Capítulo 12
Se
tem uma coisa que aprendi nos últimos dias é que Cutia não tem gosto bom, mas,
se você limpar bem as entranhas, pode conseguir uma carne que seja ruim o
suficiente para te deixar inconsciente mas não o suficiente pra te matar.
Geralmente, inclusive, a carne da Cutia é ruim o suficiente para te deixar
nocauteado pelas nove horas de sono que são necessárias para uma noite
saudável. Se ela não for bem limpa, porém, é possível acabar com a barriga
cheia de vermes.
Ficamos sabendo isso da pior maneira, quando Bob amanheceu
morto em um dia de sol morno. O cutucamos e nada aconteceu. Sykes, em um de
seus momentos de rara lucidez, recomendou que checássemos a sua roupa de baixo.
Não sei bem porque, mas acabou se confirmando. As calças dele estavam repletas
de vermes amarelos rastejando para fora de seu ânus.
Chegamos rapidamente à conclusão de que eles o
tinham devorado por dentro ao longo da noite.
Foi difícil dar à ele um enterro digno depois
dessa, mas fizemos o necessário. Tiramos o excesso de vermes e improvisamos uma
cova no meio do deserto avermelhado, o que felizmente foi fácil, pois Bob tinha
pouco mais de um metro e cinqüenta.
Agora que notei que não falei muito sobre Bob. Pra
ser sincero, não sei se tinha muita coisa para dizer. Ele não falava muito, e
as únicas informações que peguei foram com
Shorty, que também era meio lacônico e economizava nas palavras(mas
sempre soltava algo de valor quando falava). Ele morava em Nova York, como
Shorty, e os dois tinham estudado juntos em um colégio privado para judeus,
embora o seu pai fosse um católico de origem irlandesa.
Deixou no mundo uma irmãzinha de 11 anos, um metro
e trinta-e-cinco e bochechas rosadas, chamada Mae, e uma meia-irmã chamada
Anita, jovem demais para saber o seu nome, e que ele, na verdade, ainda não
conhecia. Guardei um espaço para minhas rezas naquela noite para elas.
*****
No dia seguinte ao enterro de Bob, a caminhada
continuou até onde podia. Ao que tudo indicava, estávamos ficando cada vez mais
longe do mar. O deserto avermelhado foram substituído por um mais amarelo, e o
chão sólido e batido por um rachado. As rachaduras no chão entre bloquinhos de
argila de tamanhos variados me lembrava das fronteiras entre os países. Ou algo
assim.
Em um ponto da caminhada, o chão subitamente se
tornou mais íngreme e, quando percebemos, estávamos caminhando na direção de
algo que, provavelmente, era um platô. Após uma breve discussão sobre o que
fazer, decidimos não dar a volta a montanha, mas simplesmente acampar ao redor
dela.
Na base da montanha, havia uma árvore pequena, mas
maciça. Embranquecida pelo sol, queimada e alvejada, repleta de folhas mortas
que se recusavam à cair. Suas raízes grossas passavam por entre as pequenas
rachaduras da argila, nunca indo muito fundo, e se estendendo pelo que pareciam
ser algumas dezenas de metros. Pendurada no galho mais longo, estava um
balanço, feito com um pneu da Bridgestone, vestígio de uma criança que não
estava mais ali para brincar com ele.
Debaixo da árvore, comemos feijão de algumas latas
que levávamos em nossas mochilas e que estávamos guardando para uma ocasião
especial. Foi só então que percebemos que toda essa história de comer Cutias
foi um erro idiota que causou mortes desnecessárias.
E lá, recostamo-nos à sombra da árvore, contamos
histórias, rimos, cantamos canções contra a guerra que conhecíamos através dos
recrutas, e deixamos o tempo passar, e o tempo passou. Fomos de sol à sol, de
lua à lua, o chão umedeceu-se, secou, cresceu e modificou-se sob nossos imóveis
pés, a árvore nasceu e morreu cem vezes, e quando toda outra forma de contar se
tornou inútil e foi sendo progressivamente esquecida por nós, nós passamos à
contar o tempo pelos quilômetros de nossas longas e ricas barbas brancas. E,
quando tudo isso acabou, após milênios, em uma época em que a guerra já
acabara, os Estados Unidos haviam desaparecido nas areias do tempo como uma
mera memória e a própria Terra parecia ter se tornado um planeta rejuvenescido,
nós nos levantamos, sacudimos a poeira de nossos uniformes em frangalhos e
partimos rumo à aventura.
Ou não.
O que aconteceu, na verdade, foi que caiu algo em
volta de nosso local de repouso. O algo era preto-esverdeado, e lembrava
vagamente um abacaxi. Já havíamos visto aquele objeto várias vezes.
A reação veio antes do próprio pensamento e do
grito que ele engendrou.
-Granada!- gritei.
Corri, rolei, dei cambalhota e voei baixo em um
quarto de segundo. No quarto de segundo seguinte, voei um pouco mais alto. A
explosão surda levantou uma nuvem densa de poeira, que cobriu minha farda e meu
capacete, e um pouquinho do meu rosto.
Saltei, em um gesto que me deixou impressionado
comigo mesmo; com apenas uma mão me ergui do chão, as pernas ainda tremulando
no ar, se enrijecendo então e se atirando a distância, rumo ao solo. Dez, dez,
nove e meio.
Agarrei rapidamente o rifle no chão e corri pela
nuvem ao meu redor procurando os outros. Por alguns segundos achei que os havia
perdido. A adrenalina correu pelas minhas veias.
Felizmente, foram apenas alguns segundos. O resto
da companhia estava bem- empoeirado, mas bem. Sykes ajoelhou-se e ergueu seu
rifle contra a elevação no horizonte, descarregando um pente contra o vento.
-Seus merdas! Venham nos pegar! Covardes!
-Eles não te entendem, Sykes! Pare de gritar!
-Foda-se! A raiva é a linguagem universal!
Sykes levou o rifle aos ombros e correu em direção
ao fim da névoa marrom, onde não podíamos vê-lo.
-Sykes! Porra! Não fique longe do grupo!- eu
gritei. Acho que não me ouviu.
-Chefia, vamos ter que segui-lo -disse Wright.
Esse pensamento corajoso e momento peculiar de
solidariedade soldatina foi interrompido pelo alarmante barulho de tiros, que
encheu o ar. Mais uma vez, atirei-me de tronco ao chão e fui imitado por Wright
e Shorty.
Os tiros continuaram. Perdi a capacidade de contar
e, na verdade, estava sem relógio. Mas eu diria que o tiroteio durou por um
minuto. Havia algo estranho.
-É, chefia, vamos nos levantar? Acho que a poeira
baixou- disse Wright, com placidez.
-Parece uma boa idéia- respondi.
Comecei à rastejar em direção à montanha. De fato,
a poeira tinha baixado e nós parecíamos uma companhia de idiotas deitados no
chão do deserto.
Mais ao longe, algo me chamou atenção.
Era Sykes. Estava longe da árvore, já alguns metros
do solo plano. Estava ereto, descoberto. Não estava protegido por nada. Apontava
sua arma para o horizonte. E atirava. Atirava como se o mundo fosse acabar.
Corri até ele, e Shorty e Wright nos seguiram
também. Agora, ao longe, podia ver eles- os cuca rachas e comunistas, descendo
sorrateiramente a encosta do morro.
Talvez estivesse acabando mesmo. O nosso mundo, em
todo caso.
*****
Sykes continuou disparando por pelo menos um
minuto. Eu não sei como tinha tanta munição naquela metralhadora. Eu não sabia
nem mesmo como ele tinha arranjado uma metralhadora. Mas lá estava ele,
atirando contra nossos inimigos apenas semi-visíveis, à uma distância que cada
vez mais se tornava perigosa.
Eu não sei bem o que aconteceu naquele momento, mas
eu decidi me juntar à Sykes. A guerra, e perdoem a analogia pobre, lembra muito
uma montanha-russa: é cheia de altos e baixos, momentos de emoção, de frio na
barriga, e quando tudo acaba, você está enjoado e tonto. A diferença principal
é que você entra em uma montanha-russa com medo, arrastando os pés no chão para
não ser levado para dentro, e geralmente sai com vontade de mais uma volta. Na
guerra, costuma ser o contrário.
Mas era naquele estado em que eu me encontrava.
Sabe aquela história sobre o veterano inglês da Primeira Guerra Mundial, que
chega no campo de batalha todo garboso em seu uniforme bem alinhado e perfumado
e um impecável bigode curvo, e, principalmente, muita vontade de lutar pela sua
pátria, mas logo entra em contato com a realidade crua da guerra, que aliás se
arrasta muito além do chá das 5, e então começa à se desleixar, deixar a barba
crescer e o uniforme sujar, terminando tudo em um eloqüente monólogo condenando
a arrogância dos oficiais e dos incompetentes estrategistas, condenando a sua
pátria e a guerra que ele jurara lutar até o final, concluindo com um chamado
para a paz mundial o abandono das diferenças no seio dessa fraternidade de
seres humanos?
Pois então, é uma grande bobagem. Quer dizer, tem
essa parte também, mas ela vem mais no começo. Segundo minha experiência, você
chega como o soldado idealista(mas diferente da variedade inglesa, nos EUA
temos o garoto de fazenda de cabelo bem-aparado e orelhas de abano), mas logo
se choca com a realidade da guerra, virando o soldado torturado, a variedade
“ai de mim”. Daí, não demora muito até chegarem os novos recrutas e, de soldado
chorão, você passa à ser o veterano durão com muitas histórias, a categoria
“vocês não sabem o que eu passei” e “lá em Belém foi muito pior”. E sim, lá em
Belém foi muito pior. Mas continuando, depois de um tempo a sua máscara de
veterano durão começa à cair, porque manter uma barba mal-feita decente é muito
difícil, assim como fazer cara de mau o tempo todo. Daí você se torna o soldado
“ai de mim” de novo. Mas isso tampouco dura, pois agora você já está acostumado.
Você não sofre com essas conseqüências terríveis da guerra. Elas viraram
sua rotina. Seu dia-a-dia. Seu ganha-pão, na verdade. Você pode trabalhar com a
GM lá em Detroit, dizer “e aí Carl, como vão as crianças”, apertar alguns
botões pra fazer algumas centenas de placas de carro por dia, e então volta
para casa para comer bolo de carne, perguntar para seus filhos como foi o jogo
de beisebol. Ou você pode acordar em uma tenda com disenteria, dizer “e aí
Carl, esse colar com orelhas não está ficando pesado no seu pescoço?” e
exterminar alguns comunistas na floresta, fazer uma patrulha básica, marchar e
comer sopa de gambá.
Pode não parecer bom, mas no fim, você se acostuma.
Vira rotina. O furúnculo no seu pé vira mais um furúnculo no seu pé, talvez
menos doloroso que o anterior. A lama vira um local de trabalho como qualquer
outro. Você passa à encontrar pequenos prazeres, mas no geral, a vida fica
mesmicenta. Chata, enfim.
E daí vem a última etapa. No exato momento em que
parece que você vai desistir, que você está cansado de tudo, você começa à gostar.
Passa à encontrar alegria no ato de matar, e a própria selvageria e privação da
batalha, o sangue das feridas e a lama deveras permanentemente incrustada nas
unhas viram motivo de júbilo.
Existe momento após esse? Não sei, mas em todo caso
era nesse estágio em que eu estava quando decidi metralhar toda a corja
comunista que descia montanha abaixo rumo à Sykes.
*****
Foi lindo. Eu cheguei e me postei ao lado de Sykes
que estava com sua metralhadora, e ergui meu rifle rumo às gramíneas e terra
vermelha pisada e barrenta da montanha, que os comunistas, ainda silhuetas sem
rosto, desciam com cautela.
Percebi uma movimentação no canto do meu olho.
Seria uma armadilha? Algum comunista escondido atrás da árvore que era nosso
refúgio?
Não. Era Wright. Era Shorty. Os dois se postaram ao
nosso lado e empunharam suas armas.
Foi lindo.
*****
Em questão de segundos os comunistas estavam
reduzidos à apenas uma dúzia, e logo à apenas meia.
Uma coisa eu acho estranha sobre os comunistas.
Numa época não muito distante, eles costumavam chegar, fazer ataques rápidos,
disparar muito, gritar algumas palavras de ordem, jogar algumas cópias de Marx
na gente(ta, talvez não) e então fugir como se eles nunca tivessem estado lá.
Agora, eles ainda fazem isso, mas quando ocorre um confronto aberto em campo
aberto, eles continuam vindo. Sem olhar para trás. Muitas vezes, nem atiram. Eu
costumava pensar que isso era porque eles não tinham munição, ma já encontrei
cadáveres com cartuchos cheios em suas armas.
Parece martírio, e talvez seja.
Comunistas bancando os cristãos. Quem diria.
*****
É claro, não é como se eles tivessem se rendido.
Atiraram algumas vezes. Uns dois tiros passaram perto de mim, mas quer saber?
Foda-se. Sou invencível. Em todo caso era assim que estava me sentindo,
enquanto descarregava os cartuchos contra a montanha de pedra á minha frente,
com os cartuchos à meu lado formando sua própria diminuta montanha.
Uma bala passou à uma distância que não podia ser
maior que um fio de cabelo da minha orelha. Subitamente minha fodice pareceu
menos invencível e um tremelique desagradável me percorreu o corpo.
Continuei atirando em um modo que poderia ser
qualificado de piloto automático, depois que a testosterona dos gritos de
guerra havia passado.
Só então notei que um dos comunistas havia chegado
perto o suficiente e estava apontando sua arma para mim.
Nesse momento, não pensei duas vezes; na verdade,
pode ser que não tenha nem pensado uma vez, já que fiz uma coisa muito
estúpida: comecei à correr em direção à ele.
Ficou óbvio o quão errada tinha sido minha decisão
quando percebi que ele estava apontando sua Kalashnikov, ou o que parecia ser
sua Kalashnikov, para a minha cabeça, ou o que parecia ser minha cabeça.
O cuca racha caiu, no momento em que duas bolhas de
sangue explodiram em seus joelhos. O tiro deve ter sido de Wright e Shorty, mas
não chequei. A hora da brincadeira tinha acabado.
Ergui minha arma em direção ao céu, dobrando meu
braço ao redor de meu pescoço, para então estalá-lo como um chicote vigoroso. A
coronhada estalou seu queixo e o virou em um ângulo de noventa graus, e
deformou sua garganta. Sua boca se encheu de sangue, e, ajoelhado, foi ao chão.
Sykes logo se junto à mim.
-Shorty, traduz isso pra mim- disse ele, e levantou
o cuca racha contra o próprio peito. Eu estava com esse cara em minha companhia
já fazia algum tempo e não tinha idéia de que ele era tão forte.
-Agora me fala, cadê a porra da base? Onde estão
guardando os prisioneiros??
Shorty deu sua tradução aproximada. O cucaracha, um
homem moreno, narigudo e de cabelo negro comprido, pareceu não entender. Isso,
ou não conseguia falar por causa do queixo deformado.
-THE BASE, MOTHERFUCKER, THE BASE!- disse
Sykes, e pegou o cucaracha pelas orelhas, dando uma joelhada em seu nariz.
A vida do sujeito parecia estar se esvaindo. Pensei
em intervir, mas será que tinha escolha?
O homem estava chorando. Sykes lhe deu mais uma
joelhada, e largou o no chão.
O homem, em frangalhos, parecia estar querendo
dizer alguma coisa, mas não conseguíamos ouvi-lo.
-Acho que ele não é mais útil- disse Wright.
Mas Sykes viu outra coisa.
A mão do homem estava vagamente estendida, mas
flutuava por sobre ele. Ele estava fazendo esforço para levantar o braço, e
estava apontando para algo.
A montanha.
-Isso. É o que eu achava. A base fica além dessa
montanha. Vão.
Aquilo havia sido mais fácil que eu imaginava.
Espera um segundo.
Vão?
-Sykes, o que você quer dizer com... Oh.
Uma mancha de sangue crescia no peito de Sykes.
Podia ser apenas um respingo do homem que ele torturara. Depois, passou do
ponto em que podia ser um respingo.
Sykes caiu no chão, do lado do homem.
Tentei segura-lo, mas não cheguei à conseguir.
Sykes respirou fundo, até parecer que seus pulmões
iam explodir, e o ar que entrava lembrava o barulho de uma corrente elétrica.
Seus olhos azul-claros miravam o céu da mesma cor, enquanto sua boca se abria
em um gemido que ia se ensurdecendo. Uma golfada de sangue então saiu de sua
boca, e seus olhos se fecharam instantaneamente.
Sykes. Um cara bizarro, e talvez sua morte tenha
sido à altura, mas não sei, ainda esperava algo mais chocante, não sei, talvez
ele morrer empalado ou algo assim. Mas desse jeito já estava bom. Sykes. Ruim
do nosso lado, pior se estivesse no outro.
E nem foi o Shorty que pensou nisso, dessa vez. Fui
eu.
-E agora, o que fazemos?- perguntou Wright,
fazendo-me escapar de meu devaneio.
-E agora? Nós vamos- respondi.
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