Capítulo 27
-Bom, Camarada...
-D’Este.
-Isso. Certamente, é um incipit interessante. Esse detetive, esse...
-Soares.
-Soares, exato. Personagem interessante. Parece um
apanhado de clichês da literatura noir, às
vezes subvertidos, às vezes não muito. É verdade que ele é meio... pacato para
ser um daqueles detetives durões em preto e branco.
D’Este deu de ombros.
-É verdade.
-E esse soldado. Personagem interessante também. É
interessante também você pegar o ponto de vista do inimigo- Camilla, ao dizer
essas palavras, notou um leve sorriso e um brilho no olhar de D’Este.- Traz
mais densidade e uma nova camada ao livro. Mas tem uma coisa...
-O que?
-Vai ser difícil para mim publicar um livro que
retrata um soldado da força de ocupação americana de forma simpática. Já pensou
em, não sei, talvez modificar um pouco ele? Transformá-lo num vilão? Talvez... Dar a ele um capanga, ou um
tapa-olho?
D’Este novamente deu de ombros, mas Camilla pôde
perceber que ele não havia gostado daquele comentário.
-Eu posso fazer uma modificação ou outra, mas essa
é fundamentalmente uma história de...
-Eu sei, eu sei, eu tenho certeza de que tem uma
metáfora profunda no livro que provavelmente apenas você entende, mas que você
‘espalhou várias dicas pelo livro, então só um idiota não percebe’. Escuto isso
com freqüência, e é provável até que você esteja certo. Mas a verdade é que
essa Editora só publica livros de utilidade pública. Se eu sentir que um livro
faz bem à nossa nação e precisa ser lido por um grande público, ele ganha o meu
sinal verde. Ao mesmo tempo, preciso garantir que esse livro seja legível pelo
grande público, sem, no entanto, sacrificar precisamente aquilo que o torna
grande. Como se não bastasse preciso obedecer a várias diretrizes e regras
hierárquicas. Entende como o meu trabalho é difícil?
Antes mesmo de Camilla terminar o seu monólogo,
D’Este já estava tirando sua carteira do bolso.
É claro que Camilla jamais tomaria esse tipo de
atitude se o livro fosse um campo minado de subversão anti-Partido; ela
simplesmente o rejeitaria por cautela. Não. Era quando o livro era bom o
suficiente para ser publicado que ela pedia um agrado. Ela sabia disso, D’Este
sabia disso, talvez até seus superiores soubessem disso. Algumas pessoas apenas
querem seus livros publicados, sem se importar com a qualidade; querem apenas
ser um Autor com A maiúsculo, e se apresentar dessa forma nas festas em que
forem. Outras sabem que seu livro é bom e sentem que tem uma missão de torná-lo
disponível. Para Camilla, o que juntava as duas categorias era uma
disponibilidade de pagar para chegar a seus objetivos.
-Posso perguntar uma coisa- disse D’Este.
-Pois não- disse Camilla, contando o maço de Pesos
Latino-Americanos que acabara de receber.
-Eu queria que esse livro fosse publicado até
Janeiro do ano que vem.
Camilla parou de contar por um instante e olhou
para o alto.
-Seria por causa do aniversário de 30 anos da
tomada de Salvador?- perguntou, acariciando p pescoço com os dedos e olhando
para o teto.
-Precisamente. Achei que seria uma boa data para
trazer esse assunto de volta à tona e refletirmos sobre o legado histórico da
Rev...
-Entendi, entendi. Querido, vai ficar difícil. Sabe
como é, estamos em Dezembro, e essas coisas demoram. Com toda a edição,
revisão, criação da capa, impressão, pode só ficar pronto em 1999.
Resignado, D’Este abaixou a cabeça.
-É só isso?- Camilla tirou seu olhar do teto e
encarou D’Este fazendo uma expressão amigável de “Muito bom ver você! Até a
próxima!”, mas que terminou parecendo o olhar maníaco e enregelado de um serial killer.
-Acho que não- disse D’Este, se levantando e
andando de costas, em direção à porta.
-Só uma coisa- perguntou Camilla.
-Pois não.
-O livro se chama “Eu Matei Caetano Veloso”... e
nenhuma referência à esse acontecimento ou a ele foi feita até agora.
D’Este sorriu novamente, um sorriso cândido e
brincalhão.
-Se quiser descobrir como termina, vai ter que
continuar lendo- disse, e, sem dizer mais nada, saiu do escritório de Camilla.
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