Capítulo
5
Soares,
sentindo uma dormência no traseiro, se levantou de seu banco e dirigiu-se à
porta do furgão para abri-la. Recebeu, como prêmio, um safanão do soldado
Williams.
-Mas
que merda?- Indagou Soares, deixando que o resto da frase se falasse sozinha.
-Quieto
Soares!- sussurrou Orfeu, o chefe de operações, enquanto fazia com sua boca
caretas exageradas para mostrar que, não fosse a situação, estaria berrando com
ele.
“Orfeu”,
de nome completo Orfeu Temporário da Matriz Firmino, e era o homem que, mais
cedo naquele dia, entrara com truculência no escritório/consultório/casa do
detetive Soares e o cooptara á participar de uma operação pouco ortodoxa e
quase certamente ilegal, sobre a qual ele ainda sabia muito pouco. Agora que o
calor aumentara consideravelmente e a brisa matinal começara à arrefecer frente
à umidade inclemente, estava ainda suando muito mais, coisa que Soares julgava
ser impossível, e fedia, uma conseqüência que ele anteriormente não havia
conseguido imaginar(estava muito ocupado levando bordoadas).
-Mas
quieto, quieto porque? O que pode acontecer aqui?
-Ora,
Soares, não se faça de tolo!- Orfeu rapidamente adotou um tom de
condescendência pegajosa.- O que pode acontecer é óbvio. Estamos em uma parte
particularmente nojenta da cidade, cheia de maconheiros descerebrados. Nós
somos, segundo eles- Orfeu então ergueu os braços sobre a cabeça e fez em cada
mão, com os dedos indicador e do meio, realizando assim sinal internacional para as aspas- os
“agentes da repressão”. Não vou dizer que eles estão errados, afinal, sou mesmo
um agente, e gosto de reprimir por aí de tempos em tempos- Orfeu deu uma
risadinha.- Mas, no momento, devemos tratar cada um dos passantes na rua como
um traidor em potencial, que vai nos denunciar para Cassius assim que o fato
que estamos em uma missão à serviço da República Legalista do Brasil der muito
na vista.
Soares
não podia fazer nada contra a palavra de Orfeu, mesmo que quisesse, ou que ela
não fizesse sentido, e nesse caso, ela até que fazia.
-Mas,
não vou negar- anunciou Orfeu, tirando com grande afetação um lenço do bolso do
sobretudo para enxugar o rosto- que esperar aqui é um porre.
-Boss, who exactly are we waiting for?-perguntou um
soldado no banco do carona.
-We’re waiting for the other detective, private.- Respondeu Orfeu, com um pesadíssimo sotaque baiano.
Soares
tinha na verdade pouco conhecimento da língua inglesa, mas dominava melhor a
língua “Baianglo-Saxônica”, aquela bizarra e extremamente típica forma de falar
inglês que se desenvolvera nas regiões do Nordeste ocupadas pelos Americanos,
envolvendo um sotaque formado à partir da pronunciação fonética das palavras
vistas em placas de aviso, do toque de recolher e outras tantas mídias que
faziam parte da realidade da ocupação. Assim, pôde perfeitamente entender do
que Orfeu estava falando.
-Peraí,
peraí, peraí. Que história é essa de outro detetive?
Orfeu
subitamente mordeu o lábio inferior. Não esperava que Soares fosse entender o
que estava dizendo. Tentou então se tirar daquela situação desconfortável.
-Bom,
sabe, como eu disse, essa é uma operação um tanto grande. Tem muita coisa em
jogo. É por isso que contratamos dois detetives.
-Ah é,
é? Interessante- Disse Soares, fingindo que tentava mascarar a indignação. Se
estão me cooptando pra fazer um trabalho sujo, que façam direito, Pensou.-Muito
bem, mas quando contrataram esse sujeito? À uma, duas horas, atrás?
-O que?
Não, claro que não, ele está nessa operação há bem mais tempo que você. Foi ele
quem instalou as escutas. É a especialidade dele. Aliás- dirigiu-se então
novamente ao soldado que estava no banco do carona- Tell me, private, when
should he be arriving, again?
-At
noon, sir.
-Puta
que pariu, e já são quase meio dia e meia. O que me lembra que eu preciso tomar
o meu remédio- disse, sorrindo para Soares tentando ser casual. Tirou então de
outro bolso do sobretudo um pequeno pote de vidro, dentro do qual, cujo
conteúdo eram várias pílulas vermelhas e azuis. Orfeu separou duas, uma de cada
cor, e se preparava para engoli-las, quando subitamente, apertou-as em sua mão
e abaixou os óculos.
-Excelente,
ele chegou.
Soares
olhou para a rua pela janela e percebeu que de fato, um outro furgão, quase
idêntico àquele em que estavam,tinha parado logo atrás deles. Sua porta então
deslizou e saíram dois homens: um era mais velho, de pele rosada e cabelo cor
de fogo, e carregava o que Soares acreditava ser um enorme baioneta. O outro
tinha uma pele mais escura que a roupa, uma jaqueta simples com um colete á
prova de balas por baixo. Sua careca reluzia sob o sol; Soares tinha certeza
que o conhecia.
Foi então que a verdade se abateu
sobre Soares como um meteoro. Ele conhecia aquele homem.
Quando ele se aproximou o suficiente, Orfeu abriu a porta e, agarrando Soares
pelo braço, levou-o para fora do carro com a truculência habitual. Soares não
parava de olhar para o homem que se aproximava- e notou então que ele começara
à fazer o mesmo.
-Detetive Soares- disse Orfeu, fazendo um sorriso desnecessariamente largo-
Gostaria que conhecesse Geraldo Ary Carvalho,um de nossos maiores
colaboradores.
É, é ele mesmo- pensou Soares.
-Ora ora, se não é o velho Soares- disse Geraldo sorrindo, e estendendo a mão.
*****
Como descrever o ilustre Geraldo Carvalho? Sem dúvida, para a maioria das
pessoas, era um homem elegante, na faixa de trinta e tantos anos, que se
encontrava geralmente em boa forma física, e tinha gosto por roupas caras,
apesar do seu trabalho não muito bem-remunerado. Fazia sucesso com as mulheres
por seu refinamento e por ser um tremendo pé de valsa, mas por mais que todas
as fêmeas da cidade implorassem por sua companhia(e talvez algo mais), ele
tinha interesse mesmo era nas mais novas, as que ainda poderiam ser chamadas
"garotas", ou, na gíria da moda, "brotinhos".
Para Soares porém, Geraldo Carvalho era um pilantra, um sacana de marca maior
cujo passatempo preferido nos últimos dois anos parecia ser infernizá-lo.
-FFFilho da puta- disse Soares, entre-dentes, enquanto estendia a mão e
apertava a de Geraldo, esperando momentaneamente que não tivesse sibilado
aquelas palavras alto demais.
*****
Tudo começara havia quase dois anos,
em Maio de 1966. Soares, após passar por alguns maus bocados no ano anterior,
finalmente sentia que a sua vida poderia ter um final feliz afinal de contas. A
agência de detetives ia de vento em popa e, por um breve momento, Soares
cogitou contratar subalternos, simplesmente para ter poder sobre alguém. É
claro, havia também um outro motivo, mais pragmático, e o que ele usava
geralmente para justificar suas ambições de contratação no lugar da simples
megalomania: Estava completamente submerso em casos que ainda precisavam ser
resolvidos. Foi por isso que, quando Dona Griselda apresentou à ele seu
problema, Soares abafou uma risada e disse que não seria possível atendê-la,
pelo menos no momento. Dona Griselda era empregada doméstica, mas a inflação
descontrolada, o colapso econômico do país e a quase anulação das leis
trabalhistas desde a ocupação tinham prejudicado sua renda e ela poderia
inclusive perder seu modesto e insalubre barraco na Favela de Calabar. Por
isso, completava o orçamento criando galinhas em uma clareira no canto do
morro. Havia, porém, surgido um problema: Jà faziam três semanas, as galinhas
estavam sendo roubadas uma à uma, e logo não sobraria nenhuma.
Soares olhava para Griselda de trás de sua austera mesa enquanto ela relatava
as suas sofridas condições, dando detalhes melodramáticos, mencionando
inclusive o nome das galinhas(eram Jacqueline, Capitu, Brigitte, Catherine e
Ingrid), mostrando sempre seus dentes escurecidos pela falta de cuidados.
Ao final de sua lamúria, uma Dona Griselda de rosto inchado e vermelho de tanto
chorar recebeu de Soares, falando em um tom neutro, objetivo, frio e cortado
por longas pausas silenciosas que não seria possível ajudá-la. Griselda disse
que se o problema era dinheiro, ela poderia juntá-lo facilmente e que iria
pagar o mais cedo possível. "Juro por São Tomás", ela disse. Soares
não entendeu porque aquele santo em particular, mas deixou isso de lado e mentiu
assegurando-a de que o dinheiro não era parte do problema; ele apenas estava
muito ocupado. Griselda deixou a sala sem virar de costas até chegar na porta,
mantendo por todo o curto trajeto um olhar desgostoso de decepção e
desconfiança.
Perder um cliente era uma coisa que costumava perturbar Soares, mas daquela vez
ele tinha quase cem por cento de certeza de que tinha tomado uma boa decisão;
afinal, a tal de Griselda evidentemente não poderia pagar pelo serviço, à menos
que pagasse com as galinhas, que Soares poderia acabar aceitando mesmo sem
saber verdadeiramente o valor de uma galinha. A mentira que contara também não
era total: uma família tradicional, quatrocentona, tinha lhe oferecido uma bela
soma para encontrar as jóias da família, incluindo-se aí um raro diamante
lapidado datado do Século 18, que haviam sido roubadas havia quase um mês e que
ninguém tinha sido capaz de encontrar. Os Guaracy, Soares acreditava, poderiam
dar uma bela recompensa se ele de fato encontrasse as jóias- E Antonella
Guaracy, a quarentona de cachos negros límpidos, vestido azul com decote pra lá
de escandaloso e formas generosas escondidas debaixo do protocolo da classe
alta e da frieza de quem está realizando um mero pacto de negócios, parecia um
bônus interessante para alem da óbvia compensação monetária.
Mesmo assim, não pôde deixar de achar estranho quando viu a mesma Dona
Griselda, baixinha, curva, usando um vestido rosa surrado que não lhe cairia
bem nem se estivesse em bom estado, andando ao lado de um sujeito alto,
longilíneo, jovem, e preto que nem carvão. Poderia ser qualquer um- um filho,
talvez um neto, um sobrinho, qualquer familiar próximo- não fosse por um
simples detalhe: o sobretudo.
O sobretudo era a marca registrada não-oficial dos detetives particulares-
ainda que, no campo das coisas não-oficiais, que no caso dos detetives
particulares eram muitas, à começar pela própria profissão, o sobretudo tinha a
posição confortável de ser um consenso. Ninguém entendia muito bem de onde
havia surgido esse consenso, embora Soares tivesse um palpite: os estúdios de
cinema americanos haviam aproveitado a invasão para relançar no país os
clássicos do cinema noir dos anos 40(Soares se lembrava
distintamente de ter assistido pelo menos dois desses filmes desde que chegara
em Salvador). Então, talvez com o objetivo de se fazer reconhecer diante do
povo, os detetives adotaram o figurino dos ianques esguios de "Selva de
Concreto" e "O Falcão Maltês". Subitamente, um à um os detetives
particulares passaram á ser distinguidos por seus sobretudos das mais variadas
cores, fossem elas bege ou cinza, bege-acinzentado ou cinza-bege. Soares
estranhara o fato de encontrar tantas pessoas usando casacos longos e grossos
tão perto do verão, na época em que chegou na cidade, mas poucos meses depois ele
mesmo se rendera à moda do sobretudo. Soares, logo, não precisou usar suas
grandes habilidades de detetive para saber que aquele jovem homem era um dos
seus.
Mas não
era isso que o preocupava: podia sentir uma aura ameaçadora vinda do jovem
homem, embora não acreditasse muito em auras.
Conforme
descobriria mais tarde, aquele homem era Geraldo Ary Carvalho, e se tornaria o
maior pé no saco que Soares já conhecera, e o principal motivo pelo qual às
vezes, ele cogitava abandonar aquela vida ingrata de detetive particular,
construir uma jangada e se lançar ao mar, rumo ao vazio. Era uma morte poética,
pensava Soares, e o pior que poderia acontecer era ele ser devorado por
tubarões, ou morrer de inanição. Ou, sei lá, chegar à África.
Mas,
naquele longínquo ano de 1966, Geraldo Carvalho, o “Gê” era só o mais novo de
uma lista de detetives rivais, e que tinha acabado de lhe roubar o cliente.
Mesmo sentindo uma certa aflição por perder o caso de Dona Griselda, Soares não
se deixou levar e, na verdade, mergulhou a cabeça no trabalho, passando a maior
parte de seu dia pensando no caso dos diamantes roubados. Montou na mesa de seu
escritório um enorme painel conectando com barbantes as fotos e informações de
diversos suspeitos, todos com motivos críveis, que crescia dia após dia. Sua
concentração montando a gigantesca rede de conspirações só era perturbada
ocasionalmente quando pensava na(mulher que encomendou a enquete) tendo
tórridas fantasias sobre o que faria com ela quando tivesse em suas mãos o
diamante. Nelas, ela o agradecia pelo excelente serviço prestado, antes de se
sentar em seu sofá, levantando pouco à pouco o vestido enquanto cruzava as
pernas de maneira sugestiva.
Foi de
uma dessas noites de trabalho intensivo e paixões imaginárias que acordou no
dia que viraria seu mundo de ponta-cabeça. Como sempre, sua aparência ao
acordar não era das melhores e na verdade ele estava sofrendo de uma pesada dor
e cabeça, mas lá no fundo se sentia bem, com uma intensidade que dificilmente
experimentara nos últimos três anos. Após passar dias montando uma lista de
possíveis culpados, elaborara um pódio daqueles que julgava mais prováveis e
estava prestes à apresentá-los para (mulher). Arrumou-se rapidamente e saiu de
seu escritório, com a papelada enrolada debaixo do braço. O dia estava radiante
e mesmo a cidade, normalmente tão suja e no limite do que poderia se chamar de
sórdido, parecia recebê-lo de cabeça erguida.
Ao
virar uma esquina, uma rua que ainda conhecia mal mas que agora se lembrava
como sendo a rua Y, viu uma convidativa banca de jornal que acabara de abrir.
Mesmo com a sua importante missão, no momento nada parecia mais importante e
belo do que aquele senhor de idade, de cabelos brancos curtos, bigode e boina
de português, abrindo a porta de metal de seu modesto estabelecimento. Movido
por um instinto semelhante ao de quando comprara seu primeiro e último Acarajé,
Soares andou rumo à banca de jornal e pediu a edição diária d’O Novo Bahiano,
o único jornal que dava algum foco ao que se passava na cidade e não apenas na
linha do front.
E foi
então, no momento em que dobrou a primeira página do jornal que viu, ao lado da
foto de um guerrilheiro comunista capturado, o sorriso do sujeito que vira ao
lado de Dona Griselda, segurando nas mãos um colar de pérolas. Na manchete,
lia-se:
DETETIVE
INTRÉPIDO RESOLVE DOIS CASOS IMPOSSÍVEIS
A
curiosidade tomou conta de Soares, e ele leu a matéria diversas vezes, até
quase decorá-la por completo. Não conseguia acreditar como havia sido burro.
O
artigo descrevia em longos floreios o método engenhoso que o jovem detetive
Geraldo Carvalho tinha usado para capturar uma gangue de malfeitores. Tudo
começou quando estava trabalhando para Griselda Pereira, uma moradora da Favela
do Calabar, cujas galinhas haviam sido roubadas. Geraldo comprou de seu próprio
bolso uma galinha, e a deixou no picadeiro de Griselda. Se os ladrões ainda
estivessem na ativa, pegariam a deixa- e Geraldo, que montava guarda lá,
poderia seguí-los.
Assim,
na madrugada do dia 7 de Fevereiro, Geraldo vira os ladrões- um grupo de
crianças moradoras de rua, vulgarmente apelidadas de pivetes. Gerald então
seguiu os pivetes até seu esconderijo- um lixão quase nos limites da
cidade(nessa hora, o autor do artigo ficava criativo e dava ao lixão nomes
imponentes como “o portão do inferno” ou “deserto sem esperança”) e lá
descobriu que os pivetes estavam alimentando todas as galinhas em um cercado.
“Então eu fiz o que tinha que fazer”-era o que Geraldo, citado entre um par de
aspas, dizia naquela parte do artigo. Subentendiam-se muitas coisas por aquela
frase, e quase todas davam calafrios à Soares.
De
qualquer maneira, Geraldo recuperara as galinhas e, no dia seguinte, elas já
haviam retornado para Dona Griselda. Porém, pouco mais de um dia depois, ele
recebera uma ligação da mesma Dona Griselda, dizendo que suas galinhas estavam
doentes. Mas não era qualquer doença. As galinhas estavam defecando diamantes.
O novo
mistério levou mais tempo para ser solucionado, mas, ao chegar àquela arte do
artigo, Soares já havia entendido o que acontecera. Os pivetes haviam roubado
as jóias da família Guaracy, mas perceberam que seria impossível penhorá-las na
cidade- Antonella já as havia celebrizado em uma dúzia de eventos-, logo haviam
também roubado galinhas, à quem deram de comer as jóias, para que então saíssem
da cidade sem suspeitas. “Só não contavam com o Super Geraldo filho da puta”,
pensou Sares enquanto terminava de ler o artigo pela terceira vez.
Geraldo
encontrou a família Guaracy através de anúncios em vários jornais, e, apesar de
recusar a recompensa que a família lhe oferecera, ele nem precisava aceitar- o
caso se espalhara por toda a cidade, primeiro como justificativa para o modelo
de “Justiça terceirizada”, depois como exemplo de cidadania, até finalmente
cair na boca do povo. As chances de Soares de se tornar o maior detetive de
Salvador haviam acabado ali.
-Fffffilho
da puta- sibilou mais uma vez Soares enquanto Geraldo apertava sua mão. Pelos
olhares desconfortáveis que a maioria das pessoas à sua volta lhe lançavam, ele
havia falado alto demais.
Geraldo,
de repente abrindo um sorriso jocoso, decidiu quebrar o silêncio:
-E aí,
Soares... pegando muitas galinhas recentemente?
Todos
deram uma saudável risada. “Essa história realmente foi longe”, pensou Soares,
não sem algum rancor. O homem ao lado de Geraldo, que, Soares pôde notar,
debaixo de seu uniforme militar usava uma batina de padre, foi o primeiro à
parar de rir e o primeiro à falar.
-Ai, ai
ai. Demos umas boas risadas, não? Mas bom, temos trabalho à realizar. Orfeu,
ele sabe da missão?
-Acredito
que sim- disse Orfeu, tirando um pequeno lenço bordado com motivos florais de
seu bolso e esfregando-o em seu rosto de onde o suor pingava, abundante.
“Quantas coisas esse cara guarda nos bolsos? Parece que o casaco dele não tem
fundo”, pensou Soares.
-Detetive
Soares, este é o Sargento Brandão, da Milícia de Jesus, um de nossos
colaboradores mais freqüentes.
Soares
não pôde deixar de tremer um pouco ao ouvir aquele nome associado à uma pessoa
tão amigável. A Milícia de Jesus havia conquistado uma pouco desejável fama nos
últimos anos. Quase tudo sobre ela era desconhecido, exceto o seu modus
operandi: atacar, em bandos de 12, cidades do interior acusadas de abrigar
comunistas. Se um sequer fosse descoberto, a cidade era punida de variadas
maneiras. Soares se lembrava de um em particular, que vira em uma edição d’O
Novo Bahiano havia menos de seis meses. Uma patrulha americana que estava
passando pelo lugarejo de Vila Rosada encontrou a cidade vazia, mas as portas
de todas as casas estavam abertas, e havia fortes indícios de que um combate
havia ocorrido. Quando os americanos foram patrulhar o cemitério, porém, a
população foi encontrada. Mais de uma centena de homens, mulheres e crianças
haviam sido crucificados em postes de madeira. Alguns ainda estavam vivos, e
falaram de bandos andando com lenços brancos no pescoço- o uniforme da Milícia
de Jesus. A lembrança das fotos no artigo faziam o sangue de Soares gelar.
-Bom
dia, meu filho- disse Brandão.
-B-Bom
dia.
-Que
lindo, vocês todos se conhecem agora.- disse Orfeu.- Mas agora o que você vai
fazer é entrar lá, dizer que vai cumprir a missão, e só isso.
Soares
ergueu as sobrancelhas de surpresa. “Se for só isso, será a grana mais fácil
que já ganhei. “
-Claro,
depois haverá mais o que fazer...
“Óbvio.”
-...Mas
no momento, é só isso. Tente ser gentil, usar frases curtas e objetivas. Ah, e
tente não lembrar à ele de que você é branco.
Soares
ainda se perguntava o que significaria aquela última frase enquanto adentrava o
prédio.
*****
-Entra
logo filho da puta! Estamos em guerra!- berrou o homem na porta, puxando Soares
para dentro pelo braço.
Ele não
devia ter mais de 25 anos, usava um tipo de camisa rendada de lã, óculos
escuros e uma arma ameaçadoramente reluzente. E haviam mais de 5 não muito
diferentes dele naquele mesmo quarto.
“Então
esse é o esconderijo de Cassius”, pensou Soares, usando sua visão periférica
para examinar cuidadosamente o quarto em que se encontrava no minuto que tinha
até se encontrar com o líder.
Apesar
de se situar em uma zona relativamente nobre de Salvador, o apartamento era um
dos mais podres em que Soares já estivera, isso sem contar o seu próprio. As
paredes pareciam ceder sobre o mofo que nelas se acumulava, que era tão espesso
que dava à elas uma aparência brilhante debaixo da luz pálida e esverdeada que
vinha de uma lâmpada acoplada à um ventilador quebrado. De fato, tudo lá
parecia estar em algum tom de verde- desde as paredes, até o carpete grosso,
úmido e manchado, passando pelos vários sofás decrépitos que vazavam enchimento
e os sete closets- ou pelo menos pareciam ser closets- dispostos em uma ordem
aleatória pelas paredes.
O choro
alto de uma criança interrompeu seus pensamentos e o desconcentrou. Só então
notou que todas as pessoas no quarto estavam olhando para ele.
-O
grande Madiba diz que você pode entrar. Mas eu vou com você- diz o homem que
havia aberto a porta.
O homem
então, tirando uma chave do bolso, abre um dos closets. De dentro da porta, sai
uma forte luz branca, que inunda quase toda a sala, e um vapor que parecia
rastejar no chão.
A sala
dentro do closet estava repleta de uma fumaça espessa, e Soares reconheceria
aquele cheiro de maresia em qualquer lugar. Estranhamente, a luz branca e
cegante vinha das janelas- eram provavelmente painéis de vidro instalados por
sobre janelas muradas, atrás das quais haviam sido postas algumas lâmpadas
particularmente poderosas. Uma mesa de madeira gasta, cujas pontas descascavam
profusamente, estava à frente da cadeira giratória acolchoada onde sentava
Cassius. Isto é, pelo menos até onde Soares podia supor, já que ele ainda não
havia se virado.
-Você
deve estar se perguntando porquê não me virei até agora- disse uma voz grave
vinda de trás da cadeira.
-Olha,
de fato...
-É
simples. Você vem aqui, e entra em minha base de operações. Não te conheço, nem
sei quem é. Estamos prestes à assinar um contrato de importância capital. Ao
contrário da luta diária da nossa raça, que labutou sol à sol durante séculos e
está somente agora juntando as forças que adquiriu nesse longo exílio para usar
contra seus antigos mestres, uma luta em que eu posso definir quem você é e
para quem trabalha usando seu nome e a clareza de sua pele, nesse contrato eu
não sou seu mestre. Eu sou apenas seu irmão. Diga, filho, eu acho que conheço a
sua voz.
Estranhamente,
Soares tinha a mesma impressão.
-É, de
fato parece...
-Continuemos.
Detetive...
-Soares.
-Detetive
Soares. Meu grupo não é apenas um Exército.- Soares se perguntou de que
exército ele estava falando. Seriam aqueles cinco caras na sala?- Mais que
isso, ele é uma família. Obá me abençoou com três filhos saudáveis, e quatro
lindas e férteis esposas. Bom, três, mas isso não muda o argumento principal:
Esse exército é minha vida, e por extensão, é a vida de muita gente. Era também
a vida de minha sobrinha. O senhor consegue ver a minha sobrinha nesse momento?
“O que
será que ele está querendo dizer?” pensou Soares, e então ele viu na mesa um
porta-retrato, com a foto desbotada de uma pequena garota negra de tranças, em
um uniforme escolar.
-Sim,
estou vendo.- arriscou Soares.
-Muito
perspicaz. Sabe, isso é tão simples, e mesmo assim os dois últimos detetives
não souberam responder. Mandei-os embora na mesma hora. Um pouco de poder
dedutivo é o mínimo que se pode ter.
Soares
olhou para a arma e, por um momento, achou que mandar os detetives embora não
era a única coisa que Cassius fazia.
-Hà um
mês, minha sobrinha foi seqüestrada. Nós não sabemos que, não sabemos por que
motivo. A sua missão é simples: Descubra quem a tomou de mim e porquê. Responda
à essas dúvidas, e nada mais. O senhor é um detetive. Não posso pedir que saia
atirando e traga ela de volta para mim. Isso é trabalho da família.
Um
curto silêncio se fez. Soares não soube o que dizer. “Ok, ele terminou de
falar. Melhor ir embora antes que ele fique irritado com a minha presença.”,
pensou, recuando.
-Onde
você pensa que vai? Eu por acaso pedi pra você sair?
Soares
parou, acometido de um frio na espinha. Como ele havia ouvido seus passos
silenciosos, ele jamais saberia.
-Não
senhor- disse, tremendo.
-Certo.
Você será acompanhado, em sua investigação, por um membro da família. Ela
fiscalizará se você está fazendo o trabalho bem. Ela se chama Cléopatra, e está
atrás de você.
Soares
se virou, e a primeira coisa que viu foi uma mulher de um metro e oitenta, o
rosto parcialmente coberto por um farto Black Power e um par de óculos
escuros. Usava uma livrara de Cleópatra, mas ela voltaria no dia seguinte, e
isso significaria mais algumas horas dirigindo à esmo pela cidade, jogando
conversa fora com uma pessoa que ele odiava.
Resolveu
ligar para Orfeu, para ventilar um pouco suas preocupações e falar com uma
pessoa para quem não precisaria mentir- muito.
-Capitão
Orfeu, pois não?- disse a grave voz do outro lado do pequeno telefone de
plástico azul.
-Orfeu,
sou eu, o Soares. Eu...
-Ora, é
claro que eu reconheço a sua voz, Soares. Apenas digo “Capitão Orfeu, pois não”
por protocolo.
Então porquê me interrompeu?- pensou Soares, mas tratou de ir direto ao ponto.
-Orfeu,
estou com problemas.
-É, eu
vi. E aí, comeu?
-O quê?
-A
neguinha, comeu?
-O que?
Não, porra, claro que não. Mulher chata dos infernos.
-Pena.
-Orfeu,
você não tá entendendo.
-É
claro que eu entendo. Ao invés de passar o dia investigando, você quer entregar
o dossiê e ficar nisso mesmo.
-Sim.
-E não
dá pra fazer isso com ela ao seu lado.
-Exato.
jaqueta
militar, e Soares tinha certeza, mais nada por baixo. Soares ainda não tinha
idéia de como ela havia entrado sem que ele percebesse.
-Agora
está liberado. Viu? É fácil. É só me obedecer.
Escoltado
por Cleópatra, Soares deixou o apartamento.
*****
-Okay,
então como vamos fazer isso?
-Cala a
boca e entra no carro, branquelo. Isso é uma guerra.
Cleópatra
abriu a porta do carro- um Cadillac velho e batido dos anos cinqüenta- e fez
sinal para que Soares entrasse.
-Certo,
desculpa por revelar a sua posição. Mas como vamos fazer isso?
-Você é
o detetive, você deveria dizer onde começamos. Quem, você acha, é o principal
suspeito? Pense, homem.
“Porra,
eu mal te conheço e já te odeio”, pensou Soares.
-Olha,
pra um detetive, você é ruim mesmo.- disse Cleópatra, ajustando os óculos que
refletiam forte o sol do meio-dia. O vidro e a carroceria fariam a mesma coisa,
se não estivessem sujos e enferrujados.
-Certo.
Vamos deixar isso de lado. O Cassius...
-Shh!
Deixa de ser imbecil, branquelo. Use um código. Isso aqui é uma guerra.
-Como o
quê?
-Ah,
não sei, porra branquelo, algo como, sei lá, chefia.
-Certo.
O “chefia” te deu algum papel com informações que eu deveria saber sobre a
sobrinha dele?
-Porra
branquelo! Não! Pode ter alguém escutando essa merda de conversa, use um
código, como...
E assim
foi. Soares precisou se segurar para não bater o carro de propósito. Ele olhou
para as pessoas que estavam do outro lado da rua e que até agora desprezava- o
Capitão Orfeu, Sargento Brandão, e até o maldito Geraldo- e viu como até eles
pareciam se compadecer de sua situação. Uma coisa era certa: seria impossível
conduzir uma verdadeira investigação falsa com aquela mulher na sua cola.
*****
Soares
desabou na sua cama após o que pareceu ter sido uma semana inteira fora dela.
Já se
As condições haviam piorado bastante. Agora não
apenas o governo estava na sua cola, como a sua única chance em meses de
descolar um trocado haviam sido solapadas por acontecimentos maiores e mais
cheios de melanina do que ele. Havia uma única chance de resolver essa situação,
e isso era tomando uma ação vigorosa e corajosa. Porém, Soares não era um homem
de ações vigorosas e corajosas, e por isso decidiu ligar para Orfeu em busca de
conselhos.
-Escritório do Capitão Orfeu, pois não.
-Orfeu, sou eu, o Soares.
-Ora, é claro que é você, Soares, eu reconheceria
sua voz em qualquer lugar. Apenas digo “Escritório do Capitão Orfeu, pois não”
por protocolo.- A sua voz adquirira uma tonalidade informal e descontraída, que
Soares já conhecia e que, pela experiência (e pela marca visível de um galo em
sua cabeça), vinha sempre carregada de segundas intenções.
-Orfeu, eu estou com problemas.- disse Soares,
tentando ir direto ao ponto.
-É, eu sei.
-É a Cleópatra.
-Ah, tá, ela tem nome. E aí, comeu?
-Hein?
-A neguinha, você traçou ela?
-O que?! Não, claro que não! Porra homem, vamos
tentar manter isso sério!
- Ah, tá, tá bom.-Orfeu recuperou rapidamente a
compostura e adotou mais uma vez um tom de voz alegre e apoiador.- É disso que
eu gosto em você, Soares, você vai direto ao ponto! É um investigador de
verdade.
-Agradeço os elogios, Orfeu, mas eu realmente estou
com um problema aqui- disse Soares, irritadiço.
-Eu entendo o seu problema. Infelizmente, não é
minha tarefa ajudar você.
-Como não?
-Seja criativo, homem! Invente algum jeito de se
livrar dela. Câmbio e desligo.
Ele não desligou o telefone; Soares pôde ouvir
saindo do cabo do telefone uma frase que se assemelhava à algo como “Quer dizer
então que a neguinha tá livre?” antes de desligá-lo ele próprio.
Soares observou a alça do telefone por alguns
segundos. Então, tomado de raiva contra os homens do governo que lhe tinham
emboscado para dentro dessa missão e agora lhe abandonavam sem cerimônia ou um
mísero “foi mal”, “desculpa”, pegou o telefone e jogou-o com força sobre a
alça, derrubando o pequeno aparelho em um gesto incompleto de má vontade. Ainda
insatisfeito com sua vingança sobre o pequeno eletrodoméstico, deu-o um chute
que isolou-o em um canto de seu exíguo quarto. Agora sentia que havia exagerado
na dose, mas o telefone estava muito longe e no momento, haviam assuntos mais
importantes a serem tratados, dentre os quais como se livrar de sua
co-investigadora megera. Várias idéias passaram por sua cabeça como vagões de
um mesmo trem, que rapidamente descarrilava; por isso, entenda-se que ele
descartava as idéias muito rapidamente.
Sem aviso, uma idéia tomou de assalto o território
que ia de sua orelha esquerda à sua orelha direita e das sobrancelhas até a sua
nuca. Era uma idéia que beirava o irracional, mas, quem sabe, poderia
funcionar. Ele a vira num filme que entrara em cartaz havia uns seis meses, “As
portas da fúria”. O filme não era bom; a idéia dava pro gasto.
Recuperou seu inocente aparelho de telecomunicações
do chão, limpando-o, restabelecendo-o à sua posição original e finalmente
ligando para Orfeu, que ouviu tudo com paciência e agradeceu a proposta. Finda
a ligação, Soares atirou-se em sua cama em um único gesto(um salto), tendo
consciência de que ainda estava usando as roupas do trabalho, o que sem dúvida
lhe valeria uma noite de sono desagradável e várias marcas de costura pelo
corpo quando acordasse, mas estava muito feliz para se importar.