Capítulo 6
Uma mosca bateu no vidro. É a terceira em menos de
uma hora.
Os últimos dias haviam sido uma longa espera. Eu
entrava e saía de carros, entrava e saía, entrava e saía. Às vezes, tirava a
sorte grande, e era o último à entrar, e então minha única preocupação era me
apertar o suficiente para que não caísse em um abismo que, em verdade, não
existia. Outras, porém, eu era o primeiro à entrar no carro, e nele era atirado
por minha própria força de vontade como o tomate mais feio do supermercado,
sendo logo espremido por outros tomates mais graúdos, redondos e brilhantes do
que eu, vermelhos de sol e falando alto sobre as suas primeiras experiências de
combate.
O lado bom dessas longas viagens de jipe é que elas
me lembravam de minha infância. Pode parecer sacanagem ou papo de um hippie ou
Kerouac da vida, mas é isso mesmo.
Por mais infernal que Zil possa ser às vezes, não
dá pra negar que é um país lindo. Confesso que fiquei enjoado da Amazônia
depois do período lá, com aquelas matas densas como que querendo esconder
alguma coisa de nós, e aquele ar pesado cheirando à morte. Mas o interior do
Nordeste é uma outra história, e acho que vai demorar até eu enjoar dele. A
paisagem arenosa e vermelha ao pôr-do-sol me lembrava do Arizona, embora eu só
tenha ido lá uma vez(família, trailer, 1956). Mas o Arizona imaginário que eu
construí na minha cabeça tinha muito à ver com os anúncios coloridos da
Marlboro que eu via nas revistas do meu pai, com seus Cowboys, paisagens
áridas e pores-do-sol. De fato, a paisagem do Nordeste brasileiro lembrava um
bocado o Arizona desses comerciais de cigarro, e alguns Cowboys até
apareciam de vez em quando, embora fossem mirrados e sujos e as vacas, magras.
Ainda assim, ficar perto da janela do jipe era uma
experiência não muito diferente de assistir televisão; afinal, a televisão e a
janela são telas de vidro quadradas, com a diferença que a nossa televisão, ao
contrário da janela imunda do jipe, estava sempre impecável, e não mostrava
cores. Ainda assim, não era difícil imaginar a janela do jipe como um tipo de
televisão onde podia-se assistir um filme bem diferente, como aquelas
introduções de filmes de faroeste em que eles mostram a paisagem desolada do
deserto ao som de uma gaita por alguns minutos antes de qualquer personagem
aparecer, apenas aumentada muitas vezes. Às vezes, quando aparecia algum dos cowboys
brasileiros, parecia que a perspectiva iria mudar e ele ia ser o personagem
principal, apenas para passarmos mais uma vez por ele, ignorando-o em troca de
mais paisagens.
Acho que eu não daria um diretor muito bom.
Aqueles longos períodos a bordo do jipe eram mais
fruto do acaso do que qualquer coisa. Deveríamos ir pela estrada que fica rente
ao litoral e que nossos garotos haviam reformado no final do ano passado, mas
por algum motivo de força maior- aparentemente, a estrada estava saturada, e
precisávamos organizar a retirada e reorganização das tropas rapidamente-
devíamos usar uma velha estrada do interior, que, aparentemente, segundo me foi
informado por um soldado da Califórnia- Davis, se não me engano- que havia
comprado três livros sobre o Brasil antes de vir para cá e havia com isso se
tornado o nosso centro de referências, havia sido construída no Século XVII
para levar açúcar e mantimentos do interior para Salvador.
Davis continuava falando incessantemente ao lado de
seus parrudos amigos, e, brandindo um mapa que de tão grande ele não havia
conseguido desdobrar inteiramente e tinha uma certa dificuldade em segurar, que
ainda naquela noite estaríamos em Salvador.
Foi aí que o ronco do motor começou à ficar mais
hesitante, mais parecido com uma tosse crônica, à ponto de eclipsar a conversa.
A hora chegara para realizar uma parada, e, felizmente, não muito longe dali
havia um vilarejo.
Como oficial de mais alta patente no jipe, ordenei
que este parasse, para que requisitássemos algum combustível na vila, como
quase sempre fazíamos.
Era uma cidade muito parecida com as dezenas de
outras pelas quais havíamos passado nos dias anteriores. Casas poeirentas, de
barro e tijolos toscos, meio tortas. Algumas crianças andavam nas ruas
não-pavimentadas, usando roupas que um dia estiveram limpas. Era um daqueles
lugares em que o canto dos pássaros havia sido devorado pelo silêncio
miserento.
Mesmo assim, parecia haver algo de errado naquela
cidade. Era pacata, como todas as outras cidades o eram, mas... Era justamente
pacata demais. Para além da atmosfera rural e das pessoas andando nas ruas,
casualmente cumprimentando umas às outras com uma versão mais arrastada, mais
demorada do português que ouvíamos em Natal, havia uma camada adicional de
preocupação no ar. Algo não parecia certo com aquela gente.
Fiz um sinal para os que estavam no jipe. Eu iria
descer. Eles não haviam entendido. Estavam felizes em apenas continuar e cair
direto na boca do leão. Mas eu não.
O nosso jipe parou bem ao lado de uma mulher, que
caminhava ao lado de um burro, no qual estava sentada uma criança de talvez 3
anos.
Eu saltei imediatamente do jipe e andei até ela com
passos pesados, o que pode ter causado certo estranhamento, ou, mais
provavelmente, medo, pois sua primeira reação foi dar alguns passos para trás(a
segunda foi se esconder atrás do burro e murmurar alguma coisa em português).
Rapidamente percebi que nosso primeiro contato não
havia sido dos mais amigáveis, e tentei endireitar a situação. Levantei meu
braço e dobrei-o na altura do ombro, e acenei com a mão enquanto balançava a
cabeça da esquerda para a direita, tentando fazer o sinal internacional do “não
se preocupe, somos amigos”. Se tivesse alguma garrafa de Coca-Cola no jipe,
talvez convencê-la disso ficasse mais fácil.
Então percebi algo nos olhos da mulher. Eles
brilhavam muito, mas não era um brilho de alegria, de medo ou sequer aquele
brilho que os jovens apaixonados têm. Bom, de certa forma era sim um brilho de
medo, mas isso não vêm ao caso. Seus olhos estavam dilatados e sua boca,
entreaberta, porque ela acabara de ser pega. Algo estava, de fato, muito
estranho.
Felizmente eu logo vi algo no reflexo de seu olho,
enquanto a garotinha sentada no burro começava à chorar. Era algo. Não. Alguém.
Me virei e lá estava ele, do alto de seus 1.40 metros, a praga que assolava
todas as cidades do Brasil, grandes e pequenas: o moleque. Descamisado,
melequento, desdentado, de olhos claros; pele queimada de sol, coberta por algo
que deveria parecer um calção, amarrado por um barbante grosso e rústico.
Foi só eu notá-lo para algo estranho se produzir no
ar, e tudo começar à acontecer ao mesmo tempo.
Os garotos saem do carro, e por algum motivo,
carregam suas armas; Por motivos ainda mais obscuros, apontam elas para um
nível onde poderiam atingir qualquer um, eu inclusive. Enquanto isso, a mulher
do burro grita alguma coisa, com seus olhos cada vez mais protuberantes; Penso
ter ouvido algo como Cor, o que no contexto não significaria nada, mas
acredito que se tratava, no caso, de corre. A menina chora. O garoto corre, o
que dá peso à minha teoria. Os rapazes notam o garoto correndo. As armas viram
de lado.
Tiros percorrem a rua, em toda sua extensão larga e
não-pavimentada. No mínimo sete.
O garoto dá um salto e estica seus braços no ar,
quase como se queresse voar feito um pássaro em seus últimos momentos, logo
antes de ir ao chão.
Os pássaros de verdade, que tinham sumido- e na
verdade ainda não tinham aparecido naquela cidade- reaparecem, e estranhamente
sobrevoam a área do menino morto.
O rico solo da Caatinga ganha um novo tom de
vermelho.
A minha reação é rápida; sou rápido em gritar com
meu destacamento, e rápido em exigir justificativas- tudo pontuado com termos
específicos do jargão militar como fuck, pigfuckers, cocksuckers, miserable
sad sack of horseshit. Não sei se adiante, ou se isso vai impedir nosso
destino.
Me viro para trás. A mulher do burro já se foi.
Algo muito estranho acontece, e faz meu sangue
congelar por um mísero segundo- o suficiente.
Mais tiros na cidade. Talvez viessem do nosso
destacamento, achando que aquele simples pivete era uma horda de inimigos se
preparando para nos emboscar.
Mas então, os tiros continuaram. Faço um sinal para
Davis e os outros formarem uma fila atrás de mim enquanto viramos a esquina que
acabáramos de cruzar e que dava em um descampado que marcava os limites da
cidade. Mais tiros, dessa vez, por mais tempo. E então me ocorreu- me ocorreu
quando o meu sangue gelou novamente por um mísero segundo, como... Causa?
Efeito? Provavelmente os dois. Um antes, e um depois. Mas eu sinto isso o tempo
todo. O que importa são as coisas que descubro quando isso ocorre.
Eram tiros de AK-47. E, pela quantidade, era mesmo uma horda de
inimigos, pronta à nos emboscar.
Antes mesmo de chegar ao descampado, a parede ao
nosso lado foi crivada de balas. Em um segundo, Davis e os outros tinham se
dispersado. O pior é que, com um pouco de visão periférica, havia sido capaz de
ver que havia também um grupo de indivíduos hostis se aproximando em meio ao
descampado com um tipo de camuflagem, facilmente reconhecível. Os tiros haviam
vindo do outro lado.
Estávamos cercados.
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