Capítulo
26
Editora
Saber do Povo, 7h25 da manhã. Os corpos impacientes de acadêmicos frustrados,
carreiristas do Partido, donas de casa que escreviam nas horas vagas e cujas
amigas elogiavam os textos, largados como cadáveres sobre as cadeiras metálicas
afofadas com estofo azul, sua respiração lenta acompanhando o zumbir do
ar-condicionado a única coisa a indicar que ainda estavam vivos: A safra
matinal repetitiva da Editora, pronta a entregar seus manuscritos provavelmente
cheios de erros, pretensões experimentais, e uso exacerbado de palavras como
“lúgubre”, “transcendente”, “calopsita” e “exacerbado”. A tarefa de cortar
todas aquelas palavras pretensiosas e reduzir os inchados manuscritos a algo
publicável (isso quando se conseguia salvar alguma coisa) pertencia, é claro, à
Vice-Administradora da sucursal de Salvador, Camilla Buri. Quando ela entrou no
escritório pela sala de espera - a entrada era única – pôde sentir a
temperatura da sala subindo dois graus, e o batimento das pessoas presentes se
acelerando. Camilla tinha certo orgulho de, mesmo não tendo uma profissão
particularmente notável, já ser conhecida o suficiente do grande público e de
membros subalternos do Partido para ser reconhecida por um número razoável das
pessoas com que cruzava- os Curupiras não obstante.
Camilla
gostava de ver à si mesma como um dos guardas da muralha de armadura brilhante
em algum desses livros de fantasia, protegendo a Cultura - com ‘c’ maiúsculo –
de uma horda interminável de invasores traiçoeiros esverdeados, vestidos com
peles de animais e grasnando idiomas incompreensíveis. Uma guardiã do bem,
deixando passar as obras que fariam bem à sociedade, jogando às outras no fosso
do castelo. Essa imagem sempre a fazia se sentir animada de manhã.
Se era
oficialmente Vice-Administradora daquela sucursal, na prática, era mesmo a
Diretora. O administrador oficial era um homem de 90 anos que sofria de
sinusite crônica e escoliose, além de um Lupo que lhe carcomia o nariz, para
não mencionar a obesidade mórbida que deixava seu rosto semelhante à uma pêra
ferida. Seu Luís teoricamente lutara na Revolução, embora, pelas contas de
Camilla, ele fosse velho demais para segurar uma arma até naquela época.
Geralmente incapaz de comparecer ao trabalho no dia à dia, deixava a
administração para Camilla.
-Dia
movimentado hoje, não?- disse Camilla com um sorriso discreto, e Rafael
levantou timidamente o olhar enquanto ela passava, aparentemente sem tempo ou
intenção de receber uma resposta.
-Bom
dia- disse Rafael mesmo assim. Rafael era o rapaz da papelada.
-Está
cheio mesmo, não é?- continuou Rafael, ensaiando uma conversa informal com sua
chefa – os dois teoricamente eram iguais, mas Camilla ganhara destaque no
Partido nos últimos anos e portanto a palavra chave nessa relação era
“teoricamente”.
Camilla
não chegou à ouvir o que Rafael dissera – embalada pela corrida, entrara no
escritório em ritmo frenético, atirando sua bolsa na cadeira azul de tecido
áspero e dando passos desnecessariamente largos até sua mesa.
-Pronto
para massacrar alguém?- praticamente berrava Rafael, do outro lado da parede
azul-clara de um material que poderia ser o filho bastardo da madeira e do
plástico.
-Com
certeza- disse, dando sua primeira resposta. Em seus primeiros anos, teria sido
mais cautelosa, mas estes não eram mais seus primeiros anos. Há tempos ela
aprendera que insultar as pessoas encafifadas naquela claustrofóbica repartição
não representava problema algum; os ocupantes das cadeiras, com seus corpos
molengas liquefeitos, poses desconfortáveis, bocas abertas letargicamente sob o
olhar vazio das sete da manhã estavam muito preocupados em agradá-la para que
reclamassem sobre algo tão tolo como maus tratos.
-Quem é
nossa primeira vítima?- perguntou à Rafael, também gritando.
-Um tal
Camarada D’Este. Camarada D’Este, levante-se por favor e vá até o escritório. É
a sua hora- disse, dessa vez pelo microfone acoplado à sua mesa. Rafael uma vez
confidenciara à Camilla que usar o microfone era uma das poucas partes do dia
que ele achava mais que suportável.
Camilla
batucou sua mesa, que devia ser do mesmo material da parede, ou então uma
mistura qualquer com fórmica. O bastardo de um bastardo. A mesa era quadrada e de
cor creme, combinando com o computador quase completamente cúbico, da mesma
cor. O teclado era composto de cubinhos diminutos de design indistinto, de
dimensão análoga à do computador, algo denunciado pelo botão de desligar, que,
ao invés de ter imprimido sobre si a palavra “desligar”, consistia em uma
reprodução em miniatura do computador, incluindo uma pequena tela de vidro, já
permanentemente engordurada com as digitais de Camilla.
A mesa
jazia sobre um carpete puído de cor bege; não muito ao longe, uma samambaia se
derramava sobre um pote marrom-claro, caída por falta de luz, curva e flácida
diante de duas luminárias de metal que se dobravam em um eixo, emitindo luz de
uma cumbuca prateada debaixo da qual havia uma lâmpada elétrica. O
ar-condicionado zunia como uma canção de ninar constante e metálica.
Há
pouco mais de cinco metros da mesa de Camilla, uma porta se abriu. Abriu-se
lentamente; Camilla sorriu. Sorrir fazia parte do protocolo, mas naquele caso
era também um ato espontâneo. Uma porta se abrindo lentamente era geralmente
sinal de uma pessoa tímida, portanto mais fácil de convencer a ir embora.
Um
vento curioso sacudiu a sala no momento em a porta se abriu, interrompendo por
um breve momento o zumbido do ar-condicionado. Para dentro caminhou um homem
baixo e corpulento, usando um sobretudo marrom. Cultivava um bigode fino que
lhe atravessava o rosto sem sorriso; sua pele era rosada e seus olhos azuis.
-Por
favor, sente-se- convidou Camilla, sorrindo com os dentes à mostra e as mãos
cruzadas na altura dos dedos.
O homem
a obedeceu e puxou uma cadeira de acolchoamento branco, sentando-se e já
tirando do sobretudo um envelope de papel pardo.
-Com
licença, eu pedi para você se sentar?- disse Camilla, fazendo desaparecer seu
sorriso.
O homem
botou o pacote de volta no casaco.
-Na
verdade sim. Você acabou de fazer isso.
Camilla
levantou uma de suas sobrancelhas e evitou contato visual direto,
concentrando-se na pequena bandeira União das Repúblicas Socialistas da América
que guardava sobre a mesa.
-O camarada
não daqui, não é?
-Como?
-É
muito raro levantarem a voz comigo.
O homem
parecia surpreso e emitiu um riso abafado. De perto, Camilla podia ver que além
do bigode, guardava uma barba mal-feita, algo que nos últimos anos se tornara
um tanto incomum. Oficiais do Exército e líderes do Partido ainda guardavam
suas barbas como uma lembrança de que haviam lutado na selva e na caatinga,
onde faltava de tudo, principalmente lâminas de barbear. Uma barba hoje só
trazia respeito se você tivesse 35 para cima.
-Não
queria ser desrespeitoso- continuou o homem, mas com um ar de quem dizia
exatamente o oposto. -Essas minhas pernas hoje em dia dão cada vez menos pro
gasto- disse, dando um leve tapa no joelho.
-Pernas?
-É. Por
isso sentei o mais rápido que pude.
Ambos
se encararam por alguns segundos com sorrisos plásticos.
-Camarada,
você veio aqui por um motivo, suponho, e espero que este não seja me fazer
perder o meu tempo.
-Naturalmente-
disse D’Este, tirando novamente o pacote do sobretudo. Depositou-o com cuidado
sobre a escrivaninha de Camilla.
Abrindo-o,
Camilla se deparou com algumas poucas palavras digitadas em uma máquina de
escrever, sobre um papel que já não era mais branco, mas ainda não adquirira a
tez amarelada das folhas mais antigas- Pré-Revolucionárias, por assim dizer.
O
título do manuscrito estava impresso em letras garrafais sobre o papel.
EU
MATEI CAETANO VELOSO:
UM
ROMANCE
-Isso é
brincadeira, né?- foi a primeira reação de Camilla ao ver aquele título. Ainda
assim, ele o deixara intrigada.
Caetano
Veloso era talvez um dos símbolos mais brilhantes do artista engajado- após um
exílio auto-imposto em 1965, ele redefiniu a música brasileira de fora com seus
álbuns Psicodelito(1966), Calos nos Dedos e Coronel e Cangaceiro(ambos de 1967), hoje clássicos incontornáveis
da música brasileira; era piada recorrente, para não dizer conhecimento geral,
que a única música que o Partido parecia apreciar mais que a música clássica
eram as músicas de Caetano Veloso.
A
grande virada de sua volta ocorreu quando, tomado por um até hoje pouco
explicado ímpeto nacionalista, resolveu retornar para o Brasil, então envolvido
no período mais intenso da Guerra Revolucionária. Pouco se sabe sobre seu
envolvimento nos acontecimentos de Janeiro de 1968, mas se sabe que ele estava
em Salvador no momento em que as tropas da Frente Revolucionária
Anti-Imperialista tomaram a cidade em uma única noite, iniciando o efeito
dominó que em breve levaria o Exército Americano a recuar do Nordeste.
E mais
nada. Ninguém sabe o que aconteceu com Caetano Veloso. Segundo amigos pessoais,
ele realmente estava na cidade na época; segundo certos testemunhos duvidosos,
ele ajudou o FRAI, enfrentando os americanos rua por rua; segundo uns, ele
morreu no combate. Segundo as teorias dos tablóides, ele se desentendeu com a
FRAI logo após a conquista de Salvador, e vive hoje no Sertão, comandando uma
guerrilha contra o domínio do Partido: Camilla já perdera a conta de quantos
jornais já vira sendo distribuídos com uma manchete do estilo “A Caça a Caetano
Veloso prossegue”, “A Nova Revolução se aproxima”; tudo era na verdade, pelo
menos segundo ela mesma, um esquema bem-pensado para atrair jovens para o
interior e fazê-los comprar alguns suvenires.
O fato
é que todos os dados apresentados até hoje eram absolutamente inconclusivos.
Uma investigação realizada no começo da década de 90, após as lendas urbanas
chegarem a um nível de histeria coletiva, havia concluído que um cadáver
encontrado não muito longe do então Estádio Fonte Nova há quase 20 anos pertencia
de fato à Caetano Veloso; mas poucos haviam acreditado nessa história, e entre
quatro paredes todos murmuravam que isso mais parecia uma tentativa do Partido
de jogar a situação toda para debaixo do tapete.
O
resultado disso tudo era que tudo permanecia tão nebuloso quanto antes; ninguém
sabia que fim tinha levado Caetano Veloso. A possibilidade mais provável talvez
fosse, afinal, a de ele ter ascendido aos céus, sendo bom demais para esse povo
pecador.
Um
livro como esse- um livro que prometesse respostas, ainda que imaginárias -
cairia como uma bomba na cena literária. Pelo menos, era isso que o título
indicava. Quanto ao resto do material, ela teria que procurar nas entranhas do
manuscrito.
Olhou
para a sua bolsa, largada em um canto da mesa; de dentro dela, saía uma borda
do manuscrito de Umberto Eco.
Respirando
fundo, pôs a bolsa no chão e iniciou a leitura do romance. D’Este apenas
olhava, sorrindo detrás do bigode.
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