segunda-feira, 10 de junho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 6

Capítulo 26


Editora Saber do Povo, 7h25 da manhã. Os corpos impacientes de acadêmicos frustrados, carreiristas do Partido, donas de casa que escreviam nas horas vagas e cujas amigas elogiavam os textos, largados como cadáveres sobre as cadeiras metálicas afofadas com estofo azul, sua respiração lenta acompanhando o zumbir do ar-condicionado a única coisa a indicar que ainda estavam vivos: A safra matinal repetitiva da Editora, pronta a entregar seus manuscritos provavelmente cheios de erros, pretensões experimentais, e uso exacerbado de palavras como “lúgubre”, “transcendente”, “calopsita” e “exacerbado”. A tarefa de cortar todas aquelas palavras pretensiosas e reduzir os inchados manuscritos a algo publicável (isso quando se conseguia salvar alguma coisa) pertencia, é claro, à Vice-Administradora da sucursal de Salvador, Camilla Buri. Quando ela entrou no escritório pela sala de espera - a entrada era única – pôde sentir a temperatura da sala subindo dois graus, e o batimento das pessoas presentes se acelerando. Camilla tinha certo orgulho de, mesmo não tendo uma profissão particularmente notável, já ser conhecida o suficiente do grande público e de membros subalternos do Partido para ser reconhecida por um número razoável das pessoas com que cruzava- os Curupiras não obstante.
Camilla gostava de ver à si mesma como um dos guardas da muralha de armadura brilhante em algum desses livros de fantasia, protegendo a Cultura - com ‘c’ maiúsculo – de uma horda interminável de invasores traiçoeiros esverdeados, vestidos com peles de animais e grasnando idiomas incompreensíveis. Uma guardiã do bem, deixando passar as obras que fariam bem à sociedade, jogando às outras no fosso do castelo. Essa imagem sempre a fazia se sentir animada de manhã.
Se era oficialmente Vice-Administradora daquela sucursal, na prática, era mesmo a Diretora. O administrador oficial era um homem de 90 anos que sofria de sinusite crônica e escoliose, além de um Lupo que lhe carcomia o nariz, para não mencionar a obesidade mórbida que deixava seu rosto semelhante à uma pêra ferida. Seu Luís teoricamente lutara na Revolução, embora, pelas contas de Camilla, ele fosse velho demais para segurar uma arma até naquela época. Geralmente incapaz de comparecer ao trabalho no dia à dia, deixava a administração para Camilla.
-Dia movimentado hoje, não?- disse Camilla com um sorriso discreto, e Rafael levantou timidamente o olhar enquanto ela passava, aparentemente sem tempo ou intenção de receber uma resposta.
-Bom dia- disse Rafael mesmo assim. Rafael era o rapaz da papelada.
-Está cheio mesmo, não é?- continuou Rafael, ensaiando uma conversa informal com sua chefa – os dois teoricamente eram iguais, mas Camilla ganhara destaque no Partido nos últimos anos e portanto a palavra chave nessa relação era “teoricamente”.
Camilla não chegou à ouvir o que Rafael dissera – embalada pela corrida, entrara no escritório em ritmo frenético, atirando sua bolsa na cadeira azul de tecido áspero e dando passos desnecessariamente largos até sua mesa.
-Pronto para massacrar alguém?- praticamente berrava Rafael, do outro lado da parede azul-clara de um material que poderia ser o filho bastardo da madeira e do plástico.
-Com certeza- disse, dando sua primeira resposta. Em seus primeiros anos, teria sido mais cautelosa, mas estes não eram mais seus primeiros anos. Há tempos ela aprendera que insultar as pessoas encafifadas naquela claustrofóbica repartição não representava problema algum; os ocupantes das cadeiras, com seus corpos molengas liquefeitos, poses desconfortáveis, bocas abertas letargicamente sob o olhar vazio das sete da manhã estavam muito preocupados em agradá-la para que reclamassem sobre algo tão tolo como maus tratos.
-Quem é nossa primeira vítima?- perguntou à Rafael, também gritando.
-Um tal Camarada D’Este. Camarada D’Este, levante-se por favor e vá até o escritório. É a sua hora- disse, dessa vez pelo microfone acoplado à sua mesa. Rafael uma vez confidenciara à Camilla que usar o microfone era uma das poucas partes do dia que ele achava mais que suportável.
Camilla batucou sua mesa, que devia ser do mesmo material da parede, ou então uma mistura qualquer com fórmica. O bastardo de um bastardo. A mesa era quadrada e de cor creme, combinando com o computador quase completamente cúbico, da mesma cor. O teclado era composto de cubinhos diminutos de design indistinto, de dimensão análoga à do computador, algo denunciado pelo botão de desligar, que, ao invés de ter imprimido sobre si a palavra “desligar”, consistia em uma reprodução em miniatura do computador, incluindo uma pequena tela de vidro, já permanentemente engordurada com as digitais de Camilla.
A mesa jazia sobre um carpete puído de cor bege; não muito ao longe, uma samambaia se derramava sobre um pote marrom-claro, caída por falta de luz, curva e flácida diante de duas luminárias de metal que se dobravam em um eixo, emitindo luz de uma cumbuca prateada debaixo da qual havia uma lâmpada elétrica. O ar-condicionado zunia como uma canção de ninar constante e metálica.
Há pouco mais de cinco metros da mesa de Camilla, uma porta se abriu. Abriu-se lentamente; Camilla sorriu. Sorrir fazia parte do protocolo, mas naquele caso era também um ato espontâneo. Uma porta se abrindo lentamente era geralmente sinal de uma pessoa tímida, portanto mais fácil de convencer a ir embora.
Um vento curioso sacudiu a sala no momento em a porta se abriu, interrompendo por um breve momento o zumbido do ar-condicionado. Para dentro caminhou um homem baixo e corpulento, usando um sobretudo marrom. Cultivava um bigode fino que lhe atravessava o rosto sem sorriso; sua pele era rosada e seus olhos azuis.
-Por favor, sente-se- convidou Camilla, sorrindo com os dentes à mostra e as mãos cruzadas na altura dos dedos.
O homem a obedeceu e puxou uma cadeira de acolchoamento branco, sentando-se e já tirando do sobretudo um envelope de papel pardo.
-Com licença, eu pedi para você se sentar?- disse Camilla, fazendo desaparecer seu sorriso.
O homem botou o pacote de volta no casaco.
-Na verdade sim. Você acabou de fazer isso.
Camilla levantou uma de suas sobrancelhas e evitou contato visual direto, concentrando-se na pequena bandeira União das Repúblicas Socialistas da América que guardava sobre a mesa.
-O camarada não daqui, não é?
-Como?
-É muito raro levantarem a voz comigo.
O homem parecia surpreso e emitiu um riso abafado. De perto, Camilla podia ver que além do bigode, guardava uma barba mal-feita, algo que nos últimos anos se tornara um tanto incomum. Oficiais do Exército e líderes do Partido ainda guardavam suas barbas como uma lembrança de que haviam lutado na selva e na caatinga, onde faltava de tudo, principalmente lâminas de barbear. Uma barba hoje só trazia respeito se você tivesse 35 para cima.
-Não queria ser desrespeitoso- continuou o homem, mas com um ar de quem dizia exatamente o oposto. -Essas minhas pernas hoje em dia dão cada vez menos pro gasto- disse, dando um leve tapa no joelho.
-Pernas?
-É. Por isso sentei o mais rápido que pude.
Ambos se encararam por alguns segundos com sorrisos plásticos.
-Camarada, você veio aqui por um motivo, suponho, e espero que este não seja me fazer perder o meu tempo.
-Naturalmente- disse D’Este, tirando novamente o pacote do sobretudo. Depositou-o com cuidado sobre a escrivaninha de Camilla.
Abrindo-o, Camilla se deparou com algumas poucas palavras digitadas em uma máquina de escrever, sobre um papel que já não era mais branco, mas ainda não adquirira a tez amarelada das folhas mais antigas- Pré-Revolucionárias, por assim dizer.
O título do manuscrito estava impresso em letras garrafais sobre o papel.

EU MATEI CAETANO VELOSO:
UM ROMANCE

-Isso é brincadeira, né?- foi a primeira reação de Camilla ao ver aquele título. Ainda assim, ele o deixara intrigada.
Caetano Veloso era talvez um dos símbolos mais brilhantes do artista engajado- após um exílio auto-imposto em 1965, ele redefiniu a música brasileira de fora com seus álbuns Psicodelito(1966), Calos nos Dedos e Coronel e Cangaceiro(ambos de 1967), hoje clássicos incontornáveis da música brasileira; era piada recorrente, para não dizer conhecimento geral, que a única música que o Partido parecia apreciar mais que a música clássica eram as músicas de Caetano Veloso.
A grande virada de sua volta ocorreu quando, tomado por um até hoje pouco explicado ímpeto nacionalista, resolveu retornar para o Brasil, então envolvido no período mais intenso da Guerra Revolucionária. Pouco se sabe sobre seu envolvimento nos acontecimentos de Janeiro de 1968, mas se sabe que ele estava em Salvador no momento em que as tropas da Frente Revolucionária Anti-Imperialista tomaram a cidade em uma única noite, iniciando o efeito dominó que em breve levaria o Exército Americano a recuar do Nordeste.
E mais nada. Ninguém sabe o que aconteceu com Caetano Veloso. Segundo amigos pessoais, ele realmente estava na cidade na época; segundo certos testemunhos duvidosos, ele ajudou o FRAI, enfrentando os americanos rua por rua; segundo uns, ele morreu no combate. Segundo as teorias dos tablóides, ele se desentendeu com a FRAI logo após a conquista de Salvador, e vive hoje no Sertão, comandando uma guerrilha contra o domínio do Partido: Camilla já perdera a conta de quantos jornais já vira sendo distribuídos com uma manchete do estilo “A Caça a Caetano Veloso prossegue”, “A Nova Revolução se aproxima”; tudo era na verdade, pelo menos segundo ela mesma, um esquema bem-pensado para atrair jovens para o interior e fazê-los comprar alguns suvenires.
O fato é que todos os dados apresentados até hoje eram absolutamente inconclusivos. Uma investigação realizada no começo da década de 90, após as lendas urbanas chegarem a um nível de histeria coletiva, havia concluído que um cadáver encontrado não muito longe do então Estádio Fonte Nova há quase 20 anos pertencia de fato à Caetano Veloso; mas poucos haviam acreditado nessa história, e entre quatro paredes todos murmuravam que isso mais parecia uma tentativa do Partido de jogar a situação toda para debaixo do tapete.
O resultado disso tudo era que tudo permanecia tão nebuloso quanto antes; ninguém sabia que fim tinha levado Caetano Veloso. A possibilidade mais provável talvez fosse, afinal, a de ele ter ascendido aos céus, sendo bom demais para esse povo pecador.
Um livro como esse- um livro que prometesse respostas, ainda que imaginárias - cairia como uma bomba na cena literária. Pelo menos, era isso que o título indicava. Quanto ao resto do material, ela teria que procurar nas entranhas do manuscrito.
Olhou para a sua bolsa, largada em um canto da mesa; de dentro dela, saía uma borda do manuscrito de Umberto Eco.

Respirando fundo, pôs a bolsa no chão e iniciou a leitura do romance. D’Este apenas olhava, sorrindo detrás do bigode.

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