava um bocado o Arizona desses comerciais de cigarro, e alguns Cowboys até apareciam de vez em quando, embora fossem mirrados e sujos e as vacas, magras.
Ainda assim, ficar perto da janela do jipe era uma experiência não muito diferente de assistir televisão; afinal, a televisão e a janela são telas de vidro quadradas, com a diferença que a nossa televisão, ao contrário da janela imunda do jipe, estava sempre impecável, e não mostrava cores. Ainda assim, não era difícil imaginar a janela do jipe como um tipo de televisão onde podia-se assistir um filme bem diferente, como aquelas introduções de filmes de faroeste em que eles mostram a paisagem desolada do deserto ao som de uma gaita por alguns minutos antes de qualquer personagem aparecer, apenas aumentada muitas vezes. Às vezes, quando aparecia algum dos cowboys brasileiros, parecia que a perspectiva iria mudar e ele ia ser o personagem principal, apenas para passarmos mais uma vez por ele, ignorando-o em troca de mais paisagens.
Acho que eu não daria um diretor muito bom.
Aqueles longos períodos a bordo do jipe eram mais fruto do acaso do que qualquer coisa. Deveríamos ir pela estrada que fica rente ao litoral e que nossos garotos haviam reformado no final do ano passado, mas por algum motivo de força maior- aparentemente, a estrada estava saturada, e precisávamos organizar a retirada e reorganização das tropas rapidamente- devíamos usar uma velha estrada do interior, que, aparentemente, segundo me foi informado por um soldado da Califórnia- Davis, se não me engano- que havia comprado três livros sobre o Brasil antes de vir para cá e havia com isso se tornado o nosso centro de referências, havia sido construída no Século XVII para levar açúcar e mantimentos do interior para Salvador.
Davis continuava falando incessantemente ao lado de seus parrudos amigos, e, brandindo um mapa que de tão grande ele não havia conseguido desdobrar inteiramente e tinha uma certa dificuldade em segurar, que ainda naquela noite estaríamos em Salvador.
Foi aí que o ronco do motor começou à ficar mais hesitante, mais parecido com uma tosse crônica, à ponto de eclipsar a conversa. A hora chegara para realizar uma parada, e, felizmente, não muito longe dali havia um vilarejo.
Como oficial de mais alta patente no jipe, ordenei que este parasse, para que requisitássemos algum combustível na vila, como quase sempre fazíamos.
Era uma cidade muito parecida com as dezenas de outras pelas quais havíamos passado nos dias anteriores. Casas poeirentas, de barro e tijolos toscos, meio tortas. Algumas crianças andavam nas ruas não-pavimentadas, usando roupas que um dia estiveram limpas. Era um daqueles lugares em que o canto dos pássaros havia sido devorado pelo silêncio miserento.
Mesmo assim, parecia haver algo de errado naquela cidade. Era pacata, como todas as outras cidades o eram, mas... Era justamente pacata demais. Para além da atmosfera rural e das pessoas andando nas ruas, casualmente cumprimentando umas às outras com uma versão mais arrastada, mais demorada do português que ouvíamos em Natal, havia uma camada adicional de preocupação no ar. Algo não parecia certo com aquela gente.
Fiz um sinal para os que estavam no jipe. Eu iria descer. Eles não haviam entendido. Estavam felizes em apenas continuar e cair direto na boca do leão. Mas eu não.
O nosso jipe parou bem ao lado de uma mulher, que caminhava ao lado de um burro, no qual estava sentada uma criança de talvez 3 anos.
Eu saltei imediatamente do jipe e andei até ela com passos pesados, o que pode ter causado certo estranhamento, ou, mais provavelmente, medo, pois sua primeira reação foi dar alguns passos para trás(a segunda foi se esconder atrás do burro e murmurar alguma coisa em português).
Rapidamente percebi que nosso primeiro contato não havia sido dos mais amigáveis, e tentei endireitar a situação. Levantei meu braço e dobrei-o na altura do ombro, e acenei com a mão enquanto balançava a cabeça da esquerda para a direita, tentando fazer o sinal internacional do “não se preocupe, somos amigos”. Se tivesse alguma garrafa de Coca-Cola no jipe, talvez convencê-la disso ficasse mais fácil.
Então percebi algo nos olhos da mulher. Eles brilhavam muito, mas não era um brilho de alegria, de medo ou sequer aquele brilho que os jovens apaixonados têm. Bom, de certa forma era sim um brilho de medo, mas isso não vêm ao caso. Seus olhos estavam dilatados e sua boca, entreaberta, porque ela acabara de ser pega. Algo estava, de fato, muito estranho.
Felizmente eu logo vi algo no reflexo de seu olho, enquanto a garotinha sentada no burro começava à chorar. Era algo. Não. Alguém. Me virei e lá estava ele, do alto de seus 1.40 metros, a praga que assolava todas as cidades do Brasil, grandes e pequenas: o moleque. Descamisado, melequento, desdentado, de olhos claros; pele queimada de sol, coberta por algo que deveria parecer um calção, amarrado por um barbante grosso e rústico.
Foi só eu notá-lo para algo estranho se produzir no ar, e tudo começar à acontecer ao mesmo tempo.
Os garotos saem do carro, e por algum motivo, carregam suas armas; Por motivos ainda mais obscuros, apontam elas para um nível onde poderiam atingir qualquer um, eu inclusive. Enquanto isso, a mulher do burro grita alguma coisa, com seus olhos cada vez mais protuberantes; Penso ter ouvido algo como Cor, o que no contexto não significaria nada, mas acredito que se tratava, no caso, de corre. A menina chora. O garoto corre, o que dá peso à minha teoria. Os rapazes notam o garoto correndo. As armas viram de lado.
Tiros percorrem a rua, em toda sua extensão larga e não-pavimentada. No mínimo sete.
O garoto dá um salto e estica seus braços no ar, quase como se queresse voar feito um pássaro em seus últimos momentos, logo antes de ir ao chão.
Os pássaros de verdade, que tinham sumido- e na verdade ainda não tinham aparecido naquela cidade- reaparecem, e estranhamente sobrevoam a área do menino morto.
O rico solo da Caatinga ganha um novo tom de vermelho.
A minha reação é rápida; sou rápido em gritar com meu destacamento, e rápido em exigir justificativas- tudo pontuado com termos específicos do jargão militar como fuck, pigfuckers, cocksuckers, miserable sad sack of horseshit. Não sei se adiante, ou se isso vai impedir nosso destino.
Me viro para trás. A mulher do burro já se foi.
Algo muito estranho acontece, e faz meu sangue congelar por um mísero segundo- o suficiente.
Mais tiros na cidade. Talvez viessem do nosso destacamento, achando que aquele simples pivete era uma horda de inimigos se preparando para nos emboscar.
Mas então, os tiros continuaram. Faço um sinal para Davis e os outros formarem uma fila atrás de mim enquanto viramos a esquina que acabáramos de cruzar e que dava em um descampado que marcava os limites da cidade. Mais tiros, dessa vez, por mais tempo. E então me ocorreu- me ocorreu quando o meu sangue gelou novamente por um mísero segundo, como... Causa? Efeito? Provavelmente os dois. Um antes, e um depois. Mas eu sinto isso o tempo todo. O que importa são as coisas que descubro quando isso ocorre.
Eram tiros de AK-47.  E, pela quantidade, era mesmo uma horda de inimigos, pronta à nos emboscar.
Antes mesmo de chegar ao descampado, a parede ao nosso lado foi crivada de balas. Em um segundo, Davis e os outros tinham se dispersado. O pior é que, com um pouco de visão periférica, havia sido capaz de ver que havia também um grupo de indivíduos hostis se aproximando em meio ao descampado com um tipo de camuflagem, facilmente reconhecível. Os tiros haviam vindo do outro lado.

Estávamos cercados.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Questão de Ordem

Então galera, gostaria primeiro de perguntar: Estão gostando da história até agora?

E em segundo lugar: Os Capítulos á partir de agora vão ficar bastante compridos. Andei pensando que talvez isso deixe a leitura maçante, e desencoraje os recém-chegados. Vocês preferem que eu divida eles em partes?
Eu sei que vocês não costumam se manifestar, mas seria bom ouvir o que pensam!
Beijos molhados,
Franco Alencastro

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 7

Capítulo 5



Soares, sentindo uma dormência no traseiro, se levantou de seu banco e dirigiu-se à porta do furgão para abri-la. Recebeu, como prêmio, um safanão do soldado Williams.
-Mas que merda?- Indagou Soares, deixando que o resto da frase se falasse sozinha.
-Quieto Soares!- sussurrou Orfeu, o chefe de operações, enquanto fazia com sua boca caretas exageradas para mostrar que, não fosse a situação, estaria berrando com ele.
“Orfeu”, de nome completo Orfeu Temporário da Matriz Firmino, e era o homem que, mais cedo naquele dia, entrara com truculência no escritório/consultório/casa do detetive Soares e o cooptara á participar de uma operação pouco ortodoxa e quase certamente ilegal, sobre a qual ele ainda sabia muito pouco. Agora que o calor aumentara consideravelmente e a brisa matinal começara à arrefecer frente à umidade inclemente, estava ainda suando muito mais, coisa que Soares julgava ser impossível, e fedia, uma conseqüência que ele anteriormente não havia conseguido imaginar(estava muito ocupado levando bordoadas).
-Mas quieto, quieto porque? O que pode acontecer aqui?
-Ora, Soares, não se faça de tolo!- Orfeu rapidamente adotou um tom de condescendência pegajosa.- O que pode acontecer é óbvio. Estamos em uma parte particularmente nojenta da cidade, cheia de maconheiros descerebrados. Nós somos, segundo eles- Orfeu então ergueu os braços sobre a cabeça e fez em cada mão, com os dedos indicador e do meio, realizando assim  sinal internacional para as aspas- os “agentes da repressão”. Não vou dizer que eles estão errados, afinal, sou mesmo um agente, e gosto de reprimir por aí de tempos em tempos- Orfeu deu uma risadinha.- Mas, no momento, devemos tratar cada um dos passantes na rua como um traidor em potencial, que vai nos denunciar para Cassius assim que o fato que estamos em uma missão à serviço da República Legalista do Brasil der muito na vista.
Soares não podia fazer nada contra a palavra de Orfeu, mesmo que quisesse, ou que ela não fizesse sentido, e nesse caso, ela até que fazia.
-Mas, não vou negar- anunciou Orfeu, tirando com grande afetação um lenço do bolso do sobretudo para enxugar o rosto- que esperar aqui é um porre.
-Boss, who exactly are we waiting for?-perguntou um soldado no banco do carona.
-We’re waiting for the other detective, private.- Respondeu Orfeu, com um pesadíssimo sotaque baiano.
Soares tinha na verdade pouco conhecimento da língua inglesa, mas dominava melhor a língua “Baianglo-Saxônica”, aquela bizarra e extremamente típica forma de falar inglês que se desenvolvera nas regiões do Nordeste ocupadas pelos Americanos, envolvendo um sotaque formado à partir da pronunciação fonética das palavras vistas em placas de aviso, do toque de recolher e outras tantas mídias que faziam parte da realidade da ocupação. Assim, pôde perfeitamente entender do que Orfeu estava falando.
-Peraí, peraí, peraí. Que história é essa de outro detetive?
Orfeu subitamente mordeu o lábio inferior. Não esperava que Soares fosse entender o que estava dizendo. Tentou então se tirar daquela situação desconfortável.
-Bom, sabe, como eu disse, essa é uma operação um tanto grande. Tem muita coisa em jogo. É por isso que contratamos dois detetives.
-Ah é, é? Interessante- Disse Soares, fingindo que tentava mascarar a indignação. Se estão me cooptando pra fazer um trabalho sujo, que façam direito, Pensou.-Muito bem, mas quando contrataram esse sujeito? À uma, duas horas, atrás?
-O que? Não, claro que não, ele está nessa operação há bem mais tempo que você. Foi ele quem instalou as escutas. É a especialidade dele. Aliás- dirigiu-se então novamente ao soldado que estava no banco do carona- Tell me, private, when should he be arriving, again?
-At noon, sir.
-Puta que pariu, e já são quase meio dia e meia. O que me lembra que eu preciso tomar o meu remédio- disse, sorrindo para Soares tentando ser casual. Tirou então de outro bolso do sobretudo um pequeno pote de vidro, dentro do qual, cujo conteúdo eram várias pílulas vermelhas e azuis. Orfeu separou duas, uma de cada cor, e se preparava para engoli-las, quando subitamente, apertou-as em sua mão e abaixou os óculos.
-Excelente, ele chegou.
Soares olhou para a rua pela janela e percebeu que de fato, um outro furgão, quase idêntico àquele em que estavam,tinha parado logo atrás deles. Sua porta então deslizou e saíram dois homens: um era mais velho, de pele rosada e cabelo cor de fogo, e carregava o que Soares acreditava ser um enorme baioneta. O outro tinha uma pele mais escura que a roupa, uma jaqueta simples com um colete á prova de balas por baixo. Sua careca reluzia sob o sol; Soares tinha certeza que o conhecia.
Foi então que a verdade se abateu sobre Soares como um meteoro. Ele conhecia aquele homem.
Quando ele se aproximou o suficiente, Orfeu abriu a porta e, agarrando Soares pelo braço, levou-o para fora do carro com a truculência habitual. Soares não parava de olhar para o homem que se aproximava- e notou então que ele começara à fazer o mesmo.
-Detetive Soares- disse Orfeu, fazendo um sorriso desnecessariamente largo- Gostaria que conhecesse Geraldo Ary Carvalho,um de nossos maiores colaboradores.
É, é ele mesmo- pensou Soares.
-Ora ora, se não é o velho Soares- disse Geraldo sorrindo, e estendendo a mão.

*****

Como descrever o ilustre Geraldo Carvalho? Sem dúvida, para a maioria das pessoas, era um homem elegante, na faixa de trinta e tantos anos, que se encontrava geralmente em boa forma física, e tinha gosto por roupas caras, apesar do seu trabalho não muito bem-remunerado. Fazia sucesso com as mulheres por seu refinamento e por ser um tremendo pé de valsa, mas por mais que todas as fêmeas da cidade implorassem por sua companhia(e talvez algo mais), ele tinha interesse mesmo era nas mais novas, as que ainda poderiam ser chamadas "garotas", ou, na gíria da moda, "brotinhos".
Para Soares porém, Geraldo Carvalho era um pilantra, um sacana de marca maior cujo passatempo preferido nos últimos dois anos parecia ser infernizá-lo.
-FFFilho da puta- disse Soares, entre-dentes, enquanto estendia a mão e apertava a de Geraldo, esperando momentaneamente que não tivesse sibilado aquelas palavras alto demais.
*****
Tudo começara havia quase dois anos, em Maio de 1966. Soares, após passar por alguns maus bocados no ano anterior, finalmente sentia que a sua vida poderia ter um final feliz afinal de contas. A agência de detetives ia de vento em popa e, por um breve momento, Soares cogitou contratar subalternos, simplesmente para ter poder sobre alguém. É claro, havia também um outro motivo, mais pragmático, e o que ele usava geralmente para justificar suas ambições de contratação no lugar da simples megalomania: Estava completamente submerso em casos que ainda precisavam ser resolvidos. Foi por isso que, quando Dona Griselda apresentou à ele seu problema, Soares abafou uma risada e disse que não seria possível atendê-la, pelo menos no momento. Dona Griselda era empregada doméstica, mas a inflação descontrolada, o colapso econômico do país e a quase anulação das leis trabalhistas desde a ocupação tinham prejudicado sua renda e ela poderia inclusive perder seu modesto e insalubre barraco na Favela de Calabar. Por isso, completava o orçamento criando galinhas em uma clareira no canto do morro. Havia, porém, surgido um problema: Jà faziam três semanas, as galinhas estavam sendo roubadas uma à uma, e logo não sobraria nenhuma.
Soares olhava para Griselda de trás de sua austera mesa enquanto ela relatava as suas sofridas condições, dando detalhes melodramáticos, mencionando inclusive o nome das galinhas(eram Jacqueline, Capitu, Brigitte, Catherine e Ingrid), mostrando sempre seus dentes escurecidos pela falta de cuidados.
Ao final de sua lamúria, uma Dona Griselda de rosto inchado e vermelho de tanto chorar recebeu de Soares, falando em um tom neutro, objetivo, frio e cortado por longas pausas silenciosas que não seria possível ajudá-la. Griselda disse que se o problema era dinheiro, ela poderia juntá-lo facilmente e que iria pagar o mais cedo possível. "Juro por São Tomás", ela disse. Soares não entendeu porque aquele santo em particular, mas deixou isso de lado e mentiu assegurando-a de que o dinheiro não era parte do problema; ele apenas estava muito ocupado. Griselda deixou a sala sem virar de costas até chegar na porta, mantendo por todo o curto trajeto um olhar desgostoso de decepção e desconfiança.
Perder um cliente era uma coisa que costumava perturbar Soares, mas daquela vez ele tinha quase cem por cento de certeza de que tinha tomado uma boa decisão; afinal, a tal de Griselda evidentemente não poderia pagar pelo serviço, à menos que pagasse com as galinhas, que Soares poderia acabar aceitando mesmo sem saber verdadeiramente o valor de uma galinha. A mentira que contara também não era total: uma família tradicional, quatrocentona, tinha lhe oferecido uma bela soma para encontrar as jóias da família, incluindo-se aí um raro diamante lapidado datado do Século 18, que haviam sido roubadas havia quase um mês e que ninguém tinha sido capaz de encontrar. Os Guaracy, Soares acreditava, poderiam dar uma bela recompensa se ele de fato encontrasse as jóias- E Antonella Guaracy, a quarentona de cachos negros límpidos, vestido azul com decote pra lá de escandaloso e formas generosas escondidas debaixo do protocolo da classe alta e da frieza de quem está realizando um mero pacto de negócios, parecia um bônus interessante para alem da óbvia compensação monetária.
Mesmo assim, não pôde deixar de achar estranho quando viu a mesma Dona Griselda, baixinha, curva, usando um vestido rosa surrado que não lhe cairia bem nem se estivesse em bom estado, andando ao lado de um sujeito alto, longilíneo, jovem, e preto que nem carvão. Poderia ser qualquer um- um filho, talvez um neto, um sobrinho, qualquer familiar próximo- não fosse por um simples detalhe: o sobretudo.
O sobretudo era a marca registrada não-oficial dos detetives particulares- ainda que, no campo das coisas não-oficiais, que no caso dos detetives particulares eram muitas, à começar pela própria profissão, o sobretudo tinha a posição confortável de ser um consenso. Ninguém entendia muito bem de onde havia surgido esse consenso, embora Soares tivesse um palpite: os estúdios de cinema americanos haviam aproveitado a invasão para relançar no país os clássicos do cinema noir dos anos 40(Soares se lembrava distintamente de ter assistido pelo menos dois desses filmes desde que chegara em Salvador). Então, talvez com o objetivo de se fazer reconhecer diante do povo, os detetives adotaram o figurino dos ianques esguios de "Selva de Concreto" e "O Falcão Maltês". Subitamente, um à um os detetives particulares passaram á ser distinguidos por seus sobretudos das mais variadas cores, fossem elas bege ou cinza, bege-acinzentado ou cinza-bege. Soares estranhara o fato de encontrar tantas pessoas usando casacos longos e grossos tão perto do verão, na época em que chegou na cidade, mas poucos meses depois ele mesmo se rendera à moda do sobretudo. Soares, logo, não precisou usar suas grandes habilidades de detetive para saber que aquele jovem homem era um dos seus.
Mas não era isso que o preocupava: podia sentir uma aura ameaçadora vinda do jovem homem, embora não acreditasse muito em auras.
Conforme descobriria mais tarde, aquele homem era Geraldo Ary Carvalho, e se tornaria o maior pé no saco que Soares já conhecera, e o principal motivo pelo qual às vezes, ele cogitava abandonar aquela vida ingrata de detetive particular, construir uma jangada e se lançar ao mar, rumo ao vazio. Era uma morte poética, pensava Soares, e o pior que poderia acontecer era ele ser devorado por tubarões, ou morrer de inanição. Ou, sei lá, chegar à África.
Mas, naquele longínquo ano de 1966, Geraldo Carvalho, o “Gê” era só o mais novo de uma lista de detetives rivais, e que tinha acabado de lhe roubar o cliente. Mesmo sentindo uma certa aflição por perder o caso de Dona Griselda, Soares não se deixou levar e, na verdade, mergulhou a cabeça no trabalho, passando a maior parte de seu dia pensando no caso dos diamantes roubados. Montou na mesa de seu escritório um enorme painel conectando com barbantes as fotos e informações de diversos suspeitos, todos com motivos críveis, que crescia dia após dia. Sua concentração montando a gigantesca rede de conspirações só era perturbada ocasionalmente quando pensava na(mulher que encomendou a enquete) tendo tórridas fantasias sobre o que faria com ela quando tivesse em suas mãos o diamante. Nelas, ela o agradecia pelo excelente serviço prestado, antes de se sentar em seu sofá, levantando pouco à pouco o vestido enquanto cruzava as pernas de maneira sugestiva.
Foi de uma dessas noites de trabalho intensivo e paixões imaginárias que acordou no dia que viraria seu mundo de ponta-cabeça. Como sempre, sua aparência ao acordar não era das melhores e na verdade ele estava sofrendo de uma pesada dor e cabeça, mas lá no fundo se sentia bem, com uma intensidade que dificilmente experimentara nos últimos três anos. Após passar dias montando uma lista de possíveis culpados, elaborara um pódio daqueles que julgava mais prováveis e estava prestes à apresentá-los para (mulher). Arrumou-se rapidamente e saiu de seu escritório, com a papelada enrolada debaixo do braço. O dia estava radiante e mesmo a cidade, normalmente tão suja e no limite do que poderia se chamar de sórdido, parecia recebê-lo de cabeça erguida.
Ao virar uma esquina, uma rua que ainda conhecia mal mas que agora se lembrava como sendo a rua Y, viu uma convidativa banca de jornal que acabara de abrir. Mesmo com a sua importante missão, no momento nada parecia mais importante e belo do que aquele senhor de idade, de cabelos brancos curtos, bigode e boina de português, abrindo a porta de metal de seu modesto estabelecimento. Movido por um instinto semelhante ao de quando comprara seu primeiro e último Acarajé, Soares andou rumo à banca de jornal e pediu a edição diária d’O Novo Bahiano, o único jornal que dava algum foco ao que se passava na cidade e não apenas na linha do front.
E foi então, no momento em que dobrou a primeira página do jornal que viu, ao lado da foto de um guerrilheiro comunista capturado, o sorriso do sujeito que vira ao lado de Dona Griselda, segurando nas mãos um colar de pérolas. Na manchete, lia-se:
DETETIVE INTRÉPIDO RESOLVE DOIS CASOS IMPOSSÍVEIS
A curiosidade tomou conta de Soares, e ele leu a matéria diversas vezes, até quase decorá-la por completo. Não conseguia acreditar como havia sido burro.
O artigo descrevia em longos floreios o método engenhoso que o jovem detetive Geraldo Carvalho tinha usado para capturar uma gangue de malfeitores. Tudo começou quando estava trabalhando para Griselda Pereira, uma moradora da Favela do Calabar, cujas galinhas haviam sido roubadas. Geraldo comprou de seu próprio bolso uma galinha, e a deixou no picadeiro de Griselda. Se os ladrões ainda estivessem na ativa, pegariam a deixa- e Geraldo, que montava guarda lá, poderia seguí-los.
Assim, na madrugada do dia 7 de Fevereiro, Geraldo vira os ladrões- um grupo de crianças moradoras de rua, vulgarmente apelidadas de pivetes. Gerald então seguiu os pivetes até seu esconderijo- um lixão quase nos limites da cidade(nessa hora, o autor do artigo ficava criativo e dava ao lixão nomes imponentes como “o portão do inferno” ou “deserto sem esperança”) e lá descobriu que os pivetes estavam alimentando todas as galinhas em um cercado. “Então eu fiz o que tinha que fazer”-era o que Geraldo, citado entre um par de aspas, dizia naquela parte do artigo. Subentendiam-se muitas coisas por aquela frase, e quase todas davam calafrios à Soares.
De qualquer maneira, Geraldo recuperara as galinhas e, no dia seguinte, elas já haviam retornado para Dona Griselda. Porém, pouco mais de um dia depois, ele recebera uma ligação da mesma Dona Griselda, dizendo que suas galinhas estavam doentes. Mas não era qualquer doença. As galinhas estavam defecando diamantes.
O novo mistério levou mais tempo para ser solucionado, mas, ao chegar àquela arte do artigo, Soares já havia entendido o que acontecera. Os pivetes haviam roubado as jóias da família Guaracy, mas perceberam que seria impossível penhorá-las na cidade- Antonella já as havia celebrizado em uma dúzia de eventos-, logo haviam também roubado galinhas, à quem deram de comer as jóias, para que então saíssem da cidade sem suspeitas. “Só não contavam com o Super Geraldo filho da puta”, pensou Sares enquanto terminava de ler o artigo pela terceira vez.
Geraldo encontrou a família Guaracy através de anúncios em vários jornais, e, apesar de recusar a recompensa que a família lhe oferecera, ele nem precisava aceitar- o caso se espalhara por toda a cidade, primeiro como justificativa para o modelo de “Justiça terceirizada”, depois como exemplo de cidadania, até finalmente cair na boca do povo. As chances de Soares de se tornar o maior detetive de Salvador haviam acabado ali.
-Fffffilho da puta- sibilou mais uma vez Soares enquanto Geraldo apertava sua mão. Pelos olhares desconfortáveis que a maioria das pessoas à sua volta lhe lançavam, ele havia falado alto demais.
Geraldo, de repente abrindo um sorriso jocoso, decidiu quebrar o silêncio:
-E aí, Soares... pegando muitas galinhas recentemente?
Todos deram uma saudável risada. “Essa história realmente foi longe”, pensou Soares, não sem algum rancor. O homem ao lado de Geraldo, que, Soares pôde notar, debaixo de seu uniforme militar usava uma batina de padre, foi o primeiro à parar de rir e o primeiro à falar.
-Ai, ai ai. Demos umas boas risadas, não? Mas bom, temos trabalho à realizar. Orfeu, ele sabe da missão?
-Acredito que sim- disse Orfeu, tirando um pequeno lenço bordado com motivos florais de seu bolso e esfregando-o em seu rosto de onde o suor pingava, abundante. “Quantas coisas esse cara guarda nos bolsos? Parece que o casaco dele não tem fundo”, pensou Soares.
-Detetive Soares, este é o Sargento Brandão, da Milícia de Jesus, um de nossos colaboradores mais freqüentes.
Soares não pôde deixar de tremer um pouco ao ouvir aquele nome associado à uma pessoa tão amigável. A Milícia de Jesus havia conquistado uma pouco desejável fama nos últimos anos. Quase tudo sobre ela era desconhecido, exceto o seu modus operandi: atacar, em bandos de 12, cidades do interior acusadas de abrigar comunistas. Se um sequer fosse descoberto, a cidade era punida de variadas maneiras. Soares se lembrava de um em particular, que vira em uma edição d’O Novo Bahiano havia menos de seis meses. Uma patrulha americana que estava passando pelo lugarejo de Vila Rosada encontrou a cidade vazia, mas as portas de todas as casas estavam abertas, e havia fortes indícios de que um combate havia ocorrido. Quando os americanos foram patrulhar o cemitério, porém, a população foi encontrada. Mais de uma centena de homens, mulheres e crianças haviam sido crucificados em postes de madeira. Alguns ainda estavam vivos, e falaram de bandos andando com lenços brancos no pescoço- o uniforme da Milícia de Jesus. A lembrança das fotos no artigo faziam o sangue de Soares gelar.
-Bom dia, meu filho- disse Brandão.
-B-Bom dia.
-Que lindo, vocês todos se conhecem agora.- disse Orfeu.- Mas agora o que você vai fazer é entrar lá, dizer que vai cumprir a missão, e só isso.
Soares ergueu as sobrancelhas de surpresa. “Se for só isso, será a grana mais fácil que já ganhei. “
-Claro, depois haverá mais o que fazer...
“Óbvio.”
-...Mas no momento, é só isso. Tente ser gentil, usar frases curtas e objetivas. Ah, e tente não lembrar à ele de que você é branco.
Soares ainda se perguntava o que significaria aquela última frase enquanto adentrava o prédio.

*****

-Entra logo filho da puta! Estamos em guerra!- berrou o homem na porta, puxando Soares para dentro pelo braço.
Ele não devia ter mais de 25 anos, usava um tipo de camisa rendada de lã, óculos escuros e uma arma ameaçadoramente reluzente. E haviam mais de 5 não muito diferentes dele naquele mesmo quarto.
“Então esse é o esconderijo de Cassius”, pensou Soares, usando sua visão periférica para examinar cuidadosamente o quarto em que se encontrava no minuto que tinha até se encontrar com o líder.
Apesar de se situar em uma zona relativamente nobre de Salvador, o apartamento era um dos mais podres em que Soares já estivera, isso sem contar o seu próprio. As paredes pareciam ceder sobre o mofo que nelas se acumulava, que era tão espesso que dava à elas uma aparência brilhante debaixo da luz pálida e esverdeada que vinha de uma lâmpada acoplada à um ventilador quebrado. De fato, tudo lá parecia estar em algum tom de verde- desde as paredes, até o carpete grosso, úmido e manchado, passando pelos vários sofás decrépitos que vazavam enchimento e os sete closets- ou pelo menos pareciam ser closets- dispostos em uma ordem aleatória pelas paredes.
O choro alto de uma criança interrompeu seus pensamentos e o desconcentrou. Só então notou que todas as pessoas no quarto estavam olhando para ele.
-O grande Madiba diz que você pode entrar. Mas eu vou com você- diz o homem que havia aberto a porta.
O homem então, tirando uma chave do bolso, abre um dos closets. De dentro da porta, sai uma forte luz branca, que inunda quase toda a sala, e um vapor que parecia rastejar no chão.
A sala dentro do closet estava repleta de uma fumaça espessa, e Soares reconheceria aquele cheiro de maresia em qualquer lugar. Estranhamente, a luz branca e cegante vinha das janelas- eram provavelmente painéis de vidro instalados por sobre janelas muradas, atrás das quais haviam sido postas algumas lâmpadas particularmente poderosas. Uma mesa de madeira gasta, cujas pontas descascavam profusamente, estava à frente da cadeira giratória acolchoada onde sentava Cassius. Isto é, pelo menos até onde Soares podia supor, já que ele ainda não havia se virado.
-Você deve estar se perguntando porquê não me virei até agora- disse uma voz grave vinda de trás da cadeira.
-Olha, de fato...
-É simples. Você vem aqui, e entra em minha base de operações. Não te conheço, nem sei quem é. Estamos prestes à assinar um contrato de importância capital. Ao contrário da luta diária da nossa raça, que labutou sol à sol durante séculos e está somente agora juntando as forças que adquiriu nesse longo exílio para usar contra seus antigos mestres, uma luta em que eu posso definir quem você é e para quem trabalha usando seu nome e a clareza de sua pele, nesse contrato eu não sou seu mestre. Eu sou apenas seu irmão. Diga, filho, eu acho que conheço a sua voz.
Estranhamente, Soares tinha a mesma impressão.
-É, de fato parece...
-Continuemos. Detetive...
-Soares.
-Detetive Soares. Meu grupo não é apenas um Exército.- Soares se perguntou de que exército ele estava falando. Seriam aqueles cinco caras na sala?- Mais que isso, ele é uma família. Obá me abençoou com três filhos saudáveis, e quatro lindas e férteis esposas. Bom, três, mas isso não muda o argumento principal: Esse exército é minha vida, e por extensão, é a vida de muita gente. Era também a vida de minha sobrinha. O senhor consegue ver a minha sobrinha nesse momento?
“O que será que ele está querendo dizer?” pensou Soares, e então ele viu na mesa um porta-retrato, com a foto desbotada de uma pequena garota negra de tranças, em um uniforme escolar.
-Sim, estou vendo.- arriscou Soares.
-Muito perspicaz. Sabe, isso é tão simples, e mesmo assim os dois últimos detetives não souberam responder. Mandei-os embora na mesma hora. Um pouco de poder dedutivo é o mínimo que se pode ter.
Soares olhou para a arma e, por um momento, achou que mandar os detetives embora não era a única coisa que Cassius fazia.
-Hà um mês, minha sobrinha foi seqüestrada. Nós não sabemos que, não sabemos por que motivo. A sua missão é simples: Descubra quem a tomou de mim e porquê. Responda à essas dúvidas, e nada mais. O senhor é um detetive. Não posso pedir que saia atirando e traga ela de volta para mim. Isso é trabalho da família.
Um curto silêncio se fez. Soares não soube o que dizer. “Ok, ele terminou de falar. Melhor ir embora antes que ele fique irritado com a minha presença.”, pensou, recuando.
-Onde você pensa que vai? Eu por acaso pedi pra você sair?
Soares parou, acometido de um frio na espinha. Como ele havia ouvido seus passos silenciosos, ele jamais saberia.
-Não senhor- disse, tremendo.
-Certo. Você será acompanhado, em sua investigação, por um membro da família. Ela fiscalizará se você está fazendo o trabalho bem. Ela se chama Cléopatra, e está atrás de você.
Soares se virou, e a primeira coisa que viu foi uma mulher de um metro e oitenta, o rosto parcialmente coberto por um farto Black Power e um par de óculos escuros. Usava uma livrara de Cleópatra, mas ela voltaria no dia seguinte, e isso significaria mais algumas horas dirigindo à esmo pela cidade, jogando conversa fora com uma pessoa que ele odiava.
Resolveu ligar para Orfeu, para ventilar um pouco suas preocupações e falar com uma pessoa para quem não precisaria mentir- muito.
-Capitão Orfeu, pois não?- disse a grave voz do outro lado do pequeno telefone de plástico azul.
-Orfeu, sou eu, o Soares. Eu...
-Ora, é claro que eu reconheço a sua voz, Soares. Apenas digo “Capitão Orfeu, pois não” por protocolo.
Então porquê me interrompeu?- pensou Soares, mas tratou de ir direto ao ponto.
-Orfeu, estou com problemas.
-É, eu vi. E aí, comeu?
-O quê?
-A neguinha, comeu?
-O que? Não, porra, claro que não. Mulher chata dos infernos.
-Pena.
-Orfeu, você não tá entendendo.
-É claro que eu entendo. Ao invés de passar o dia investigando, você quer entregar o dossiê e ficar nisso mesmo.
-Sim.
-E não dá pra fazer isso com ela ao seu lado.
-Exato.
jaqueta militar, e Soares tinha certeza, mais nada por baixo. Soares ainda não tinha idéia de como ela havia entrado sem que ele percebesse.
-Agora está liberado. Viu? É fácil. É só me obedecer.
Escoltado por Cleópatra, Soares deixou o apartamento.

*****

-Okay, então como vamos fazer isso?
-Cala a boca e entra no carro, branquelo. Isso é uma guerra.
Cleópatra abriu a porta do carro- um Cadillac velho e batido dos anos cinqüenta- e fez sinal para que Soares entrasse.
-Certo, desculpa por revelar a sua posição. Mas como vamos fazer isso?
-Você é o detetive, você deveria dizer onde começamos. Quem, você acha, é o principal suspeito? Pense, homem.
“Porra, eu mal te conheço e já te odeio”, pensou Soares.
-Olha, pra um detetive, você é ruim mesmo.- disse Cleópatra, ajustando os óculos que refletiam forte o sol do meio-dia. O vidro e a carroceria fariam a mesma coisa, se não estivessem sujos e enferrujados.
-Certo. Vamos deixar isso de lado. O Cassius...
-Shh! Deixa de ser imbecil, branquelo. Use um código. Isso aqui é uma guerra.
-Como o quê?
-Ah, não sei, porra branquelo, algo como, sei lá, chefia.
-Certo. O “chefia” te deu algum papel com informações que eu deveria saber sobre a sobrinha dele?
-Porra branquelo! Não! Pode ter alguém escutando essa merda de conversa, use um código, como...
E assim foi. Soares precisou se segurar para não bater o carro de propósito. Ele olhou para as pessoas que estavam do outro lado da rua e que até agora desprezava- o Capitão Orfeu, Sargento Brandão, e até o maldito Geraldo- e viu como até eles pareciam se compadecer de sua situação. Uma coisa era certa: seria impossível conduzir uma verdadeira investigação falsa com aquela mulher na sua cola.

*****

Soares desabou na sua cama após o que pareceu ter sido uma semana inteira fora dela. Já se

As condições haviam piorado bastante. Agora não apenas o governo estava na sua cola, como a sua única chance em meses de descolar um trocado haviam sido solapadas por acontecimentos maiores e mais cheios de melanina do que ele. Havia uma única chance de resolver essa situação, e isso era tomando uma ação vigorosa e corajosa. Porém, Soares não era um homem de ações vigorosas e corajosas, e por isso decidiu ligar para Orfeu em busca de conselhos.
-Escritório do Capitão Orfeu, pois não.
-Orfeu, sou eu, o Soares.
-Ora, é claro que é você, Soares, eu reconheceria sua voz em qualquer lugar. Apenas digo “Escritório do Capitão Orfeu, pois não” por protocolo.- A sua voz adquirira uma tonalidade informal e descontraída, que Soares já conhecia e que, pela experiência (e pela marca visível de um galo em sua cabeça), vinha sempre carregada de segundas intenções.
-Orfeu, eu estou com problemas.- disse Soares, tentando ir direto ao ponto.
-É, eu sei.
-É a Cleópatra.
-Ah, tá, ela tem nome. E aí, comeu?
-Hein?
-A neguinha, você traçou ela?
-O que?! Não, claro que não! Porra homem, vamos tentar manter isso sério!
- Ah, tá, tá bom.-Orfeu recuperou rapidamente a compostura e adotou mais uma vez um tom de voz alegre e apoiador.- É disso que eu gosto em você, Soares, você vai direto ao ponto! É um investigador de verdade.
-Agradeço os elogios, Orfeu, mas eu realmente estou com um problema aqui- disse Soares, irritadiço.
-Eu entendo o seu problema. Infelizmente, não é minha tarefa ajudar você.
-Como não?
-Seja criativo, homem! Invente algum jeito de se livrar dela. Câmbio e desligo.
Ele não desligou o telefone; Soares pôde ouvir saindo do cabo do telefone uma frase que se assemelhava à algo como “Quer dizer então que a neguinha tá livre?” antes de desligá-lo ele próprio.
Soares observou a alça do telefone por alguns segundos. Então, tomado de raiva contra os homens do governo que lhe tinham emboscado para dentro dessa missão e agora lhe abandonavam sem cerimônia ou um mísero “foi mal”, “desculpa”, pegou o telefone e jogou-o com força sobre a alça, derrubando o pequeno aparelho em um gesto incompleto de má vontade. Ainda insatisfeito com sua vingança sobre o pequeno eletrodoméstico, deu-o um chute que isolou-o em um canto de seu exíguo quarto. Agora sentia que havia exagerado na dose, mas o telefone estava muito longe e no momento, haviam assuntos mais importantes a serem tratados, dentre os quais como se livrar de sua co-investigadora megera. Várias idéias passaram por sua cabeça como vagões de um mesmo trem, que rapidamente descarrilava; por isso, entenda-se que ele descartava as idéias muito rapidamente.
Sem aviso, uma idéia tomou de assalto o território que ia de sua orelha esquerda à sua orelha direita e das sobrancelhas até a sua nuca. Era uma idéia que beirava o irracional, mas, quem sabe, poderia funcionar. Ele a vira num filme que entrara em cartaz havia uns seis meses, “As portas da fúria”. O filme não era bom; a idéia dava pro gasto.

Recuperou seu inocente aparelho de telecomunicações do chão, limpando-o, restabelecendo-o à sua posição original e finalmente ligando para Orfeu, que ouviu tudo com paciência e agradeceu a proposta. Finda a ligação, Soares atirou-se em sua cama em um único gesto(um salto), tendo consciência de que ainda estava usando as roupas do trabalho, o que sem dúvida lhe valeria uma noite de sono desagradável e várias marcas de costura pelo corpo quando acordasse, mas estava muito feliz para se importar.