segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 17

Capítulo 12

            Se tem uma coisa que aprendi nos últimos dias é que Cutia não tem gosto bom, mas, se você limpar bem as entranhas, pode conseguir uma carne que seja ruim o suficiente para te deixar inconsciente mas não o suficiente pra te matar. Geralmente, inclusive, a carne da Cutia é ruim o suficiente para te deixar nocauteado pelas nove horas de sono que são necessárias para uma noite saudável. Se ela não for bem limpa, porém, é possível acabar com a barriga cheia de vermes.
Ficamos sabendo isso da pior maneira, quando Bob amanheceu morto em um dia de sol morno. O cutucamos e nada aconteceu. Sykes, em um de seus momentos de rara lucidez, recomendou que checássemos a sua roupa de baixo. Não sei bem porque, mas acabou se confirmando. As calças dele estavam repletas de vermes amarelos rastejando para fora de seu ânus.
Chegamos rapidamente à conclusão de que eles o tinham devorado por dentro ao longo da noite.
Foi difícil dar à ele um enterro digno depois dessa, mas fizemos o necessário. Tiramos o excesso de vermes e improvisamos uma cova no meio do deserto avermelhado, o que felizmente foi fácil, pois Bob tinha pouco mais de um metro e cinqüenta.
Agora que notei que não falei muito sobre Bob. Pra ser sincero, não sei se tinha muita coisa para dizer. Ele não falava muito, e as únicas informações que peguei foram com  Shorty, que também era meio lacônico e economizava nas palavras(mas sempre soltava algo de valor quando falava). Ele morava em Nova York, como Shorty, e os dois tinham estudado juntos em um colégio privado para judeus, embora o seu pai fosse um católico de origem irlandesa.
Deixou no mundo uma irmãzinha de 11 anos, um metro e trinta-e-cinco e bochechas rosadas, chamada Mae, e uma meia-irmã chamada Anita, jovem demais para saber o seu nome, e que ele, na verdade, ainda não conhecia. Guardei um espaço para minhas rezas naquela noite para elas.

*****

No dia seguinte ao enterro de Bob, a caminhada continuou até onde podia. Ao que tudo indicava, estávamos ficando cada vez mais longe do mar. O deserto avermelhado foram substituído por um mais amarelo, e o chão sólido e batido por um rachado. As rachaduras no chão entre bloquinhos de argila de tamanhos variados me lembrava das fronteiras entre os países. Ou algo assim.
Em um ponto da caminhada, o chão subitamente se tornou mais íngreme e, quando percebemos, estávamos caminhando na direção de algo que, provavelmente, era um platô. Após uma breve discussão sobre o que fazer, decidimos não dar a volta a montanha, mas simplesmente acampar ao redor dela.
Na base da montanha, havia uma árvore pequena, mas maciça. Embranquecida pelo sol, queimada e alvejada, repleta de folhas mortas que se recusavam à cair. Suas raízes grossas passavam por entre as pequenas rachaduras da argila, nunca indo muito fundo, e se estendendo pelo que pareciam ser algumas dezenas de metros. Pendurada no galho mais longo, estava um balanço, feito com um pneu da Bridgestone, vestígio de uma criança que não estava mais ali para brincar com ele.
Debaixo da árvore, comemos feijão de algumas latas que levávamos em nossas mochilas e que estávamos guardando para uma ocasião especial. Foi só então que percebemos que toda essa história de comer Cutias foi um erro idiota que causou mortes desnecessárias.
E lá, recostamo-nos à sombra da árvore, contamos histórias, rimos, cantamos canções contra a guerra que conhecíamos através dos recrutas, e deixamos o tempo passar, e o tempo passou. Fomos de sol à sol, de lua à lua, o chão umedeceu-se, secou, cresceu e modificou-se sob nossos imóveis pés, a árvore nasceu e morreu cem vezes, e quando toda outra forma de contar se tornou inútil e foi sendo progressivamente esquecida por nós, nós passamos à contar o tempo pelos quilômetros de nossas longas e ricas barbas brancas. E, quando tudo isso acabou, após milênios, em uma época em que a guerra já acabara, os Estados Unidos haviam desaparecido nas areias do tempo como uma mera memória e a própria Terra parecia ter se tornado um planeta rejuvenescido, nós nos levantamos, sacudimos a poeira de nossos uniformes em frangalhos e partimos rumo à aventura.
Ou não.
O que aconteceu, na verdade, foi que caiu algo em volta de nosso local de repouso. O algo era preto-esverdeado, e lembrava vagamente um abacaxi. Já havíamos visto aquele objeto várias vezes.
A reação veio antes do próprio pensamento e do grito que ele engendrou.
-Granada!- gritei.
Corri, rolei, dei cambalhota e voei baixo em um quarto de segundo. No quarto de segundo seguinte, voei um pouco mais alto. A explosão surda levantou uma nuvem densa de poeira, que cobriu minha farda e meu capacete, e um pouquinho do meu rosto.
Saltei, em um gesto que me deixou impressionado comigo mesmo; com apenas uma mão me ergui do chão, as pernas ainda tremulando no ar, se enrijecendo então e se atirando a distância, rumo ao solo. Dez, dez, nove e meio.
Agarrei rapidamente o rifle no chão e corri pela nuvem ao meu redor procurando os outros. Por alguns segundos achei que os havia perdido. A adrenalina correu pelas minhas veias.
Felizmente, foram apenas alguns segundos. O resto da companhia estava bem- empoeirado, mas bem. Sykes ajoelhou-se e ergueu seu rifle contra a elevação no horizonte, descarregando um pente contra o vento.
-Seus merdas! Venham nos pegar! Covardes!
-Eles não te entendem, Sykes! Pare de gritar!
-Foda-se! A raiva é a linguagem universal!
Sykes levou o rifle aos ombros e correu em direção ao fim da névoa marrom, onde não podíamos vê-lo.
-Sykes! Porra! Não fique longe do grupo!- eu gritei. Acho que não me ouviu.
-Chefia, vamos ter que segui-lo -disse Wright.
Esse pensamento corajoso e momento peculiar de solidariedade soldatina foi interrompido pelo alarmante barulho de tiros, que encheu o ar. Mais uma vez, atirei-me de tronco ao chão e fui imitado por Wright e Shorty.
Os tiros continuaram. Perdi a capacidade de contar e, na verdade, estava sem relógio. Mas eu diria que o tiroteio durou por um minuto. Havia algo estranho.
-É, chefia, vamos nos levantar? Acho que a poeira baixou- disse Wright, com placidez.
-Parece uma boa idéia- respondi.
Comecei à rastejar em direção à montanha. De fato, a poeira tinha baixado e nós parecíamos uma companhia de idiotas deitados no chão do deserto.
Mais ao longe, algo me chamou atenção.
Era Sykes. Estava longe da árvore, já alguns metros do solo plano. Estava ereto, descoberto. Não estava protegido por nada. Apontava sua arma para o horizonte. E atirava. Atirava como se o mundo fosse acabar.
Corri até ele, e Shorty e Wright nos seguiram também. Agora, ao longe, podia ver eles- os cuca rachas e comunistas, descendo sorrateiramente a encosta do morro.
Talvez estivesse acabando mesmo. O nosso mundo, em todo caso.

*****

Sykes continuou disparando por pelo menos um minuto. Eu não sei como tinha tanta munição naquela metralhadora. Eu não sabia nem mesmo como ele tinha arranjado uma metralhadora. Mas lá estava ele, atirando contra nossos inimigos apenas semi-visíveis, à uma distância que cada vez mais se tornava perigosa.
Eu não sei bem o que aconteceu naquele momento, mas eu decidi me juntar à Sykes. A guerra, e perdoem a analogia pobre, lembra muito uma montanha-russa: é cheia de altos e baixos, momentos de emoção, de frio na barriga, e quando tudo acaba, você está enjoado e tonto. A diferença principal é que você entra em uma montanha-russa com medo, arrastando os pés no chão para não ser levado para dentro, e geralmente sai com vontade de mais uma volta. Na guerra, costuma ser o contrário.
Mas era naquele estado em que eu me encontrava. Sabe aquela história sobre o veterano inglês da Primeira Guerra Mundial, que chega no campo de batalha todo garboso em seu uniforme bem alinhado e perfumado e um impecável bigode curvo, e, principalmente, muita vontade de lutar pela sua pátria, mas logo entra em contato com a realidade crua da guerra, que aliás se arrasta muito além do chá das 5, e então começa à se desleixar, deixar a barba crescer e o uniforme sujar, terminando tudo em um eloqüente monólogo condenando a arrogância dos oficiais e dos incompetentes estrategistas, condenando a sua pátria e a guerra que ele jurara lutar até o final, concluindo com um chamado para a paz mundial o abandono das diferenças no seio dessa fraternidade de seres humanos?
Pois então, é uma grande bobagem. Quer dizer, tem essa parte também, mas ela vem mais no começo. Segundo minha experiência, você chega como o soldado idealista(mas diferente da variedade inglesa, nos EUA temos o garoto de fazenda de cabelo bem-aparado e orelhas de abano), mas logo se choca com a realidade da guerra, virando o soldado torturado, a variedade “ai de mim”. Daí, não demora muito até chegarem os novos recrutas e, de soldado chorão, você passa à ser o veterano durão com muitas histórias, a categoria “vocês não sabem o que eu passei” e “lá em Belém foi muito pior”. E sim, lá em Belém foi muito pior. Mas continuando, depois de um tempo a sua máscara de veterano durão começa à cair, porque manter uma barba mal-feita decente é muito difícil, assim como fazer cara de mau o tempo todo. Daí você se torna o soldado “ai de mim” de novo. Mas isso tampouco dura, pois agora você já está acostumado. Você não sofre com essas conseqüências terríveis da guerra. Elas viraram sua rotina. Seu dia-a-dia. Seu ganha-pão, na verdade. Você pode trabalhar com a GM lá em Detroit, dizer “e aí Carl, como vão as crianças”, apertar alguns botões pra fazer algumas centenas de placas de carro por dia, e então volta para casa para comer bolo de carne, perguntar para seus filhos como foi o jogo de beisebol. Ou você pode acordar em uma tenda com disenteria, dizer “e aí Carl, esse colar com orelhas não está ficando pesado no seu pescoço?” e exterminar alguns comunistas na floresta, fazer uma patrulha básica, marchar e comer sopa de gambá.
Pode não parecer bom, mas no fim, você se acostuma. Vira rotina. O furúnculo no seu pé vira mais um furúnculo no seu pé, talvez menos doloroso que o anterior. A lama vira um local de trabalho como qualquer outro. Você passa à encontrar pequenos prazeres, mas no geral, a vida fica mesmicenta. Chata, enfim.
E daí vem a última etapa. No exato momento em que parece que você vai desistir, que você está cansado de tudo, você começa à gostar. Passa à encontrar alegria no ato de matar, e a própria selvageria e privação da batalha, o sangue das feridas e a lama deveras permanentemente incrustada nas unhas viram motivo de júbilo.
Existe momento após esse? Não sei, mas em todo caso era nesse estágio em que eu estava quando decidi metralhar toda a corja comunista que descia montanha abaixo rumo à Sykes.

*****

Foi lindo. Eu cheguei e me postei ao lado de Sykes que estava com sua metralhadora, e ergui meu rifle rumo às gramíneas e terra vermelha pisada e barrenta da montanha, que os comunistas, ainda silhuetas sem rosto, desciam com cautela.
Percebi uma movimentação no canto do meu olho. Seria uma armadilha? Algum comunista escondido atrás da árvore que era nosso refúgio?
Não. Era Wright. Era Shorty. Os dois se postaram ao nosso lado e empunharam suas armas.
Foi lindo.
*****

Em questão de segundos os comunistas estavam reduzidos à apenas uma dúzia, e logo à apenas meia.
Uma coisa eu acho estranha sobre os comunistas. Numa época não muito distante, eles costumavam chegar, fazer ataques rápidos, disparar muito, gritar algumas palavras de ordem, jogar algumas cópias de Marx na gente(ta, talvez não) e então fugir como se eles nunca tivessem estado lá. Agora, eles ainda fazem isso, mas quando ocorre um confronto aberto em campo aberto, eles continuam vindo. Sem olhar para trás. Muitas vezes, nem atiram. Eu costumava pensar que isso era porque eles não tinham munição, ma já encontrei cadáveres com cartuchos cheios em suas armas.
Parece martírio, e talvez seja.
Comunistas bancando os cristãos. Quem diria.

*****

É claro, não é como se eles tivessem se rendido. Atiraram algumas vezes. Uns dois tiros passaram perto de mim, mas quer saber? Foda-se. Sou invencível. Em todo caso era assim que estava me sentindo, enquanto descarregava os cartuchos contra a montanha de pedra á minha frente, com os cartuchos à meu lado formando sua própria diminuta montanha.
Uma bala passou à uma distância que não podia ser maior que um fio de cabelo da minha orelha. Subitamente minha fodice pareceu menos invencível e um tremelique desagradável me percorreu o corpo.
Continuei atirando em um modo que poderia ser qualificado de piloto automático, depois que a testosterona dos gritos de guerra havia passado.
Só então notei que um dos comunistas havia chegado perto o suficiente e estava apontando sua arma para mim.
Nesse momento, não pensei duas vezes; na verdade, pode ser que não tenha nem pensado uma vez, já que fiz uma coisa muito estúpida: comecei à correr em direção à ele.
Ficou óbvio o quão errada tinha sido minha decisão quando percebi que ele estava apontando sua Kalashnikov, ou o que parecia ser sua Kalashnikov, para a minha cabeça, ou o que parecia ser minha cabeça.
O cuca racha caiu, no momento em que duas bolhas de sangue explodiram em seus joelhos. O tiro deve ter sido de Wright e Shorty, mas não chequei. A hora da brincadeira tinha acabado.
Ergui minha arma em direção ao céu, dobrando meu braço ao redor de meu pescoço, para então estalá-lo como um chicote vigoroso. A coronhada estalou seu queixo e o virou em um ângulo de noventa graus, e deformou sua garganta. Sua boca se encheu de sangue, e, ajoelhado, foi ao chão.
Sykes logo se junto à mim.
-Shorty, traduz isso pra mim- disse ele, e levantou o cuca racha contra o próprio peito. Eu estava com esse cara em minha companhia já fazia algum tempo e não tinha idéia de que ele era tão forte.
-Agora me fala, cadê a porra da base? Onde estão guardando os prisioneiros??
Shorty deu sua tradução aproximada. O cucaracha, um homem moreno, narigudo e de cabelo negro comprido, pareceu não entender. Isso, ou não conseguia falar por causa do queixo deformado.
-THE BASE, MOTHERFUCKER, THE BASE!- disse Sykes, e pegou o cucaracha pelas orelhas, dando uma joelhada em seu nariz.
A vida do sujeito parecia estar se esvaindo. Pensei em intervir, mas será que tinha escolha?
O homem estava chorando. Sykes lhe deu mais uma joelhada, e largou o no chão.
O homem, em frangalhos, parecia estar querendo dizer alguma coisa, mas não conseguíamos ouvi-lo.
-Acho que ele não é mais útil- disse Wright.
Mas Sykes viu outra coisa.
A mão do homem estava vagamente estendida, mas flutuava por sobre ele. Ele estava fazendo esforço para levantar o braço, e estava apontando para algo.
A montanha.
-Isso. É o que eu achava. A base fica além dessa montanha. Vão.
Aquilo havia sido mais fácil que eu imaginava.
Espera um segundo.
Vão?
-Sykes, o que você quer dizer com... Oh.
Uma mancha de sangue crescia no peito de Sykes. Podia ser apenas um respingo do homem que ele torturara. Depois, passou do ponto em que podia ser um respingo.
Sykes caiu no chão, do lado do homem.
Tentei segura-lo, mas não cheguei à conseguir.
Sykes respirou fundo, até parecer que seus pulmões iam explodir, e o ar que entrava lembrava o barulho de uma corrente elétrica. Seus olhos azul-claros miravam o céu da mesma cor, enquanto sua boca se abria em um gemido que ia se ensurdecendo. Uma golfada de sangue então saiu de sua boca, e seus olhos se fecharam instantaneamente.
Sykes. Um cara bizarro, e talvez sua morte tenha sido à altura, mas não sei, ainda esperava algo mais chocante, não sei, talvez ele morrer empalado ou algo assim. Mas desse jeito já estava bom. Sykes. Ruim do nosso lado, pior se estivesse no outro.
E nem foi o Shorty que pensou nisso, dessa vez. Fui eu.
-E agora, o que fazemos?- perguntou Wright, fazendo-me escapar de meu devaneio.

-E agora? Nós vamos- respondi.

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