segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 25

Capítulo 18


-Carona, senhor? Sou o último de meu batalhão.
A fileira de caminhões era longa, interminável. Os faróis formavam um tapete de estrelas no horizonte.
-Último sobrevivente, hã. Tem certeza que não é um desertor?
O caminhoneiro riu. Era um caminhoneiro gordo, sorridente, bigodudo. Devia ter uns quarenta anos, e tinha um sotaque sulista carregado.
-Vamos lá, rapaz. Entra aí atrás. Passe as suas informações pro nosso colega lá. O nome dele é Martin.
Subi o caminhão e entrei na lona. A única fonte de luz era dos faróis, que banhavam todo o interior da lona, e um isqueiro muito fraco de algum soldado participando de alguma conversa muito apaixonada.
-Cara, a Jane Fonda é a mais gostosa, sério.
-Não é não, é...
Eu entrei, e eles pararam de falar. Um silêncio curioso ocorreu. Não os culpo. Depois de alguns dias no deserto, eu devia mesmo estar parecendo um lixo.
Um vidro no fundo da lona se abriu.
-Martin, pega aí os registros desse rapaz!
Um soldado de boné respirou fundo e andou até mim.
-Seu nome, soldado.
-Tenente-capitão Dieter Freeman, senhor, da 4a Companhia de Infantaria.
O jovem abaixou o boné e disse:
“Ora, então sou eu que deveria estar batendo continência! Sargento Martin Stout, 5a Companhia de Infantaria Motorizada. Agora diga-me Tenente: Qual é a mais gostosa, a Jane Fonda em ‘Barbarella‘, ou a Marilyn Monroe em ‘Quanto Mais Quente, Melhor’?
O círculo todo começa à rir. É bom estar em casa.


*****


Não conseguia dormir. A guerra me tirara o sono, e eu iria precisar de um tempo para recuperá-lo.
Olhando pela fenda da lona, via apenas um resquício do deserto que ia ficando para trás, iluminado pelos faróis dos caminhões.
Pensei em Shorty e Wright. Aonde estariam eles?
Havíamos sido libertados pelos donos da fazenda Calipso, e, essencialmente, deixados á porta dela, com apenas o deserto entre nós e a liberdade. Já na saída, Wright e Shorty
jogaram a toalha. Desistiram. Não queriam mais saber de guerra. E, realmente, será que eu tenho como culpá-los? Ser capturado é foda. Muda toda a sua perspectiva. Se a própria guerra, a própria possibilidade constante e nunca descartável de se perder a vida, faz você dar mais valor à mesma, a captura, o estar com sua vida na mão de outra pessoa, faz com que você dê mais valor ainda à ela quando retoma dela o controle.
Eu poderia ter parado eles, mas que autoridade eu tinha? Além da minha óbvia autoridade de superior militar, mas deixa eu falar uma coisa: no Deserto, somos todos homens. Não existe esse negócio de superior. O único título meu que contava era o meu rifle. A arma faz o homem.
Resolvi deixá-los passar. Andamos juntos até a estrada mais próxima, e, na primeira encruzilhada, nos cumprimentamos, abraçamos e dissemos adeus. Pela primeira vez em dois anos, eu me separava deles.
Ando um pouco ao redor do caminhão. Todos levavam um sonho de bebê. Nem o meu andar incessante ao redor do caminhão os perturbou, e eles estavam dormindo em caixas.
A única pessoa acordada, é claro, era o motorista. Resolvi ir para a frente, conversar com ele.
Bati no pequeno vidro que separava nosso compartimento do dele. O gordo olhou de relance e bateu com o dedo indicador em um adesivo colado no vidro, que dizia:
FALAR COM O MOTORISTA APENAS EM CASO DE EMERGÊNCIA
...e então, levantou o polegar.
Ignorando seu aviso, bati uma segunda vez, e dessa vez, ele puxou a maçaneta que abria o vidro.
-O que você quer?- disse, no inconfundível sotaque do sul.
-Preciso fazer uma confissão- disse.
-Ah. Ora, desembucha.
-Eu sei de um plano secreto do exército insurgente para tomar Salvador.
-O quê, a ofensiva?- ele riu- Essa é notícia velha. Começou já faz algumas semanas. Porra, nós já perdemos a Amazônia, e estamos recuando mais ainda- o que é totalmente desnecessário, na minha opinião- só para salvar o que restou do litoral.
Sabe, Salvador é a chave de tudo, e é por isso que estamos recuando e reagrupando lá. Se perdermos a costa, perderemos todo o avanço que fizemos desde ‘64 e teremos que voltar á
bombardear o continente inteiro do ar.
-Bom, é o que já estamos fazendo.
-Porra- ele riu, e soltou uma baforada quente de seu charuto barato- porra, é verdade. Você é inteligente, hein? Mas é, é verdade, estamos só bombardeando. Não tem mais nenhuma ofensiva. Sinto falta delas. Quando o nosso Exército de fato conseguia algo. Lembra da tomada de Brasília?
Não pude conter o sorriso. “Se lembro”, eu disse. Fora o evento mais comentado de toda a guerra, e explorado como nunca pelos jornais. Todo dia saíam fotos dos corajosos pára-quedistas, ou um diagrama das etapas da conquista, ou uma entrevista com o herói americano, Cap. Rudolph McConnell, celebrado por todos os escoceses do meu bairro. Eu ainda não estava no Exército, mas como muitos jovens americanos, me alistei logo após aquela gloriosa demonstração de valentia.
-Aquilo foi incrível. É uma pena que não deu certo- ele disse.
-Porque?
Respirou fundo.
-Eu tenho um irmão que trabalha na Força Aérea. Ganha a vida bombardeando a Bolívia.
-Bolívia?!
-É. É o que ele me disse que aconteceu. Sabe, depois que avançamos em Minas Gerais e tomamos Brasília, os guerrilheiros da região não evaporaram. Eles foram para o Oeste. Começaram à vazar pela fronteira do Brasil, e chegaram na Bolívia e no Paraguai. Nos últimos seis meses, meu irmão tem saído de bases no Peru para bombardear Cochabamba.
-Cochabamba?
-É. É a capital da Bolívia, ou algo assim.
-Meu Deus.
-Eu sei. Ou seja, se recuarmos, não perdemos um país; perdemos três.
-Perdemos?
Ele terminou de fumar o charuto, e jogou-o pela janela, onde acertou um outro caminhão; estranhamente, parecia um caminhão civil.
-Perdemos?- eu repeti.
-O que disse, filho?
-Bom, acho que esses países nunca foram nossos.
Ele riu. -Bom, é, eu sei que em teoria não são nossos, eles tem presidentes, parlamentos, bandeira e tudo mais, mas a realidade é meio diferente. Esses países estão sendo tomados pelos comunistas, e os comunistas não estão conosco. É assim que funciona: se você não está conosco, você está com a URSS, e portanto está contra nós. É só que... É tudo tão mal-feito. Quer dizer, bombas? Sério? Nós vamos tentar seduzir essas pessoas pro nosso lado bombardeando elas? Eu não vejo como isso funciona. Se estivéssemos fazendo o que fizemos na Europa, dando doces para as crianças, tirando umas fotos, mandando comida- acho que até podia funcionar. Mas isso? Você não pode forçar alguém à te obedecer pra sempre. Não com bombas. Porra, eu passei em alguns lugares que me partiram o coração. Crianças tentando sugar as tetas de um vaca famélica, enquanto a sua mãe estava morta no chão, estripada. Nós chegamos em uma aldeia, tomamos ela e vamos embora, e em uma semana eles já estão acolhendo os comunistas de novo, porque pelo menos eles trazem comida. Quer dizer, tem comida estragando nos super-mercados do Kansas. Não podemos dar só um pouco? Não é nem pela guerra, é um mínimo de decência que eu esperaria de mim mesmo e dos meus compatriotas. Mesmo assim, eu posso garantir que a guerra também acabaria muito mais rápido. Além do quê, tem problemas para resolver na América também. Meu pai perdeu o emprego, minha irmã também. Eu ouvi que tem muitas fábricas quebrando, muitas pessoas desempregadas, muita pobreza. Não dava pra resolver os nossos próprios problemas antes de querer levar o capitalismo para outros países? Se não conseguimos resolver os problemas de nossa própria terra, o que nos torna melhores que os soviéticos?
Ele estava esbaforido quando terminou.
-De fato, tem muitos problemas para resolver, como...
-Como os negros- ele disse, seco.
Eu fui um pouco para trás.
-Os pretos, cara. Eles vão acabar com esse país. Eles já estão tomando o emprego de brancos decentes como o meu pai, e isso porque eles gostam de viver na indignidade e na sujeira. Por isso aceitam um salário menor. É isso que os socialistas querem. Que os pretos fiquem pobres e sujos o suficiente, para que eles acreditem no que eles dizem. Daí a termos um presidente socialista é um pulo. Quem sabe, até um presidente preto.
-É, sobre a minha descoberta...- eu disse, mudando de assunto.
-Ah, diga.
-É sobre uma fazenda. Fica no interior da Bahia. Os comunas estão usando como base, e um deles está coordenando a ofensiva.
Seus olhos brilharam.
-Sério? Isso é muito importante. Assim que chegarmos à Salvador, vou agendar uma conversa no telefone com o General Westmoreland. Pode ser o ponto de virada da guerra.
-É. Diga-me, esses caminhões civis...
-Suprimentos.
-Ah.
Os caminhões de suprimentos passavam muito mais rápido que os nossos. A lona de um se abriu do lado de trás. Vi uma mulher negra, linda como só as brasileiras sabem ser, olhando para fora, atrás de um par de óculos. Nossos olhares se cruzaram e, furtivamente, ela fechou a lona, voltando à sumir na noite escura.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 24

Capítulo 17


Soares estava livre.
Não tinha sido fácil. Ele caíra no jardim de Jana- ainda não perdoara aquela safada por mentir para ele- e tivera que escalar o muro para sair, tudo ainda amarrado naquela arapuca de couro. Uma mesa no quintal servira de escada; mas isso não o impediu de cair no chão do lado da rua, e, amarrado pela arapuca, não encontrou um único ponto para amortecer a queda, indo parar de bruços no chão.
Daí, tivera que correr. Sem tempo para fazer perguntas, sem tempo para pensar. O importante é correr, correr para longe daquela maldita casa e daquelas malditas pessoas que agora estavam atrás dele, sem dúvida chamando alguns de seus amigos para pôr uma bala no meio de sua testa em algum beco escuro e fedorento, para a alegria dos ratos, baratas, gatos malhados e algum mendigo que bateria punheta para a cena toda.
Esses pensamentos nada alegres foram interrompidos quando Soares tropeçou de novo, caindo, dessa vez, em um arbusto. Não agüentou e desatou a chorar. Dias atrás, ele era um detetive péssimo quase sempre perto da falência, mas apesar de todas as agruras, ainda tinha seu escritório, sua mesa solene, sua secretária. Mas e agora? Estava reduzido à um patético ser pelado, amarrado em correntes de couro que ele não sabia desfazer mas que provavelmente deixam você tipo “ah mas isso é fácil demais” quando você finalmente descobre como desamarra-lãs. Pior, estava coberto de hematomas, fora traído pela única mulher que o amara, mas que, no fim das contas, não o amava porra nenhuma e queria mesmo era matá-lo; Provavelmente, depois de fugir de Orfeu, a chance de nem ter mais um escritório era grande; E para todos os efeitos, era um fugitivo da lei.
Tudo isso em três dias.
Mas Soares não se deixou tomar pelo desespero. Ficar sentado chorando não ia resolver seus problemas. Além do quê, já era de manhã e daqui à pouco a rua se encheria de gente. Milhares de pessoas vestidas e um Soares pelado.
Sentado no arbusto, tentou fazer um escaneamento de onde estava. As calçadas estavam alinhadas e bem-cuidadas, os arbustos eram floridos e as casas, bem acima da media. Soares definitivamente não conhecia aquela parte da cidade, mas parecia uma parte bacana.
Sentado em seu arbusto, Soares então se concentrou em desarmar a arapuca; ela era
amarrada por fivelas em diferentes camadas, e passar as correias pelas extremidades exigia um certo número de acrobacias. Estava pensando em como faria para arranjar uma roupa; talvez, assaltando um alfaiate...
-Eu posso ajudar você com isso.
Soares não soube o que dizer diante daquela oferta aleatória, então apenas olhou para cima para ver quem a estava proferindo. Foi nesse momento que levou mais um soco.
Do alto de seu metro e oitenta de altura, Geraldo observava Soares em meio à lágrimas.
-Ge...Ge...Geraldo?
-À seu dispor- Geraldo responde, e enche Soares de porrada; três socos em sua cabeça desprotegida e um chute no tórax.
-Porque, cara? Porque? Porque?- lacrimejava Geraldo, em meio à aplicação dos golpes.
-O que? O que?
-Porque você comeu a minha mulher, caralho!- Berrou Geraldo, e, do outro lado da rua, uma senhora abriu a cortina, olhou aquela estranha cena, e, meneando a cabeça, desapontada, voltou à dormir.
-Gê, Gê, Gê- disse Soares, usando o por ele raramente usado apelido- por favor, tenha piedade! Olha como eu estou. Estou pior que viúva de muçulmano. Podemos resolver isso como cavalheiros?
Geraldo o encarou, em silêncio, por alguns segundos. Ainda sem dizer nada, ele o estendeu a mão.


*****


-Vamos passar na minha casa. Eu te empresto algumas roupas, você toma um banho, nós comemos algo e então vamos conversar sobre tudo. Como cavalheiros.
Soares, no banco de trás do Corvette Stingray de Geraldo(modelo 1966), mal estava prestando atenção no que ele dizia. Estava mais interessado no mundo ao redor. Passando diante dele, estava uma casa de fachada branca, janelas de moldura azul colonial, e um vasto jardim. Era a portentosa mansão da família Guaracy.
-É claro! Nós estamos no bairro da Graça!- exclama Soares, feliz por ter feito uma dedução.
-Parabéns, Sherlock- diz Geraldo, seco cortando o seu barato.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 23

Capítulo 16


Dentro da casa, não demorou muito até homens tão mal-encarados como aqueles que haviam me ameaçado do lado de fora tirarem nossas armas. Depois disso, fui conduzido através de um corredor- iluminado por um pequeno vitral alaranjado, que captava a luz solar já alaranjada lá fora e dava à madeira uma mortiça tonalidade de chamas vivas- em direção à uma pequena sala. Nessa pequena sala, havia um pequeno homem, sentado em uma pequena e pouco fornida cama.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele me mandou entrar.
-Sente-se- Ele disse em um inglês perfeito.
-Você fala inglês?
-Eu gerencio nossos prisioneiros de guerra. Tenho que falar.
-Então sou um prisioneiro de guerra agora, correto?
-Até certo ponto, é sim. Mas sinceramente, estamos confusos.
-E porque, devo perguntar, “vocês” estão confusos?
Eu não tinha medo do homem, mas mesmo assim sabia que estava forçando a barra um pouco. Esses caras não costumam gostar de pensamento independente ou respostas espertas- pelo menos, acho que o comportamento de militares e para-militares não deve variar muito de país à país.
Ele era um homem baixinho. Como os outros, usava uma camisa dentro da qual suava profusamente. Sua pele tinha uma tonalidade escura, da genética como do trabalho ao sol, e seu bigode e cabelo eram grossos, oleosos e negros, sua pele, castigada e irregular, estava coberta de gotículas de suor, que pareciam esperar autorização sua para escorrer. Ele sorria.
-Nós não entendemos o que um grupo de soldados tão pequeno está fazendo fora do destacamento principal do Exército.
-Eles estavam todos em Santa Ítaca. Você matou eles, não lembra?
O sorriso desapareceu do rosto do homem, e um pesar pareceu tomar conta de seus olhos.
-As coisas saíram um pouco de controle. Mas é uma guerra. Para que certos objetivos sejam atingidos sacrifícios devem ser feitos.
Ele está com pena dos soldados? Possível, mas improvável. Não. É outra coisa.
-Suponho então que você e seu grupo escaparam de nosso ataque- disse ao homem, fazendo
um sinal para a porta. O vidro do quarto, também alaranjado, dava ao seu rosto uma qualidade ligeiramente sombria e enigmática.
-Sim. Mas não sou mais parte do Exército. Vocês estão mexendo com o grupo errado.
O homem solta uma risada surda.
-E você quer que eu acredite em você? O que te faz acreditar que eu posso te liberar só porque você é um desertor? Sabe quantos “desertores” eu já capturei? Tente enganar alguém menos experiente.
-Não somos só desertores. Somos desertores missionários.
-Ah é? E qual é essa suposta missão?
-Ajudar as pessoas da cidade que você destruiu.
Aquilo, novamente, pareceu afetar alguma parte no interior dele. É isso! Dano colateral é o seu medo. A morte de inocentes.
Completo rapidamente a frase:
-Estamos aqui para recuperar um de seus prisioneiros. Um homem. Sua mulher se chama Dona Pepé.
Pepé. As palavras fluíram para fora de minha boca enquanto meus lábios se tocavam duas vezes. À cada um dos toques, algo dentro dele se contorceu, se retorceu, se distorceu e estalou. Algo havia mudado.
-Pepé?- ele disse, com um abalo que cheirava estranhamente à esperança.
-Sim.
-Minha mulher.
-Sim, espera, o que?!
-Pepé... Penélope é minha mulher. Eu não a vejo há meses. Como ela está?
-Vo... Vo...
-É a guerra, meu amigo. Sacrifícios tem de ser feitos.
-Você não é um prisioneiro?
-Longe disso. Eu estou liderando a ofensiva. Bom, essa frente, em todo caso.
Eu deixei aquelas palavras se assentarem por alguns segundos. Pensei também em fazer algum comentário ou dois; Tentar descobrir exatamente que ofensiva, e de que frente ele estava falando.
-O que exatamente você está fazendo aqui, longe da sua família?- perguntei, ao invés disso.
O homem suspirou.
A minha família...a família- ele corrigiu- nem sempre aceita os sacrifícios necessários em uma época especial como essa. Por algum motivo, é mais fácil aceitar que somos forçados à fazer algo do que admitir que certas coisas ocorrem por decisão nossa.
Dizendo aquelas palavras, ele relaxou as costas até então impecavelmente eretas, e olhou para a janela do quarto, fazendo com que a luz batesse em seu rosto.
-Então você fingiu ter sido capturado pela guerrilha sendo que na verdade estava nela voluntariamente? Porque isso é bizarro.
Aquilo o irritou e ele olhou nos meus olhos.
-Essa conversa acabou. Os guardas irão escoltar você para fora do aparelho.
Os guardas apareceram na porta, olhando com certa severidade e impaciência. O homem fez um sinal com o braço, e eles vieram me puxando para fora da saleta.
-Soldado- eu ouvi o homem dizer, conforme o quarto ficava para trás.
-Sim.
-Diga para Pepé...
Ele hesitou.
-Sim.
-Diga à ela... Que eu estou morto.
E com essas palavras, eu me despedi do complexo, enquanto a luz alaranjada da janela dava lugar ao pálido crepúsculo azul do sertão.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 22

Capítulo 15





Estava morto de cansaço.
Soares foi dormir suado e acordou suado.
O lençol aderira à seu corpo e ele precisou de alguns segundos para se desvencilhar dele. Precisava urinar.
Foi andando à passos pesados. Apesar do sono, sentia-se vivo como não se sentia há muito tempo. Do lado de fora do quarto, a noite escura ficava mais e mais azul, depois mais e mais branca, dando lugar ao amanhecer.
Encontrou uma porta, que parecia ser a do banheiro. Quando estava pronto para abaixar as calças- não, pêra, ele não estava usando calças- ele viu que ao invés de uma pia, de um chuveiro elétrico, de uma privada e quem sabe de um bidê, um sabonetinho e talvez um copo com escovas de dente, lá estava jogado no chão uma pilha de roupas.
Soares se abaixou para olhar mais de perto; não era qualquer roupa. Eram calças pretas, botas pretas afiveladas e capas; vestidos azul-claros com uma abertura que indicavam que na verdade eram capas, do lado de calças da mesma cor.
O uniforme da milícia de Jesus.
-O que está fazendo?
Soares, agachado, se virou. Atrás dele, nua em frente à porta aberta, a luz da madrugada chegando ao fim a transformando em um negativo cercado de azul; Rosa e Azul, suas curvas ultrapassando os contornos do negativo e se banhando na leve luz enquanto a sua prodigiosa bunda ia de um lado para o outro, seus braços encostados na moldura da porta em meio ao calor noturno tropical, ou matutino sub-tropical, não importa.
Soares ficou sem responder nada por um instante. Rosa o deu algo para dizer:
-Porque você não volta para a cama? Ainda não amanheceu.
-Nada, eu...
-Anda, essas são coisas pessoais. Gostaria que você evitasse mexer nas minhas coisas da próxima vez- ela disse, visivelmente incomodada.
Soares obedeceu.


*****


Sol matutino. Soares adorava aquela parte do dia; sentiu o vento suave da manhã ainda não sufocante do sol, o canto dos pássaros, o início ainda preguiçoso de atividade nas ruas. Estava louco para se levantar e olhou para a janela.
Algo parecia prender os seus braços. Tentou se mexer de novo. Não conseguia. Estranho, pensou.
Abriu os olhos. Boca curva, cabelos negros, olhar 43. Rosa estava sobre ele.
-Bom dia- ela disse. -Espião.
-Pera, que? -disse Soares, e então ele viu objetos em volta de seu braço : pareciam correias. Estavam conectadas às outras, nas suas pernas, abdômen e pescoço.
Que... Que porra é essa? -ele diz.
-É uma pena que você descobriu o meu plano. Eu estava até gostando de você. Eu estava esperando essa noite já faz um tempo- diz ela, de joelhos sobre a cama.
Rápido, Soares. Pense, pense.
-Aqueles uniformes lá... Eles tem algo à ver com o seu plano?
Rosa riu.
-Nossa. Você é pior até do que eu pensava.
Soares engoliu em seco.
-É verdade. Eu sou mesmo o pior detetive dessa cidade. Quiçá do mundo. Mas tem uma coisa que eu não sou, e essa coisa é um espião.
Rosa se levantou da cama e, com poucos passos de bailarina, transmitindo elegância apesar de tudo, abriu uma gaveta da mesa-de-cabeceira branca ao lado de Soares. A arma que tinha lá dentro era pequena e discreta.
Uma Browning. Soares sempre achara que a pequena argola que pendia do cabo dava àquela arma um certo charme feminino.
-Espião ou não, temos aqui um fato: você agora sabe do plano, e por isso precisa ser eliminado. Além disso, eu só posso manter você aqui até o papai acordar.
Droga. Ela... Sabia que isso ia ocorrer. Ela sabia que ia ter que me matar. Porra, Soares, você foi enganado.
-Diga Adeus -ela disse, apontando a arma para a cabeça de Soares.
-Pera aí!
-O que agora?
-Vai atirar em mim na sua cama? Isso vai estragar o travesseiro inteiro. Vai ficar tudo manchado de sangue. Você não quer isso, quer?
Ela hesitou, e finalmente abaixou o revólver.
-É... Não.
-Ótimo, então vamos arranjar outra maneira de fazer isso- disse Soares, suando frio, exibindo o sorriso mais falso de sua vida.
-Tive uma idéia! Vá para a janela! -ela disse, levantando a arma de novo.
Soares tentou se levantar, mas apenas rolou para o canto da cama. Lá, tentou pôr os pés no chão, mas tudo o que conseguiu foi tropeçar feio na própria perna e dar de cara com o carpete fofo, mas ainda assim doloroso. Rosa desatou à rir.
-Vamos, fique contra a janela. O sangue vai cair lá no quintal.
Soares rastejou pelo carpete cheirando à mofo, ás vezes não conseguindo ficar nem de quatro. Rosa pôs então um pé sobre a sua cabeça. Apesar da dor, da humilhação e do risco de vida, Soares estava achando tudo aquilo muito erótico.
*Toc Toc*
De repente, batidas na porta. Com algum esforço, Soares olha para cima e vê que Rosa mudou completamente; sobrancelhas arqueadas, olhos arregalados, boca cortada- ela está com medo.
Ela segura Soares pelo cabelo, sempre apontando a arma para ele, e sussurra em seu ouvido:
-Entre agora nesse armário.
Ela abre um pequeno closet de veneziana coberto por um pôster dos Beatles, e o joga lá dentro sem muita cerimônia. É um armário apertado, como daqueles onde se guarda gravatas. Soares mal cabia lá dentro, mesmo de cócoras; porém, a veneziana permitia que ele visse o que estava se passando lá fora.
Ele viu, em raios de luz entrecortados por madeira mas que ainda permitiam ver o mundo em silhuetas, Rosa correndo de um lado para o outro do quarto, sua bunda em uma dança frenética esquerda direita esquerda direita enquanto seu corpo brilhoso, suado e cheio de preocupação vai pelo quarto à procura de uma roupa. Ela some por alguns segundos, e
reaparece debaixo de um vestido branco, talvez mais adequado á uma freira do que à mulher que o segurara pelo cacete na noite anterior. Ela pigarreou por mais dois instantes, até lembrar da arma que tinha na mão, que então, se abaixando, jogou debaixo da cama.
Foi até a porta e a abriu.
-Qual o motivo da demora? -disse um homem entrando.
-Hum, e qual o motivo da visita? -diz Rosa, tentando provocar. O homem ri.
-Mas sério, porque demorou?- ele repetiu, sério.
-Nada, eu... Só queria ficar bonita pra você- ela respondeu sem muito convencimento, torcendo a boca.
O homem era negro, careca e usava um sobretudo escuro, muito mais elegante e bem-cuidado que o de Soares. Sua aparência era estranhamente familiar.
Ele agarrou Rosa pelos braços e a virou contra o armário. Entre um beijo e outro, Soares conseguiu ter um vislumbre de seu rosto. Ele esfregou os olhos, sem conseguir acreditar no que via.
Era Geraldo Ary.


*****


Jana era quente e suave contra os seus braços. Ele podia também sentir que havia algo diferente nela- estava mais solta, mais à vontade. Pena que ela resolveu me receber nessa maldita roupa de freira, pensou Geraldo. Bom, eu provavelmente consigo pensar em algum jogo com isso.
Foi quando apoiou seu braço contra o armário que sentiu algo estranho. Um leve chute. Jana parecia ter percebido também; logo após o chute, tentou empurrá-lo para longe do armário. Apertou-o e beijou-o com força, torcendo seu pescoço. Não foi o suficiente para mantê-lo longe, porém, e ele sentiu outro chute. Ela não era forte o suficiente para mantê-lo afastado; pelo menos, fingia não sê-lo.
Geraldo partiu seus lábios por um momento, e disse então:
-Rosa, eu quero saber o que tem nesse armário.


*****


Aquela era uma situação que Soares tinha que aproveitar.
Geraldo Ary, no mesmo quarto que ele! Ele sem dúvida entenderia o seu ponto de vista. E o que ela poderia fazer, afinal?
Assim, se contorceu dentro do armário. Com muito esforço, passou o braço debaixo da bunda, e então pelas pernas, para que eles ficassem à sua frente. Ajeitou as pernas e deu um chute de leve na porta. Não surtiu efeito.
Esperou um pouco e deu outro chute. Dessa vez, ouviu a voz de Geraldo dizer: “Rosa, eu quero saber o que tem nesse armário.”
Interpretou aquilo como um bom sinal, dando mais um chute, enquanto o diálogo lá fora continuava.
-Gê, não tem nada lá dentro. É só a sua imaginação fértil e paranóica de detetive.
-Jana, eu juro que...
*POC*
-Olha! Olha aí de novo! ...Jana, o que você está escondendo de mim?!
-Jana? Porra, até o nome ela omitiu?
-...Jana, o seu armário ta falando.


*****


Do lado de dentro, Soares pôde ver que Rosa/Jana estava com uma tremenda cara de cu. À qualquer momento, aquilo podia ficar feio. Estava na hora de sair.


*****


Geraldo estava quase certo de que Jana estava lhe escondendo alguma coisa, só não sabia o quê. Mas nem ele estava preparado para o que ia acontecer em seguida.
A ponta do armário se rompeu, se separando da parede, e caiu em cima de Jana, que desabou sobre a cama.
De dentro, pulou um homem. Não era qualquer homem. Era um homem pelado, coberto de arapucas de couro. E não era qualquer homem pelado, coberto de arapucas. Era o Detetive
Soares.
-Soares?!- exclamou Geraldo.
-À seu dispor- disse Soares, correndo pelo quarto.
O que fazer agora? Ele não sabia exatamente. Não sabia se alguma porta estava aberta, mas ficar parado seria suicídio.
Enquanto pensava, tropeçou feio e beijou o carpete de novo. Ao se levantar, ouviu um tiro.
-Esse maníaco- berrou Rosa/Jana- entrou no meu quarto e tentou me estuprar!
Virando a cabeça de relance, Soares pode vê-la chorando, com uma arma na mão. Corada. Enfurecida. Hipócrita.
Soares não esperou para ver a reação de Geraldo. Não podia se dar esse luxo. Olhou para o lado. Jana não era uma atiradora boa; errara o alvo à um metro de distância e detonara a janela.
...a janela...
A janela. Boa, Major.
Sem pensar duas vezes, Soares deu o maior salto de sua vida e se atirou pela janela.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 21

Capítulo 30




Camilla cutucou novamente os olhos enquanto bocejava, limpando dos seus olhos a remela da noite anterior e esfregando para fora de si o sono. A noite, ontem, fora longa; pouco depois de decidir que ligaria para D’Este, o telefone tocou, como que por mágica. Do outro lado da linha, no entanto, escutou não a voz de D’Este e sim a de Henrique. Usando meias-palavras e se desculpando por ser incômodo, convidou-a para jantar em um bar que, segundo ele soube, servia excelentes frutos do mar. Quando Camilla indagou-o a respeito de porque ele subitamente decidira chamá-la para sair após uma mudez prolongada e sequer um “oi”, Henrique emudeceu do outro lado da linha e, desconfortável, murmurou algo sobre assuntos não-resolvidos. Dando a ele uma colher de chá, Camilla apareceu em um deslumbrante vestido azul e um cachecol comprado na Rússia, completamente supérfluo no clima quente e úmido de Dezembro. Foi quando viu Anastácio Amásio, amigo de infância e advogado de Henrique, que o verdadeiro mote daquele jantar se revelou.
Dividiram salmão das corredeiras da Noruega, além de algumas ovas de peixe do Mar Negro, servidos sobre torradas brancas retangulares.
Amásio comeu silenciosamente em seu canto, parando de vez em quando para limpar a boca com o guardanapo com uma leveza que levava Camilla a se perguntar se aquilo realmente funcionava ou se ele inventara uma nova e curiosa maneira de passar o tempo.
A trilha sonora era de jazz instrumental; a conversa, animada. Ricardo, o namorado e pomo da discórdia, manteve-se cordial em todos os momentos; sorriu, falou pouco para não dizer besteiras, fez os comentários certos nas horas certas, evitou falar de relacionamentos. Camilla quase sentiu pena daquele homem inocente e sorridente, tragado até o centro daquela guerra baixa e desnecessária – e então lembrou que ele era a causa daquela discórdia, e a pena passou. No entanto, não sentia mais raiva daquele homem. Algumas pessoas, por piores que sejam no que fazem dissimuladamente, são boas demais em público para que possamos ter algo contra elas.
A noite começou fria, quando Camilla não apertou a mão de Henrique, e, resignado, ele se sentou em uma cadeira que rangia. Tentou ajustar-se nela. O ranger não passou.
Progressivamente, porém, o ambiente se acalmou. Trocaram piadas, muitas delas internas;
lembraram dos bons momentos. Mas aí Amásio abriu a boca. Falou algo sobre estar tarde e sobre os problemas que deveriam ser resolvidos, sempre limpando a boca com aquele gesto cuidadoso. A partir daí, a conversa ficou mais pragmática e o salmão perdeu seu sabor. Definiram quem ficaria com o apartamento na Avenida Marighella(ele), quem ficaria com a casa de praia no Ceará(ele), quem ficaria com o piano de cauda para a prática de piano, nunca usado(ela).
Definiram pensões, danos morais. Não precisaram definir a guarda das crianças, pois criança não havia.
A noite terminou como não havia começado: num cordial aperto de mãos. Camilla pegou o metrô de volta para casa enquanto os três cavalheiros fumavam fora do restaurante; Henrique teve a gentileza de pagar a conta. Uma coisa Anastácio Amásio acertara: era tarde, e a ansiedade que ela escondera tão bem ao longo da noite lhe valeu apenas 5 horas de sono. Pelo olhar que ele adquirira nos últimos dias, ela podia ver que Rafael estava de olho em seu emprego. Era hora de se manter vigilante, pensou, embora soubesse que, lá no fundo, nada disso importava mais.
Sem aviso, D’Este entrou pela porta. O dia nublado lá fora, o primeiro em muito tempo, emprestava à tudo uma qualidade azul soturna. Com quase 2 metros de altura, D’Este lembrava, nesse ambiente crepuscular, o gigante de um conto-de-fadas.
-Bom dia, camarada D’Este – cumprimentou cordialmente Camilla, competentemente encobrindo seu cansaço.
-Bom dia, camarada – ele respondeu laconicamente, e se sentou na cadeira á frente dela.
-Vim aqui fazer umas perguntas sobre o seu livro – disse, e logo se corrigiu mentalmente, já que era ele quem viera; ela meramente o chamara.
-Pensei que tivesse sido rejeitado? – ele murmurou com candor.
-E foi, mas sabe o que dizem, não? Nunca diga nunca,
-Estou confuso.
-Entenda que isso é um encontro extra-oficial. O motivo de você estar aqui é que certas páginas de seu manuscrito me intrigam.
D’Este se reclinou na sua cadeira, cruzando as pernas, e um novo sorriso atravessou seu rosto abaixo do bigode fino.
-Pois bem, Camarada – disse Camilla, colocando o dedo sobre o título garrafal do livro,
enquanto um raio caía do lado de fora – Preciso saber o quanto disso é verdade.
-Como assim?
-Esse Major Soares, por exemplo. Trata-se apenas de um veículo anódino, um narrador para sua história, ou... um personagem que realmente vivenciou o que você conta?
D’Este se reclina mais uma vez, e olha para o teto. – Algo me diz que já tivemos essa conversa. – diz.
-Sem gracinhas, por favor, Camarada – falou Camilla com rispidez – descarte por um segundo suas considerações metafísicas e me diga se existiu mesmo um Major Soares.
-Ele não poderia ter existido? Sua história é tão implausível assim?
Camilla repousa sua testa sobre o dedo indicador esticado, e então pôs-se a massagear suas têmporas. – É realmente notável sua incapacidade de me dar uma resposta clara, curta e concisa. A realidade física. Soares existiu em algum momento nela? Ou melhor... você conheceu Major Soares?
-Claro que o conheci – disse D’Este, com franqueza.
Os olhos de Camilla brilharam de esperança.
-Afinal eu estava vivo em Salvador naquela época. Havia detetives por toda parte. Eu conheci vários deles, conversei com eles, até fiquei amigo de um. Soares pode não ser um detetive de carne e osso, mas milhares de detetives vivem nele ao mesmo tempo. Ele é todos e nenhum ao mesmo tempo, e nesse sentido, é tão plausível e tão real quanto qualquer detetive poderia ser.
Camilla suspirou com desalento.
-Eu desisto. Camarada, é impossível arrancar qualquer resposta que seja sobre você Está dispensado.
-Pelo menos foi curto – disse D’Este, botando sobre a cabeça o chapéu de feltro que ficara passando de uma mão para a outra.
-Só uma coisa – disse Camilla.
-Pois não – respondeu D’Este, virando praticamente em uma pirueta.
Camilla abriu o manuscrito e, levando seus dedos pela suave superfície das páginas, foi passando-as em velocidade – páginas brancas revoando em um ambiente azul – até chegar á última.
Nela, estava escrito, bem no meio:

ESTÁ TERMINADO


Camilla pousou seu dedo indicador sobre aquelas palavras.
-Agora, me explique. Dados os eventos do final do livro, e a promessa que Soares faz no último capítulo, essa frase tem uma conotação possível. Ela quer dizer que Soares cumpriu a sua missão e está morto.
D’Este levantou-se de sua cadeira e começou à andar em direção à porta, sem dizer nada.
-Eu preciso saber – Camilla disse, de uma voz rouca – ele está vivo ou morto?
D’Este se virou e disse, com um semblante calmo:
-Morreu, morrendo, morrerá. A cronologia dos eventos, o próprio tempo é irrelevante aqui. Aquilo que foi posto em marcha não pode ser parado nem seu resultado modificado.
Camilla ainda estava pensando no significado daquela frase quando D’Este bateu a porta atrás de si.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 20

Capítulo 14


Nós continuamos subindo. E subindo. E subindo.
Afinal, por quanto tempo subimos?
Importa?
O topo se assemelhava ao horizonte, um horizonte curvo, uma terra côncava. Uma terra magra, esfomeada, com uma curvatura na barriga por falta de comida. O chão é ralo, magro, áspero. Sofrido. O ar é puro, mas é uma pureza massacrante, árida, ácida, pureza que inflama os pulmões e castiga friamente os olhos. A caatinga tem toda a sedutora e traiçoeira beleza de um escorpião. É uma meretriz que precisa dessa foda pra poder arranjar um prato de comida, desdentada, dissimulada, daquelas que fogem com o seu dinheiro mas ainda deixam você lá querendo mais como se você nem se importasse.
Brilhando sob o sol, os cáctus brancos, ou coisa que o valha, gritam como sinais na estrada de terra do infinito, com um destino só. O meu prêmio, digo, o prêmio de Penélope.
Quantas vezes o sol se levantou? Quantas vezes pousou? Quantos caminhos fez e refez enquanto caminhávamos? Quantas eras se passaram, quantas geleiras derreteram, quantos continentes cresceram e morreram?
-Ah, olha, uma casa.
As palavras caíram da boca seca de um Wright velho, doído, abatido.
De fato, era uma casa lá longe, que se erguia com toda a imponência permitida por seu teto pontiagudo, que, conforme nos aproximávamos, parecia emergir das areias vermelhas onde repousava o indolente sol do fim de tarde.
Era uma casa muito engraçada. Tinha uma casa no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma casa.
Era mais longa que profunda ou elevada, como um romance russo ruim. Era toda feita de madeira.
Dei alguns tiros, de aviso, e porque gosto do som que a bala faz contra as pedras.
Tá, foco, foco. Essa área provavelmente está infestada de comunistas. Ouço alguns gritos. Olho para o lado e é Shorty berrando comigo, provavelmente porque estraguei nossa posição. Meu argumento contra ele é: foda-se, eu sou seu superior e eu que dou as cartas aqui, porra. Se eu quero estragar nossa posição, eu estrago.
Ok, foco, foco, fuck! Pela segunda vez. Foco. Onde eu estava? Ah, sim. Essa área toda provavelmente está infestada de comunistas. Carretéis espalhados. Ok. Servem como posições de cobertura.
Wright grita alguma coisa. Shorty dispara; eu também. Algumas cabeçinhas se levantam dos carretéis. Sabia! Murmuro para mim mesmo, e Wright pelo visto tem telepatia, já que ele sorri.
Corro para um carretel. Chuto. Dois cuca rachas ficam descobertos, tentam correr para trás enquanto seus amigos os cobrem com um saraivada. A sorte é que miram mal, e eu consigo abater os dois comunas em fuga. Wright e Shorty se escondem atrás do carretel virado. Eu também. Mas, à bem pensar, é muito pequeno para nós. Vamos ficar com problemas bem rápido.
Talvez pensando nisso, Shorty começa à rolar o carretel. Eu lembro de Shorty no começo. Você acharia que, por ele ser um hippie, ele entraria no Exército exalando rebeldia e tocando o terror. Balela. Exatamente o oposto. Foi o recruta mais disciplinado que eu já tive. Talvez porque quisesse fugir do estereótipo de hippie desordeiro e, quem sabe, aprender algo com o inimigo, ele tenha se adaptado, e se adaptou bem demais, na verdade. Era sempre o mais animado e o único que sabia o hino nacional de cor.
-Oh say, can you see- ele esbravejou, enquanto chutava o carretel, que rolou em direção à um outro e o derrubou.
Mais dois comunistas descobertos. Saímos atirando enquanto Wright nos cobre as costas. Eu tenho a impressão que vejo a cabeça de um cara explodir.
Tomamos o carretel e uma pilha de caixas. Agora o plano de Wright aparece em toda a sua glória. Quando tomamos aquela posição, deixamos de estar na frente dos comunistas para estar atrás deles. Todas as suas posições estão visíveis, eles estão desprotegidos, e nós temos o elemento surpresa. Eu e Shorty trocamos olhares. Sabemos o que fazer.
É hora da matança.


*****


A limpeza é rápida e fácil. É como se tivéssemos três garrafas jumbo de alvejante. Porra.
Estamos lá, acalmados pela visão reconfortante de uma dúzia de corpos comunistas e cuca
rachas atrás de seus carretéis sem linha.
Estamos embevecidos por aquela visão, o sangue quase evaporando antes de tocar o chão, sumindo do mundo ao tocar a areia, deixando apenas sua cor como lembrança de sua existência.
Havíamos vencido? Senti uma mão no meu ombro. Wright. Seu rosto me dizia para olhar para trás, e que o que eu veria não seria bonito.
‘Merda’, eu disse, em voz alta. Ele estava certo. Do alto da varanda da casa, cinco, seis, não, sete canos nos observavam, manuseados por cinco homens bigodudos e mal-encarados, suados, em roupas de vaqueiro.
Uma porta se abriu e um outro homem saiu, mais baixo, mais calvo, mais confiante da vitória. Eu não sei o que o tornava mais confiante, dado que ele estava usando a mesma roupa de vaqueiro tosca dos outros.
Ele disse algumas poucas palavras, e Shorty se preparou para traduzi-las para mim, mas não precisei. Sua mão estava erguida e seus quatro dedos estavam colados um ao outro, indo para frente e para trás. Conforme o homem andava para dentro, desaparecendo do sol inclemente para a escuridão opaca e sufocante da casa, nós três nos aproximávamos para adentrá-la.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 19

Capítulo 13


Capturado! Soares não podia acreditar naquela infâmia. Pego sem roupas em uma pousada de quinta categoria, em plena madrugada.
-É... Seu Ermeval?- perguntou um dos homens, que Soares podia pressentir ao seu redor mesmo com o saco na cabeça, não menos porque eles ainda estavam segurando-o pelos braços.
-Pois não?- Respondeu uma voz que Soares de fato reconheceu como a de Seu Ermeval, não menos porque seu nome tinha sido dito logo antes.
-Você não teria como nos dar algo para... Sabe... Cobrir o negócio dele? Não manda uma mensagem legal.
-Besteira- disse uma outra voz, que Soares reconheceu como sendo de outro homem que o agarrava- Temos que trazer ele pelado mesmo, para humilha-lo diante de nosso grupo como o traidor sujo que é.
-É, mas... Dois homens com um homem nu? Que tipo de mensagem isso manda sobre nós? Vai parecer que nós somos algum desses malditos sodomitas.
-Ora, tolice! Ninguém vai fazer esse tipo de suposição! Nós somos os guerreiros de Cristo!
-O que será que as escrituras dizem à respeito disso?
-Meu pai, vocês são malucos- disse uma voz que Soares reconheceu como sendo a de Ermeval.
-Acho que deixei O Livro no carro- disse o outro, sem prestar atenção no comentário de Ermeval. A forma como dizia “O Livro” era cheia de respeito e solenidade. Um vento fraco fustigou os bagos de Soares, que se encolheu.
-Ai, saco, o carro, é verdade!
-O que houve?
-Não quero botar um cara pelado no meu carro, para que a bunda dele fique suando no meu estofamento!
-Não diga isso!
-O quê?
-...Você sabe.
-Ah, certo. Derrière.
-Se vocês estão preocupados com esse cara sujando seu carro, posso trazer uma roupa. Ele deixou tudo no quarto- disse Ermeval.
-Ah, por favor, faça isso, estou congelando!- Soares deixou escapar. Pôde sentir o abafado clima de estranhamento ao seu redor e imediatamente se arrependeu. Sentiu uma violenta dor no saco.
Nem precisou recuperar a abalada capacidade de dedução para saber que tinha sido acertado com um taco.
-Nós por acaso pedimos a sua opinião, mundano?- berrou uma das vozes.
-Mas, traga alguma roupa sim, fiel. Estou cansado de olhar para esse mundano.
Soares sentiu algo familiar sendo posto em suas costas, cobrindo seu corpo. Meu sobretudo. Soares sentia falta dele, mesmo após poucas horas. Rapidamente deixa de sentir frio e seus pêlos deixam de ficar eriçados.
-Vamos levá-lo para a base, daí checamos as escrituras sobre o que deveríamos ter feito, e pensamos nos nossos erros, se erro houver.
-Feito.
-Espera, espera. Não estão esquecendo alguma coisa?- disse Ermeval.
Mais silêncio.
-Ah- respondeu uma das vozes.
-Pegue a gasolina- disse a outra.
Em poucos segundos, Soares ouviu estalos cada vez mais fortes. Uma baforada de ar quente encheu-lhe o rosto e a temperatura ao redor aumentou muito.
Subitamente, uma explosão.
-A concorrência não será mais um problema, Senhor Ermeval- Soares ouviu.
-Deus seja louvado- ele respondeu.
-Agora vamos.
Soares agora estava sendo conduzido enquanto sentia o incêndio se alastrando ao seu redor.
Um chute na bunda, e Soares caiu, vendo-se em território novo.
Macio. Estreito. Barulho de motor.
Carro, sem dúvida.
As portas se fecharam.
-Ufa. Que belo dia de trabalho, não é?
-Sim. Jesus de fato esteve do nosso lado hoje.
-Deus seja louvado.
-Amém.
-Você mal pode esperar, mundano- disse uma das vozes, claramente dirigindo-se à Soares, que virara “o mundano” por algum motivo.
-Vamos levar você lá pro Padre Brandão. Líder do nosso movimento, guardião da cruz, Santo guerreiro!
-Ei, não blasfeme!
-Certo. Deus seja louvado.
-Amém.
-Amém. Mas sério, o padre vai acabar com a sua raça. Daí você vai nos contar tudo sobre seus amigos comunistas. Mas primeiro, vamos nos divertir muito com você.
-Hehe, vamos sim. Já faz um tempo que não nos divertimos. Aleluia!
-Deus seja louvado!
-Am... Hein?
A rodada de louvores foi interrompida por um novo barulho ensurdecedor. O carro primeiro deu uma leve chacoalhada, para então saltar nos ares, atirando Soares ao teto enquanto a gravidade desaparecia. Foi atirado então para a frente, que ele descobriu ser abaixo, descobrindo também o couro duro do banco da frente enquanto seus captores gritavam. Finalmente, caiu no teto.
Soares estava de cabeça para baixo. Ao que tudo indicava, o carro também. Seus captores pareciam estar mortos, mas foi então que ouviu:
-Ai, meu Deus, que dor... Irmão? Irmão, se mexa! Se mexe, caralho, se mexe! Ajuda... Ajuda, por favor! TEM GENTE FERIDA AQUI!
De súbito, crescendo quase imperceptivelmente, roçando até o carro, e rastejando à passos largos, Soares sentiu uma nova presença. Ela andava com passos leves, chegava sorrateiramente e agora estava na janela. O homem do banco da frente continuava ofegante e beirando o desespero.
-Socorro! Por favor, tem gente ferida aqui!
-Agora não tem mais- respondeu a voz, com felinez gelada.
Soares ouviu um tiro.
Provou uma leve umidade no saco que estava em sua cabeça. Gosto de ferro. Os gritos haviam parado.
Foi aí que Soares percebeu que poderia morder o saco e rasgar o papel tosco e áspero com os dentes, mas a intuição lhe dizia que, no momento, essa não era a melhor idéia.
-Mais um dia, mais um dólar- disse uma voz que vinha de fora do carro.
-Pára de usar essa expressão- disse outra voz, mais grossa, mais irritada.
-Pessoal, pessoal, vamos embora, daqui à pouco as autoridades estão aqui.
-Não tem mais nada no carro?
-Tem sim- disse a primeira voz, e Soares foi cegado por uma luz.
-Um prisioneiro! Ajudem-me à tirar ele daqui, companheiros.
Soares sentiu uma mão em seu sobretudo. Pequena, mas tenaz, quente contra seu peito.
-Espera, espera!- disse uma das vozes do lado de fora- Já passamos por isso antes. E se isso for uma cilada?
-Não temos tempo para essas coisas- disse a pessoa que o segurava- Vamos botar ele na garupa e ir embora antes que os tiras apareçam por aqui. Vamos, me ajudem aqui.


*****


Antes que percebesse, Soares estava em movimento.
O grupo o retirara de dentro do carro, mas, para evitar o pior, ele permanecera em silêncio. O resultado disso foi que eles acharam que ele estava inconsciente.
Curioso para ver aonde o estavam levando, pouco à pouco devorou o saco de papel que estava na sua cabeça, casualmente mordendo os pedaços que sua boca podia alcançar e cuspindo-os fora não sem uma certa destreza que o deixava orgulhoso de si.
Quando finalmente conseguiu descobrir seus olhos, sentiu uma lufada de ar no rosto, o que o deixou sem ver, mas foi apenas temporário. Logo, ele descobriu que não estava em cima de uma moto, e sim em cima de uma bicicleta.
Seu captor aliás, não era um captor, e sim uma captora. Era uma mulher de cabelos negros descuidadamente cobertos por um tecido vagamente árabe. Usava um casaco- ou seria um pulôver? Existia, afinal, diferença? Olhando melhor, talvez seja uma jaqueta. É, uma jaqueta de couro, Soares pensou para si mesmo- uma jaqueta cobrindo os braços até o
ponto onde começavam suas luvas de couro.
O que tirava Soares do sério era saber se era mesmo um homem ou mulher. Aquela roupa não entregava muita coisa, e apesar do/a captor/a ter uma estrutura corporal diminuta que se encontrava mais facilmente entre as mulheres, isso não significava tanta coisa, e o mesmo podia ser dito do cabelo, já que a juventude daqueles tempos adotara o estranho hábito de deixar o cabelo crescer à um comprimento indecente, fosse para homens ou mulheres, o que, ligado também à tendência dessa juventude de usar o mesmo tipo de roupas largas e manchadas, dificultava o trabalho de reconhecer um do outro. Soares já entrara em uma situação muito desagradável por causa daquilo, e estava determinado à não repetir os seus erros.
Olhando um pouco ao redor, Soares tentou descobrir aonde estava. Tinha a impressão de que conhecia aquela rua, e a parede de pedra bruta mais à frente não permitia dúvidas: eles tinham ido mais para dentro da cidade ainda, e estavam perto da divisão entre a cidade alta e a cidade baixa. Talvez não muito longe do Elevador Lacerda. Cacete, pensou Soares. Eu posso estar perto da morte e nunca nem visitei o Elevador Lacerda. Bom, não que seja um grande ponto turístico mesmo.
As bicicletas foram parando. Estavam na frente de um bar- o João Sebastião Bar, mais especificamente, já fechado, o que não era surpreendente naquele horário, mesmo levando-se em conta a agitada vida noturna de Salvador.
Soares tomou um momento para prestar atenção nos ciclistas e ver se conseguia tirar alguma conclusão só olhando para eles. Era um grupo de uma dez pessoas, todas vestidas da mesma maneira, como se o casaco, o lenço árabe e as luvas e botas de couro fossem um uniforme. E, à menos que fosse uma coincidência, devia ser mesmo um uniforme. Isso tinha implicações muito claras- Soares estava lidando com um grupo de terror organizado.
Mais um.
Um dos encasacados saiu de sua bicicleta e andou em direção à porta de metal, puxando-a para cima. O que aquilo significava? Eles iam mesmo parar de fugir para tomar um drinque no bar? Se fosse verdade, os terroristas teriam decaído muito com o passar dos anos.
Ou não exatamente. O bar estava mal-iluminado, mas Soare podia ver que não havia muito mais cadeiras, nem engradados.
O/a captor/a se levantou da bicicleta. Sua calça apertada roçou contra o peito de Soares,
enquanto ele/ela levantava o/a perna/o para sair da/do veículo/a. Soares não sabia muito bem o que achar de tudo aquilo, e na verdade, estava começando a ficar irritado com toda/o a/o ambigüidade.
Ele/ela virou-se então e Soares pôde olhar em seus olhos. Ok, é uma mulher, pelo menos, pensou Soares aliviado. Dessa vez, adicionou tentativamente.
De fato os olhos não deixavam dúvida. A tez larga e as sobrancelhas marcadas e escuras eram contrabalanceadas pela negritude larga, profunda e convidativa dos olhos. Arqueadas, em surpresa, as sobrancelhas expandiram os olhos fazendo com que brilhassem ante a luz noturna.
Soares demorou para entender que isso significava que seu arremedo de disfarce fora descoberto.
-Ele está consciente! Viu tudo!- disse um dos enjaquetados.
-Caralho! Eu sabia! Um espião!- disse aquele que, aparentemente, o acusara de ser um espião.


*****


E mais uma vez, Soares encontrava-se com a cabeça coberta e o corpo despido frente à um grupo de estranhos. Estava começando à se sentir como um avestruz.
-Agora fale, camarada- bradou uma das vozes ao seu redor- o que você pretende fazer por aqui? Porque fingiu estar inconsciente?
-Eu já disse! Estava inconsciente, mas daí acordei!- mentiu Soares.
-Balela! Passeios de bicicleta te deixam mais cansado, e não mais ligado!
-Falando em ficar ligado, a gente bem que podia usar agora aquelas folhas boladas que ganhamos dos camaradas lá da Bolívia. To cansadão.
-Use a nossa terminologia. A expressão, Camarada Peres, é “questão de ordem.”
-Camarada, deixe de ser imbecil! Não precisamos do espião sabendo de nossos nomes!-disse uma terceira voz, dessa vez a única e inconfundível voz feminina.
-Certo. Desculpe, Camarada Ro...
Bronca inaudível.
-...Camarada.
Soares parou um tempo para pensar naquele nome. “Camarada Ro”. Seria apenas um nome código? Iniciais, como R.O? Uma referência ao primeiro-ministro do Vietnã recém-unificado, Ho Chi Minh? Ao Rock ‘n Roll? Só o tempo dirá.
As considerações de Soares foram interrompidas por uma colocação deveras justa.
-É, questão de ordem- disse uma outra voz- Estou cansado de ter que olhar para o pinto desse cara.
-Certo- respondeu a “Camarada Ro” -Todos em favor de arranjar uma roupa para o espião, levantem a mão.
Votação inaudível.
-Certo. A moção foi aprovada.
-Ai, chega- protestou finalmente Soares. Estou de saco cheio de ser caçado e capturado. Ainda sou relevante, porra! Um grande detetive! O grande Soares! E se eu tivesse um parceiro, seria uma dupla dinâmica!
-Perdão, espião?
Opa. Vamos lá, Soares, pense em algo inteligente para dizer.
-Por favor, tirem esse saco da minha cabeça- disse, não muito inteligentemente.
-E porque faríamos isso?- perguntou Camarada Ro.
-Porque eu não sou espião. Sou um detetive.
-Prove.
-Bom, ao que tudo indica vocês são um grupo de libertação de inspiração Marxista, e que tem uma rixa contra as milícias teocráticas. O uso de bicicletas indica que vocês preferem ataques rápidos e furtivos às grandes demonstrações de força, sem ao mesmo tempo querer atrair atenção, porque senão teriam escolhido motos. Vocês também fizeram sua base em um bar fechado, o que é criativo, ao contrário de todos os movimentos que tem sede em algum armazém abandonado no porto.
Boquiabertez inaudível. Mas logo Camarada Ro levantou a voz.
-Só isso? Até eu poderia deduzir isso.
-É, além do mais, não somos marxistas. Somos maoístas, seu tapado.- disse outro.
-Ok, ok, sou um detetive péssimo.- admitiu- E aproveitem esse momento, porque dói muito ao meu orgulho finalmente admitir isso.
-Achei uma toalha- disse a voz de alguém à quem todos muito provavelmente já
esqueceram.
-Mas, antes de me prenderem, me executarem, ou sei lá-
-Executar, com certeza. Preso você já está- disse o da toalha.
-Obrigado. Antes de me executarem, eu peço que, pelo menos, ouçam a minha história.
-Todos à favor de ouvir a história dele, levantem a mão- disse Camarada Ro, com a frieza usual, ainda que Soares pudesse sentir um leve toque de compaixão.
A votação inaudível, exceto por algumas pequenas riscadas no ar carregado do aparelho, se seguiu.
-Moção aprovada. Camarada, pegue as folhas para podermos mascar. Tenho a impressão de que essa história vai ser boa.

*****

-Uau, essa história foi... boa- disse Camarada Ro, permitindo que o escritor não gastasse seu precioso tempo resumindo as últimas cento e tantas páginas.
-E é tudo verdade.- disse Soares.
-Eu duvido- reagiu o da toalha, que desde então enrolara a toalha em Soares, perdendo assim tudo que pudesse distingui-lo dos outros.
-Eu concordo. Ele escapar de um incêndio e encontrar o seu amigo de infância transformado em um cafetão marxista? Ridículo.
-Eu não disse que era um cafetão, só que se vestia como um!- disse Soares, com dificuldade. Sua voz estava rouca e ele podia sentir uma leve ferida no fundo da garganta. Tinha falado durante mais de uma hora.
-Sem falar nessa história que você é o Açougueiro da Tijuca. Todos sabem que o Açougueiro da Tijuca era careca e tinha ascendência japonesa.
-Sejamos razoáveis, camaradas- disse Camarada Ro- vocês acham mesmo que ele inventaria toda essa história aqui e agora?
-Claro que não! Ele decorou ela antes com ajuda de seus mestres da Milícia de Jesus!- disse o da toalha. Soares estva começando a realmente odiar aquele cara.
-Então o que ele estava fazendo naquele carro, capturado por eles, pelado e com um saco na cabeça?
-Ora, Camarada, é óbvio que eles arquitetaram isso para que a história dele parecesse mais verídica!
-Corriga-me se estiver errada, Camarada, mas você entrou no nosso grupo em circunstâncias semelhantes.
Silêncio. O toalhudo engoliu em seco.
-Mas... É diferente!
-Certo, certo.- interviu uma voz, ainda desconhecida por Soares.- A questão é: se integrarmos ele ao grupo, como garantimos que ele não é uma ameaça? Que não é um espião? Proponho uma votação para decidir isso.
-Isso é uma quebra de protocolo, Camarada.
-Que se dane o protocolo. Todos aqueles que forem contra a integração desse suposto detetive no grupo, levantem a mão.
Votação inaudível, porém Soares pôde identificar o resultado pelo que pareceu ser um suspiro de desilusão da Camarada Ro.
-Certo, certo. Sei reconhecer uma derrota quando vejo uma.
-Camarada, entenda, amanhã é a grande operação.
-Eu sei, eu sei.- ela pausou. Suspirou então mais uma vez, mas desta vez foi algo mais parecido com uma inspiração, um Eureka antes da palavra.
-Eu sei! Veja, posso leva-lo até lá em casa.
-...Você pirou, não é?
Até Soares estava achando aquilo meio estranho.
-Não, você não entende! Vou leva-lo vendado, assim ele não saberá onde está. Guardarei ele lá até que fique recuperado, e então o levarei de volta para a bicicleta de venda, e o deixarei em algum ponto da cidade. Assim, não temos que lidar com a possibilidade de ele nos trair, e lavamos as mãos do fato de ter abandonado um necessitado e potencial recruta.
Soares se sentia mal com tantas vozes falando ao seu redor de forma tão explícita.
-Bom, admito que isso acaba com todos os pontos negativos de se ter um hóspede maldito.
-Isso não é uma referência?
-Acho que não. Enfim, pode até ser. Mas cuidar dele não vai... Impedir você de se juntar à nós amanhã?
-Não, na pior das hipóteses eu prendo ele em um armário- a Camarada Ro riu, uma risada
inocente, quase infantil, acompanhada por outras. Soares não entendia direito o senso de humor.
-Droga, camarada. Você sabe que não sei dizer não à uma mulher.
-Você estava dizendo não à alguns segundos.
-Pois é, todas as máscaras caem depois de um tempo.
-Bom, vai lá.
Abraço inaudível. Beijo audível.
Cara, esses são mesmo os piores terroristas que eu já vi, pensou Soares, enquanto a Camarada Ro o conduzia pelo braço até o lado de fora.


*****


-Estamos chegando. Acho que você vai gostar de onde estamos indo.
-Então, aonde exatamente é esse lugar que eu vou gostar?
-Já disse. Minha casa. Nós vamos cuidar de você.
-Vamos? Quem mais?
-É o “nós” da Família Real.
Soares ainda se sentia pouco à vontade. Não conhecia aquela mulher, nem sabia o seu nome, com a exceção dos olhos não a tinha visto sequer uma vez e ela, na verdade, o tinha seqüestrado e estava realizando seqüestro 2- A missão naquele momento.
E ainda assim, ela insistia em falar com ele. Talvez estivesse entediada e precisasse conversar naquele longo trajeto de bicicleta.
-Então, que filme você gostou recentemente?
-Bom, não tenho ido muito ao cinema, sabe. Passei o dia de ontem sendo tomado como refém e ameaçado pelo meu melhor amigo, sendo capturado pela Milícia de Jesus e depois por vocês.- Soares estava ficando cansado daquelas perguntas bizarras.
-Bom, desculpe por aquilo, eu acho- disse ela, com certa timidez.
-Não precisa se desculpar. Eu estava no lugar errado na hora errada.- ele suspirou. -Pra variar.
-Bom, você de fato parece possuir uma predisposição ao azar. Se eu estivesse na sua situação, não sei o que eu faria.
-Na maior parte das vezes, eu também não sei o que estou fazendo. Acho que tudo o que eu faço, no fim das contas, é fugir de um destino que parece ter sido escrito pra mim sem o meu consentimento.
-Chegamos.
A bicicleta parou subitamente. Soares, ainda algemado e com um saco na cabeça, escorregou para a frente e encostou com o tronco inteiro nas costas da captora. Pensou ter ouvido um riso.
-Agora saia.- ela disse, inquisitiva.
-O que? Sair de onde, para onde?
-Ah é, esqueci que você estava cego. Anda, vamos lá.
Camarada Ro pegou em sua mão, e ele pôde sentir, passada a surpresa inicial, a suavidade daquela mão, inacostumada com o pesado trabalho braçal que Soares também não realizava.
Ela o conduziu por um caminho pedregoso e musguento. Clic-clac.
-Um segundo.- Soares sentiu os dedos de Camarada Ro percorrendo o seu cabelo e encontrando nó da venda que lhe haviam amarrado com tanta força. Ela novamente estava encostada em seu corpo.
-Voilá- ela completou, e Soares pôde ver.
Estava em uma casa que poderia laconicamente ser descrita como chique. As paredes eram de uma cal bastante simples e rugosa, mas estavam cobertas de quadros de antepassados que pareciam importantes. Sisudos administradores coloniais portugueses, crianças de uniforme militar ao lado de mucamas, algo desse nível. O chão era feito de um mármore bege tão polido que Soares podia ver seu reflexo com uma distinção que um espelho não permitiria(ele estava com uma cara horrível). Uma escadaria, também de mármore, começava em uma descida curta em um dos cantos, para então percorrer toda a extensão de uma das paredes, chegando à um mezanino, que ficava mais ou menos na mesma altura do enorme candelabro de cristal que pairava pesadamente sobre a cabeça de Soares.
-Bem-vindo à minha casa- disse Camarada Ro, subindo as escadas.
-Casa bem bonita.
-Obrigado.
Ela parou na curva da escada e se apoiou na parede. Um momento de silêncio
desconfortável se fez, enquanto Soares não sabia como reagir.
-Bom... Não vai subir?- ela disse, e Soares, olhando em seus olhos podia ver que ela estava fazendo aquilo que ele conhecia como ‘o biquinho’ debaixo do lenço que cobria metade de seu rosto. Ao que tudo indicava, queria que ele tomasse uma decisão, mas o que exatamente?
-Tem... Um lugar onde eu possa dormir lá em cima?- Soares perguntou com inocência.
-Mais ou menos. Suba e eu te explico.
Soares subiu a escada, que rangia e latejava do alto de seus possíveis séculos de existência. Passou ao lado de um crucifixo grande e pesado, adornado com um Cristo de metal e um pequeno pergaminho feito do mesmo material com algumas palavras incompreensíveis em latim nela escritas.
Ao passar pelo mezanino, pôde notar que Camarada Ro abaixara um porta-retrato, virando-o de cabeça para baixo.
Soares parou por um segundo para ver se discretamente conseguia virá-lo de volta.
-O que está fazendo? Venha logo.- ela disse.
-Certo- ele disse, pensando que talvez devesse deixar isso para outra hora.
-Bem-vindo!- ela disse, abrindo uma estreita e discreta porta. -Ao meu quarto.
Soares entrou pela porta. O quarto revelava algumas coisas sobre Camarada Ro. O papel de parede rosa indicava contrastava com uma decoração espartana, um crucifixo menor que o da sala mas ainda assim grande sobre a cama, adornado de um ramo de oiveira e um rosário pouco chamativo. Ela era uma garotinha ainda ontem, mas talvez recentemente tenha passado por uma conversão religiosa. Faz sentido? Acho que não, mas é o melhor que eu tenho.
Lençóis imaculados, armação alva: tudo lá indicava uma certa pureza, perturbada apenas por um discreto, quase simbólico, pôster dos Beatles antes de eles ficarem completamente malucos e Paul McCartney ter partido para a guerrilha.
Soares nem notou, mas nesse meio-tempo Camarada Ro tinha sentado na cama e estava tirando as botas.
-Então...- ela disse, em um tom que Soares não conseguiu entender muito bem- Você vai achar isso ridículo, mas não tem nada aqui pra você dormir. Nenhum colchão sobrando.
-Ah, certo. Você quer que eu durma no chão então?
Camarada Ro suspirou. Mais uma vez, ficava difícil para Soares perceber que emoção ela estava querendo transmitir somente pelos olhos, embora eles fossem bastante emotivos. Soares nunca fora bom com emoções. Soares na verdade não era bom com quase nada, mas não deixava isso impedi-lo de realizar seu trabalho.
Camarada Ro lentamente colocou as mãos atrás do pescoço. Surpreendeu então Soares retirando o lenço que cobria seu rosto.
-Desculpa, mas eu ainda não sei o seu nome.- ele perguntou.
-Não posso te dizer o meu nome. Segredo do coletivo.
-Ah, certo.
-É Rosa.
Rosa era o socialismo com um rosto humano. Um rosto oval, bochechas redondas e um queixo suavemente pronunciado. Sua boca era um adorno discreto, ajudado pelo lábios finos. Olhar para seus olhos agora que o resto do rosto se revelara era como ver um quebra-cabeças que finalmente estava completo.
-Rosa. Faz muito mais sentido do que ‘Ro’.
-Eu suponho.
Soares então percebeu que os dois já estavam encarando um ao outro e nenhuma palavra fora dita.
Ainda estava confuso. O que exatamente ela está tentando fazer? Parece uma armadilha. Vigilante, Soares, permaneça vigilante! Ele repetiu em sua cabeça, só então notando que Rosa olhava para sua cintura.
-Senta aqui do lado- ela disse, pondo a mão no colchão e tocando o delicadamente.
-Porque?
-Não quer ver como é macio?
Soares deu de ombros e sentou do lado dela.
Ok, Soares, não é hora de se desconcentrar. Vamos voltar para a evidência que temos: Ela parece ser de boa família, tradicional. Um foco especial parece ser dado à religião...
-Eu realmente vou ter que fazer tudo, né?
...Provavelmente, está nessa para se rebelar contra o pai. Complexo de Édipo às avessas, e mal-resolvido...
...Quando Soares finalmente olhou para o lado, viu que Rosa tinha seu rosto próximo ao dele, o pescoço levemente torcido.
-Você...- murmura Soares observando enquanto a própria ficha caía.
-Cale-se.
Seus lábios eram suaves e aveludados, os primeiros de Soares naquela cidade(prostitutas raramente concediam o direito à um beijo).
Soares se deixou cair em cima de um colchão, enquanto Rosa corria a mão pelo seu peito, sentindo os pelos se dobrando debaixo de sua mão antes de se erguerem novamente altivos e loiros contra a luz, conforme a sua mão descia pelo tronco.
Soares põe as pernas na cama e ao redor da cintura de Rosa, enquanto a mão dela chega debaixo de seu umbigo, o que leva o pênis de Soares a enrijecer. Subitamente, ele sente algo mais. Dedos se fechando ao redor de seu falo, e puxando. Abre os olhos, e vê que Rosa o está carregando em sua direção.
-Mas o que é isso?
-Curve-se à mim- diz Rosa, botando a sua bota sobre o peito de Soares, esmagando-o, enquanto abre o zíper de seu jeans e abaixa as calças, revelando uma bunda redonda, brilhosa, saltando para a liberdade em todas as direções, fora da costura. A mistura surpreendente de um pêssego com uma melancia.
As calças escorrem para baixo de suas pernas, mostrando à Soares as torneadas coxas cor de oliva, erguidas sobre ele como pilares sustentados por uma peça de roupa de baixo lutando para manter o conjunto inteiro em seu lugar, agrilhoando aquela montanha lisa e globular de carne quadrilica, Rosa segurando o pênis de Soares já como um mastro enquanto, repousando sobre aquelas pernas esculturais e a grandiosa almofada que Deus lhe deu, ela abria sua jaqueta preta revelando um umbigo solitário em meio à aveludada e musculosa carne de oliva.
Rosa segura Soares pelos quadris, e os dois trocam línguas enquanto ela carrega seus quadris rumo à aquele momento. A calçinha já está longe, as calças armadas. Soares, nem calça tinha. O contato é esplendoroso.