Capítulo 11
Pular ou não pular? Eis a questão.
A imponência sombria do poço de elevador
estendia-se em profundidade diante de Soares. Poderia continuar abrindo outras
daquelas portas horríveis na esperança de encontra um saída. Ou não. Poderia
simplesmente pular no poço do elevador, agarrando-se à corda como uma versão
urbana do Tarzan.
Vamo pulá, vamo pulá... Soares não tinha idéia de
onde tinha tirado aquela música que persistentemente ouvia na sua cabeça.
O cheiro de fumaça entrou-lhe pelas narinas. Soares
não sabia que, se ficasse no prédio por mais de 4 minutos, o nível de dióxido
de carbono o levaria à morrer de asfixia.
Soares, porém, tinha uma noção básica do mal que a
fumaça fazia à saúde.
Soares agora podia ver a fumaça à menos de cinco
palmos á sua frente, vinda de uma porta no fim do corredor.
Tá certo, não tem jeito. Um... Dois... Dois e
Meio...
Uma viga
caiu do teto, fazendo um estardalhaço e soltando faíscas.
Merda. TRÊS!
E com essas palavras mentais, Soares se atirou no
poço.
*****
Agarragarragarragarragarra
Questão de vida ou morte. Escuridão por todos os
lados, pra cima, pra baixo, esquerda e direita. Uma única corda lustrosa,
balaustrando-se no balanço pendular. Um filete oleoso de luz negra refletido na
escuridão opaca e simples.
A velocidade de queda em poços de elevador em geral
e naquele poço de elevador em particular poderia ter matado qualquer ser
humano, mas Soares não era um ser humano qualquer.
Ok, ele era, sim, mas era também um ser humano
inteligente o suficiente para estender o seu braço quando a necessidade se
apresentava diante dele.
Ok. Calma, Soares. FODA-SE, esse não é o momento para acalmar-se! Estica
o braço! Estica o braço! Estica o braço!
Esticaobraçoesticaobraçoesticaobraçoesticaobraçoesticaobraaa
Óleo quente, e cada vez mais quente escorrendo-lhe
pelas mãos.
Legal.
Sentia que agora não caía à esmo, que tinha uma
base de sustentação, ainda que frágil. Mais legal.
Na verdade, agora sentia o óleo escorrendo pelas
mãos enquanto a descida em alta velocidade esquentava o filete em suas mãos. Virou
um tipo de corda em chamas da morte.
Legal?
Tentou agarrar as cordas para impedir esse efeito.
A corda estirou-se e contraiu-se, antes de jogá-lo em uma confortável posição
de pêndulo.
Legal(?)
Mas agora, ele realmente parecia com o Tarzan!
Muito legal!
Espera, o que é aquilo?
Uma parede.
Nada legal.
Inconsciente, à ver estrelas, num ambiente fechado
e escuro. Caiu por volta de dois metros.
Pelo menos, evitou a corda em chamas.
*****
Fugir. Essa era a prioridade no momento.
Ingenuidade é foda.
Era crime fugir do passado? Aparentemente, era.
Os prédios da Rua da Praia eram à primeira vista
organizados em retilíneas fileiras, mas, conforme você andava para o mundo, os
pequenos espaços entre os prédios se convertiam em apertados corredores,
fedendo à urina e outras nhacas variadas.
O entardecer já começava, mas, ao invés de um sol
dourado se deitando pelo horizonte, tudo o que se via era um crepúsculo
indeciso, vacilante, cinzento. Isso tornava o caminho cada vez mais difícil de
se distinguir, e, no momento em que a brancura do céu se transformou em um
azul-escuro daquilo que não é mais o crepúsculo mas poderia chamar-se de
pré-noite, Soares começou à tropeçar com freqüência em degraus desgastados pela
umidade ou simplesmente mal-construídos.
Salvador se transformou em uma extensão daquele
maldito labirinto, pensou Soares. Corria e saltitava pelos recantos escuros, passando por
dezenas de muros de cal distinguíveis entre si apenas pelo formato da língua
negra de chuva que descia deles. E ainda assim, sabia que estava perigosamente
perto das tropas de Orfeu.
Tiros. Soares ficou paralisado. Seria um tiro
mesmo? Mais um barulho parecido. Era um tiro.
Tiro e passos, à poucos metros.
Com o coração batendo, Soares voltou à correr- não,
à saltar, entre as pedras desgastadas e corredores decompostos, por entre os
casebres aos quais era negada a vista da praia.
Os passos parecem seguir um padrão- parecem tropas
marchando. Curioso. Soares corre mais. Chega à um tipo de praça... Não,
pátio. Sem luz.
Tateia pelas paredes. O som das botas contra o chão
desgastado fica mais constante, mais próximo, mais forte.
Continua tateando. Seus dedos contra a frieza úmida
da parede. Alguns pedaços parecem apegar-se ao seu explorador e grudam-se em
seus dedos.
De súbito, sente algo. Seus dedos correm por ela-
uma reentrância. Algo vagamente parecido com uma alcova. Uma falha no desenho
do muro. E minha salvação, pensou Soares, respirando fundo.
Os passos continuaram, e foram se aproximando,
enquanto Soares se escondia.
O clique-claque característico dos militares
prosseguiu. Barulho de armas batendo contra uniformes, botas roçando em botas,
mochilas e coletes oscilando para frente e para trás tocando a pele- um horror.
Mas o som foi ficando para trás.
Soares se permitiu sair do esconderijo só depois de
meia hora.
Resolveu ver aonde estava. As luzes do pátio tinham
acabado de se acender, revelando algumas pequenas lojinhas, duas quitandas
anunciando-se fechadas em largas e chamativas letras vermelhas em cartazes
brancos, um cabeleireiro (o Marcelinho Cabeleireiro Deluxe) e uma loja
vendendo botijões de gás, pertencendo à um tal Ermeval. Do outro lado, havias
uma pousada.
Escolheu a pousada.
A pousada era um barracão rústico, feito com toras
de madeira lado à lado que sem dúvida ficavam quentes demais para habitação
humana durante o dia.
Se chamava Pousada da Praia- o nome estava talhado
na madeira, algumas letras ligeiramente deformadas e maiores que as outras- mas
curiosamente, não ficava nada perto da praia. O labirinto de ruas estreitas que
se estendia dali até a praia confundiria qualquer pessoa que morasse na cidade
à menos de dez anos, quanto mais um turista(e Soares não conseguia enganar à si
mesmo, era mais o segundo que o primeiro). Talvez tivesse esse nome meramente
porque ficava perto da Rua da Praia, mas, naquele momento, parecia mesmo uma
armadilha para turistas.
No momento, ia servir.
Foi caminhando pela praça sonolenta, esperando ser
surpreendido por algum gato ou coisa que o valha. Ninguém deu pelotas. Aquela
parte da cidade ficava tão perto do centro, e ainda assim morria tão cedo
depois do pôr-do-sol. Deve ser a falta de energia, cogitou Soares.
Bateu algumas vezes na janela. Bom, talvez mais do
quer algumas, algo mais próximo de uma dúzia ou duas. O barulho da mão encontrando-se
duramente com o vidro ressoou por toda a praça, que por algum motivo tinha uma
acústica muito boa.
Impacientou-se. Colou as mãos suadas de ansiedade
contra o vidro, e o nariz também, o que rapidamente criou um foco de vapor que,
se fosse mais jovem, menos preocupado e menos procurado por traição,
aproveitaria para poder desenhar uma carinha feliz.
O foco de vapor foi crescendo aos poucos, junto com
ótimo que passava ao esperar uma resposta. Pensou, por alguns segundos, ter
visto um par de olhos através do vapor. Deve ser só uma projeção do meu
subconsciente daqueles olhos apavorantes do Orfeu, pensou Soares, que
fizera um curso de psicologia freudiana na PUC do Rio de Janeiro e podia se
orgulhar de ser o único aluno com um histórico perfeito de presença.
-Quem é à essa hora, cacete?- disseram o par de
olhos, e a porta se abriu. No nariz de Soares.
-Ai!
-Opa! Cliente! É, diga, pois não, bem-vindo à nossa
pousada, não é muito limpa eu sei mas é acolhedora e hospitaleira e o café da
manhã é incluso eu troco os lençóis todo dia...
O homem que abriu a porta tinha mais ou menos o
formato de um barril de cerveja, peito protuberante como um pombo, cuja
qualidade maciça era superada apenas pelo de sua sólida pança coberta de pelos
brancos. Sua cabeça, também coberta de pelos brancos, continha uma testa
repleta de rugas e queimada de sol, e um par de óculos cujas alças eram
conectadas por aquele cordão escroto que separa os intelectuais franceses de
assistentes sociais.
-Então, você...
-Ermeval.
Soares se virou e viu a loja de botijões do
Ermeval.
-Então, você é o dono dali e dessa pousada também?
-Sim, sim senhor. Sim senhor. Comprei aquela lá da
frente, e há três anos comprei essa pousada. Quer dizer, na época, era um
meretrício. Mas eu dei uma limpada. Ah! Sim, senhor! Um dia, todos os negócios
desse pátio vão ser meus, sim senhor!
Como ele fala, pensou Soares.
-Vem cá, eu preciso de um quarto.
-O que/ Ah sim, sim, um quarto, temos vários
quartos vagos, o café da manhã é por nossa conta. Você... Quer um guia com as
melhores praias da cidade?
Ermeval aparecia-lhe vagamente vesgo atrás dos
óculos.
-Não, obrigado. Sinto que não vou sair muito do
quarto- disse Soares.
*****
O quarto, como o exterior da pousada, era feito de
madeira rústica, toras coladas umas às outras mais ou menos de qualquer
maneira. Era, porém, espaçoso e dotado de uma cama grossa e confortável, melhor
inclusive que a de seu apartamento. Sobre a cabeceira, estava pendurada uma
pintura pontilhista de péssimo gosto, mostrando uma raposa escondendo-se no
mato.
Não vou sair por um bom tempo, pensou Soares. Na verdade,
aquilo era uma mentira relativa. Teria que sair mais cedo ou mais tarde, para
não ser achado. Possivelmente de madrugada. Orfeu não parecia o tipo de pessoa
que suportaria muito bem alguém
escapando por entre seus dedos.
Dormiu com a roupa do corpo, exceto o sobretudo,
que deixou sobre uma cadeira.
*****
Soares havia perdido a noção de quanto tempo estava
esperando fora da tenda. Ficara em pé por dez minutos. Nos 15 minutos
seguintes, começara à alternar o peso entre uma perna e outra. Mais 20
minutos se passaram e ele logo estava
sentado em uma pedra, atormentando uma coluna de formigas com um graveto.
Uma pequena movimentação na tenda foi o sinal de
que precisava para se levantar.
O homem que saiu da tenda estava na metade final de
sua vida, usava uma farda militar e óculos escuros, e se chamava Carlos
Marighella.
-Ele não está falando nada, nada mesmo. É a sua
deixa, Major.
E Major Soares entrou na tenda, pronto para cumprir
o seu dever.
*****
-Um, dois, três, quatro!
-Ianques vão pagar caro!
-Quatro, três, dois, um!
-Vamos castrar cada um!
Para uma guerrilha secreta, até que aquele pessoal
gostava bastante de cantar. Soares achara as rimas péssimas no começo, mas
agora, estava até gostando, e achando a cantoria estimulante.
Era 14 de Janeiro de 1965, 8 meses depois do
primeiro bombardeio americano na costa do Nordeste. Soares se formara em
jornalismo no ano retrasado, e agora, tinha certeza, encontrara a matéria do
Século, algo que seria usado como material de referência para os estudos
relacionados àquela guerra pelos próximos 50 anos.
Quando era pequeno, e na verdade até pouco tempo
atrás, nutria um certo ressentimento contra sua mãe, que, por algum motivo
desconhecido- provavelmente para que isso lhe ajudasse à ter uma brilhante
carreira no Exército Brasileiro- lhe dera o nome “Major”. Nem General, nem
Coronel, nem mesmo Tenente-Coronel. Só Major.
Por muito tempo as brincadeiras lhe perseguiram,
mas agora era ele quem ria por último.
A cidade do Rio de Janeiro fora tomada na véspera
de Natal, após um bombardeio particularmente intenso e um desembarque anfíbio
na Praia de Copacabana que pusera fim à quase 3 semanas de combate férreo pela
cidade. Major Soares estava com o 3° Exército de Infantaria no Vale do
Jequitinhonha, em Minas Gerais. Cobria o cerco final às últimas forças
insurgentes lideradas pelo General Humberto Castelo-Branco, oficial do EB que
se sublevara contra o Governo Federal antes mesmo dos primeiros bombardeios americanos.
Após a declaração de guerra, muitos outros se juntaram à ele.
Castelo-Branco, o primeiro à se amotinar e um dos
últimos à desistir, caía justamente no dia em que os americanos, finalmente
chegando com o apoio militar que haviam prometido, tomaram a segunda maior
cidade do país e sua antiga capital.
No retorno ao Rio de Janeiro, porém, uma nova
tensão havia se instalado, mais intensa, embora talvez mais sutil, que a que
precedera a queda da cidade. As pessoas murmuravam sobre uma força militar que havia
recuado para as florestas e estava se tornando uma pedra no sapato dos
americanos, dificultando a manutenção de suas forças na Zona Norte e o
abastecimento dos soldados na frente de combate da Serra Fluminense, e, no
geral, fazendo diabruras.
Soares conseguiu detalhes sobre eles facilmente,
através de colegas de faculdade ligados à grupos subversivos antes da invasão.
Estes tinham pulado fora após a invasão porque, na hora do vamos ver, não
conseguiram lidar com a idéia de levar tiros ou suportar chuvas de bombas por
uma causa que, no fim das contas, era contra seus interesses. Ainda assim,
mantiveram contato com alguns elementos mais radicais, mais dedicados e, vá lá,
mais insanos, que, estes sim, tinham fugido para a floresta urbana para
atormentar as forças de ocupação.
Mais especificamente, Soares conhecia Márcio
Tavares, um revolucionário maricas do Departamento de Direito, que abandonara
as discussões sobre revolução semanas depois do primeiro bombardeio em Natal, e
se convertera à religião da economia, mais especificamente à seita conhecida
como Escola de Chicago. Márcio “não queria ter nada com essas porras
revolucionárias”, mas “aceitava um trago de vez em quando”. Por não querer se
meter com assuntos subversivos, se desligara de todos os que ainda se mantinham
nessa atividade, mas, convenientemente, esquecera de sua namorada, Samara
Machel, irmã de Samir Machel(Departamento de Assistência Social), que, ele
sim(ou melhor, não) não abandonara as idéias revolucionárias, mas, para manter
a segurança de sua família, especificamente de sua querida irmã
Samara(Departamento de Comunicação), se dedicava agora exclusivamente às
operações de apoio logístico, como verificar se escutas estavam sendo feitas,
ou entregar pãezinhos. Samir Machel, aí sim, conhecia pessoas conectadas
diretamente à luta- mais especificamente, um tal de Marcello Wallace(sem ensino
superior), que, segundo Samir, poderia levá-lo diretamente ao mítico Carlos
Marighella, figura revolucionária que, segundo alguns, tinha sido oficial do exército
e agora agia independente, e, segundo outros, era apenas um aventureiro
buscando riqueza e glória às custas de ambos os lados da guerra, entre uma
miríade de outras histórias menores e mais improváveis.
-Só uma coisa- disse Samir, à Soares, que agora se
perguntava porque as memórias estavam passando tão rápido e tão fora de ordem-
Fale que você é do Exército. Vai ser mais fácil entrar desse jeito.
-Exército? Mas Samuel, eu não tenho experiência
militar!
-É Samir- Soares não conhecia aquele cara muito,
tendo apenas lembranças vagas de ter cobiçado a sua irmã quando era um reles
universitário- E você já tem uma vantagem bem maior que qualquer pessoa nesse
quesito. Seu nome é militar, cacete!
-Major? Mas quem vai cair numa besteira dessas!
-Você está em todos os registros como “Major“.
Carteira de identidade, de motorista, etcétera. É só dizer que você esconde o
seu primeiro nome para proteger a sua família, eles vão acreditar!
-Tolice! Porque eu esconderia o meu primeiro nome
pra proteger a minha família da perseguição? Se a questão é a família, porque
não logo o segundo?
-Então você é Major? Não é meio jovem pra isso?-
Perguntou Marcello Wallace, em outra memória passando rápido e com hora para
acabar.
-É... Sim! Me promoveram rápido porque eu era bom.
É isso.
-Excelente! Marighella vai adorar ouvir essa
história. Pessoas com a sua experiência estão mesmo em falta.
-Então... Eu fui aceito?
-Pera lá! Não é tão rápido. Vai ter que fazer um
teste primeiro.
-Ah é? Que tipo de teste?
-Bom...
-...
-...Tá, não tem teste. Me siga, vou te apresentar
ao chefe.
-Mas agora?
-Ué, claro, já estamos na base.
Soares subitamente viu-se no meio da floresta.
Havia passado por uma caminhada relativamente longa pela Tijuca, embora nada no
seu corpo lhe dissesse isso, tirando, talvez, uma leve sensação de queimação na
panturrilha e a marca de picada de um carrapato que ele não se lembrava de ter
morto.
-Base? Mas espera, é que eu não to vendo nada.
-Mas esse é o objetivo. Veja só.
Marcelo mexeu algumas folhas, e uma clareira,
povoada por várias tendas e homens barbudos e suados apareceu diante de seus
olhos. Pôs a folha de volta no lugar, e, de súbito, a pequena aldeia
verde-oliva tinha desaparecido- e ainda
assim era possível ver resquícios de clareira através das frestas daquela mata
densa, ma non troppo.
-Intrigante.
-É uma técnica de camuflagem bastante simples que
eu desenvolvi. Se quiser, eu te explico.
-Melhor não. Eu não vou entender de qualquer
maneira.
Marcello o encarou por um segundo e Soares se
lembrou de seu disfarce.
-Ah... Quer dizer... Me explica depois.
-Ah, claro. Tranquilo.
Marcello separou as folhas novamente e Soares
entrou no acampamento.
Os guerrilheiros montaram quase que espontaneamente
um círculo ao redor dele. E o círculo estava se fechando.
Só então Soares percebeu que estava sendo conduzido
até um toco de árvore, onde um homem agachado e virado de costas dava golpes de
facão em... algo.
-Que porra é essa que ta acontecendo- murmurou
Soares para Wallace.
-Relaxa- disse Wallace, enquanto Soares ouvia o
barulho de armas sendo carregadas.
-Chefe- disse Marcello para o homem agachado- Temos
mais um.
O homem agachado lentamente se levantou e
virou-se.Era calvo, usava óculos escuros, fumava casualmente um charuto e se
chamava Marighella. Comandante Carlos Marighella. Estava no uniforme.
Sobre a mesa, jazia um salame fatiado.
-Ele é um Major dissidente do EB. Tem vasta
experiência de luta.
-Do que está falando- murmurou Soares para Wallace
do canto da boca, o resto serrado- Eu nunca disse que tinha experiência de
luta!
-Estou tentando ajudar- murmurou Wallace de volta.
-Então pare de tentar me ajudar.
-O que estão conversando aí? Não gosto de
segredos.- Marighella tirou o cigarro da boca e cuspiu no chão. Guardou o
salame no bolso do casaco.
-Eu estava em um grupo insurgente- disse Soares,
para o espanto de Wallace, e, na verdade, de todos que conseguiram ouvir.
Marighella subitamente ficou mais interessado, embora não demonstrasse tanto
por trás dos óculos.
-Insurgente, é?
-É. Tínhamos duas células operando, uma no Espírito
Santo, outra em Maricá. Mas eu não durei lá. Não podia ficar parado enquanto
meus companheiros tentavam acabar com a democracia.
-Prossiga.
-Explodi o arsenal do quartel quando ele foi
cercado por tropas legalistas. Com isso, a base foi tomada no mesmo dia. Me
entreguei, e tentei contar minha história. Mas não me ouviram. Tive que fugir
da cadeia para escapar da execução.
Marighella tirou uma fatia de salame do bolso e
mordiscou-a.
-Quando você acha que pode começar?
-Que tal... Hoje mesmo?
-Hoje mesmo.- ele riu.- É bom isso, chegou num dia
excelente. Espero que goste de cantoria.
*****
-Um, dois, três, quatro!
-Ianques vão pagar caro!
-Quatro, três, dois, um!
-Vamos castrar cada um!
-Que horas são?- perguntou Wallace à Soares.
-Porque? Aliás, primeiro vocês não deveriam me
dizer qual é a missão?
-Só diga. Já estamos perto do ponto.
A caminhada na floresta estava sendo relativamente
dura para Soares. Não ajudava o fato de que ele nunca havia sido um aluno de
destaque em esportes, ou que esta era a segunda caminhada pela Floresta
Tropical Atlântica em um espaço de três horas. Bom, eu deveria ter imaginado
que seria uma droga, pensou Soares. Mas uma coisa menos drogástica,
talvez. Talvez no nível de, não sei, ter que diminuir a velocidade do andar ao
lado da vovó para que ela não fique sozinha e abandonada lá atrás, não no
sentido de marchar em alta velocidade com vários homens suados em uniformes que
provavelmente já estão gastos desde a Guerra do Paraguai, em um trecho
indistinto de floresta tropical baforenta, tendo um negão particularmente
zangado e suado na sua cola, ameaçando descobrir o seu disfarce à todo momento.
E pedindo as horas.
-9h30- respondeu Soares, findas as suas longas
ponderações.
-Aqui é o Exército, porra! Me dê a hora exata.
-Tá bom, só um segundo... 9h28.
-Droga! Falta um minuto. Companhia! Apertar o
passo!
A marcha tornou-se mais veloz, juntamente com a
cantoria. Soares teve que andar mais rápido e quase tropeçou em algumas raízes
mesquinhas que se atreveram à ficar em seu caminho.
A floresta se parecia com qualquer outra floresta,
e aquele trecho de floresta com qualquer outro trecho de floresta; verdejante,
mormacenta, densamente povoada por bichos cansados e sufocados pela abundância
de vida. Mesmo os mosquitos pareciam mais preguiçosos naquele calor infame de
Janeiro, arrogantemente sobrevoando suas vítimas com negligente lenteza,
sabendo que, mesmo que provavelmente não consigam ali, algum outro animal cheio
de vida e de sangueira, na falta de melhor expressão, pular diretamente em seus
ferrões.
E então chegaram à uma anticlimática estrada de
paralelepípedos.
-Ok, que horas são agora?- disse Wallace, tenso.
-Hã... 9h29.
-Cacete! Mas e o Comandante disse que o jipe
passava à essa hora em ponto! Major, tem certeza?
Soares pensou por um instante se, de fato, seu
relógio não estava ligeiramente adiantado.
-Capitão, permissão para descansar- disse um
soldado, bufando ofegante com a língua para fora.- A companhia toda está
esbaforida.
-Mas que besteira! Foi apenas um tiro de cem metros
na floresta densa, à 35 graus!
-Capitão, tem um jipe passando!
-Mas o que?... Porra, é o nosso! Companhia, é o
sinal! Senta a Pua!
Wallace e os outros abriram fogo contra um jipe que
passava. Major Soares nunca tinha segurado uma arma na vida.
-Estão escondidos! Estão se protegendo atrás da
fuselagem!- berrou Marcelo, de trás de um arbusto.
Soares não via nada, apenas algumas árvores,
entrecortadas de pedaços de paralelepípedos e de placas de metal, ou algo
assim. Talvez a adrenalina tenha danificado minha visão, pensou. Ou
talvez seja a camuflagem.
Esses pensamentos foram interrompidos pelo grito de
um soldado do lado de Soares.
-Eu vou entrar!- ele disse, segurando o capacete.
-Use a baioneta! Soares, cubra ele!- berrou
Wallace.
-O que?
-Atira, caralho! Atira pra caralho!
Soares muito desleixadamente ergueu o rifle. Era
pesado- mais pesado do que imaginava. Pelo visor, mirou no jipe.
Também pelo visor, viu como, por causa de sua
inatividade, a porta do jipe se abriu, acertou o soldado na cabeça, que então
levou um tiro de revólver.
-Cacete, Soares! Atira nele! Atira nele!
O jipe disparou à distância, sambando pela estrada
de paralelepípedos. Soares tirou o visor.
Subitamente, se sentiu sendo erguido do chão.
Marcello estava com os punhos em seu uniforme, erguendo-o do chão. Seus olhos
inchados pareciam prestes à explodir e soltar raiva líquida.
-Porra Soares! Que incompetência foi essa?! Não
sabe atirar, seu viado?!
Do alto de sua prisão física nos braços de Marcello,
Soares pôde ver os companheiros de luta carregando o soldado caído.
-Por sua culpa a missão está arruinada! Seu bosta!
Marcello soltou Soares, embora soltar seja talvez
uma palavra inadequada. Ele foi parar longe e suas costas colidiram com uma
árvore em alta velocidade.
-Vai! Vamos voltar!
Marcello fez um sinal para um dos soldados que
carregava o companheiro caído.
-Ligue para o Comandante. Diga que temos um código
verde.
Soares sentiu uma forte contusão e, tinha quase
certeza, uma farpa(horror dos horrores!) nas costas. Limpou a terra do uniforme
e pouco à pouco, se levantou.
-Espera... Código verde, o que isso significa?
-Fracasso da missão provocado por novato- disse
Marcello, com os olhos passando por um inchaço pouco amigável.
*****
Fracasso absoluto da missão. Era só nisso que
conseguia pensar agora. Soares, isso é.
Era o seu segundo dia ao lado dos resistentes de
Marighella- ou o “Comando da Montanha” como pretendia chamá-los no artigo que
ia escrever- e ainda não tinha conseguido escrever uma linha sequer. Bom, na
verdade, em teoria tinha escrito “O Comando da Montanha” várias vezes na
máquina de escrever que trouxera consigo- a única coisa que trouxera consigo,
na verdade.
Tentou olhar ao seu redor para arranjar inspiração.
O lugar onde dormia atualmente era uma tenda feita de um tipo de tecido grosso,
áspero, e verde. O tecido não era longo nem largo o suficiente para uma tenda
inteira, então o resto tinha sido completado com palha, amarrada com barbantes
mais ou menos de qualquer maneira. Sobre o chão de terra batida estava um
colchão furado, coberto de motivos florais puídos e descoloridos desenhados por
um artista sem talento, exceto na parte onde um chumaço de esponja pulava para
fora do colchão.
O único móvel, além de um cabide de chapéus onde
guardava sua jaqueta militar feita sob medida, era uma pequena escrivaninha.
Sobre a escrivaninha, nada de mais: um copo de cerveja de porcelana, daqueles
alemães com alça, adornado por um pequeno desenho de uma casa, daquelas alemãs
com reboco de madeira, e a inscrição “Munique- 1943”. Outros objetos incluíam
uma lamparina à óleo, o primeiro tomo de uma biografia de Dom Pedro II, uma
foto amassada de Che Guevara e o livro “Como Evitar Preocupações e Começar à
Viver” de Dale Carnegie.
Talvez mais significativamente, aquela escrivaninha
continha um pequeno porta-retrato, de um homem jovem, bastante bronzeado,
abraçado à uma mulher de vestido esvoaçante(de fato, parecia haver uma ventania
muito forte, pois o cabelo de todos eles estava eriçado), que ele segurava na
cintura, e uma criança pequena, que ele carregava no braço. Todos estavam
sorridentes.
Aquele homem estava morto, e esta era a sua tenda.
Soares vivia na tenda de um homem morto.
E isto porque tendas eram uma commodity rara na
floresta. Soares acabara de chegar e ficara sem tenda. Felizmente, no mesmo dia
em que chegara, um infeliz soldado- Soares ainda não descobrira o seu nome-
morrera em combate, na fracassada missão de Marcello Wallace. Soares pediu a
sua tenda, e foi aceito por consenso.
Pensou em talvez escrever sobre isso- sobre como
arrancara a tenda dos dedos de um homem morto- mas mudou de idéia. Histórias
como aquela, de traição e mesquinharia, não davam bons artigos.
No momento em que se preparava para jogar a décima
bolinha de papel na lata de lixo(ah é, tinha isso na tenda também), ouviu o
característico barulho de alguém empurrando o tecido para entrar.
-Podia bater primeiro- disse Soares, jocosamente.
-Toc-toc, seu merda- disse a pessoa.
Soares mal teve tempo de se virar para ver quem o
xingara quando viu que, mais uma vez, estava sendo vigorosamente levantado por
Marcello Wallace.
-Guh... Porra Marcello, o que é agora?
-Você não é Major porra nenhuma! O que é? Espião
dos golpistas? Dos Americanos?!
O primeiro quase-enforcamento já tinha sido ruim, e
deixara Soares com algumas marcas vermelhas no pescoço, e uma farpa nas costas.
Mas aquilo era diferente. A raiva de Marcello alcançara outro nível. E agora,
ele estava sozinho.
-Mas o que você quer que eu diga? Já te mostrei
tudo!- disse Soares.
-Mostrou porra nenhuma! Só essa merda dessa
jaqueta. Você acha que eu nunca fui pro alfaiate? Qualquer um consegue uma
jaqueta militar!
Pense, Soares, pense. Pense com suas pequenas
células cinzentas- pensou, redundantemente, Soares.
-Olha só- disse Wallace, entre os dentes- é
bacanudo você querer se juntar à guerrilha. Mas vou dizer uma coisa, você não é
Major nem fodendo. Um Major não bota seus homens em perigo daquela maneira. Um
Major não fica passivo diante da morte de um de seus homens, nem toma a tenda
dele quando morre. Eu conhecia aquele homem, Soares, seu merda! Era um de
nossos melhores. Estava conosco desde o princípio. Você chega, e no primeiro
dia, ele morre, bem no meio de uma missão importante. Então ou você é um espião
competente, ou é um milico incompetente. E eu acho que eu sei o que você é.
Marcello atirou Soares contra o espelho(é verdade,
tinha isso também) grudado na lona da tenda. Soares bateu contra o espelho, que
quebrou, e escorregou pela lona, caindo na escrivaninha, que virou, deixando
cair todos os objetos valiosos.
Só então Soares olhou para cima e viu que Marcello
estava praticamente em lágrimas.
-Eu... Conhecia aquele homem, porra!
Os soluços de Marcello ecoaram por toda a larga
lona e palha da tenda.
Ele fungou forte, e logo se recompôs.
Infelizmente, “se recompor” significava em termos
mais práticos que ele mais uma vez estava erguendo Soares pelo pescoço.
- ...A questão é, você pode ficar aqui, e eu não
vou liberar nada, mas vamos ter que estabelecer algumas regras.
-Regras? Certo- Soares engoliu em seco.
-Primeira regra: Essa conversa não ocorreu.
Hum, circular, pensou Soares, e disse: Certo.
-Segunda regra: Essa conversa NÃO ocorreu.
Eu sou a referência do Jack.
-Terceira regra: Se eu suspeitar que você está nos
entregando, estouro teus miolos ou te entrego pro Marighella.
-...Ok.
-Mais ênfase!
-Ok!
-Quarta regra: Você obedece primeiro á mim, depois
ao Marighella, depois à Deus e só então à você mesmo.
-...Certo.
-Eu sou o dono da sua bunda agora. Se responder pra
mim ou agir de forma insolente como faz geralmente, eu te estouro os miolos. À
partir de agora, você obedece à mim.
-...
-Quinta regra.
-Mas, pera, pera... Aquela não foi a quinta regra?
-Qual?
-Ham... “Eu sou o dono da sua bunda agora”.
-Claro que não! Essa foi só uma adição à regra
cinco. Você acha que eu sou o quê, redundante?
-Certo. Continue, senhor.
-Ok. Sexta regra.
-Mas... Não estávamos na quinta?
-Eu falei pra me interromper, seu filho da puta?
Ok, sétima regra: não me interrompa.
Isso vai demorar muito, pensou Soares.
*****
Depois de trinta e duas regras, mas que na verdade
eram nove, ou dez, se contasse a adição da regra número cinco, Marcello
finalmente soltou Soares.
-Agora. Preciso que me diga uma coisa.- disse Marcello.
-O que?
-Vou te ajudar à sobreviver. Mas ta difícil.
-Porque?
-Essencialmente, Marighella quer a sua cabeça.
Soares pensou em falar algo, mas mudou de idéia
rapidamente. Ele sabia que aquilo era mentira. A verdade é que a tão temida
guerrilha de Marighella, a pedra no sapato dos americanos, estava reduzida à um
grupo de vinte à trinta gatos pingados com cada vez mais dificuldade para
recrutar quem quer que seja. A chegada de Soares, na verdade, tinha sido uma
benção.
Mas isso não importava para Marcello. Ele deixara
bem claro para Soares que ele era um incompetente que não estava contribuindo
para a guerrilha, o que, no fundo, era verdade. O que importava era: Marcello é
quem podia potencialmente estragar o segredo de Soares, o que, por mais necessitado
que Marighella estivesse em matéria de homens capazes de lutar, sem dúvida
levaria ao seu fuzilamento.
Então, se o importante era utilidade, é óbvio que o
que Marcello queria era que Soares se tornasse útil de alguma maneira. Assim,
ele poderia mantê-lo sob sua asa como um escravo pessoal, e não ficar com a
consciência pesada de saber um segredo que tinha potencial para destruir a
guerrilha e não ter feito nada à respeito.
-Já sei... Você quer que eu me torne útil para a
guerrilha, não é? Para que Marighella não acabe comigo?
Os olhos de Marcello se arregalaram, se é que isso
era possível.
-Como fez isso?
-Raciocínio dedutivo- disse Marcello com, um
sorriso triunfal.
-Sei qual é a tua... Espião. Mas, não é todo mundo
que consegue fazer isso. Deveria largar a guerrilha e virar, sei lá, detetive.
Fugir dessa guerra.
Quem sabe, pensou Soares.
-Enfim, é, encontre algo em que você é bom e eu o
indicarei para Marighella. Isso vai salvar o seu rabo.
-Certo.
Por dentro, Soares estava, assim, meio tenso. Mas
em que que eu sou bom afinal? Só sei escrever. É o que eu faço. Sou apenas o
carteiro. Digo... O jornalista. O jornalista infiltrado.
-Eu... Posso escrever o relatório- disse Soares.
-Relatório?- Marcello riu.- Onde acha que você
está? No Exército Americano? Quer um cafezinho também? Não tem nem papel aqui,
Mané.
Soares olhou para o lado, para a lata de lixo onde
tinha jogado suas bolas de papel com os textos ruins. Daí lembrou que isso era
uma memória dentro de um sonho, e que portanto não precisava fazer sentido.
E o que mais eu sei fazer? Vamos, inventa algo,
Soares... Algo... Algo que me deixe longe da linha de fogo! Sim! Essa é boa!
-Eu sei limpar, cozinhar, montar tendas...
-Montar tendas? Então porque não montou a sua
própria?
Inventa uma mentira rápido pra cobrir a anterior!
Meus Deus, você é muito burro!
-Eu... Torturo! Torturo!
Marcello de repente recuou seu pescoço para trás e
ficou encarando-o, estrábico.
-Tortura?
-É... Eu tenho uma experiência vaga com isso.
-Que sujeira. Tortura, cara?
Soares engoliu em seco. Talvez não tenha sido
uma boa idéia.
-É.
Marcello continuou encarando-o, dessa vez virando o
pescoço, com um olhar de suspeita.
-Se bem que... Talvez precisemos extrair algumas
informações no futuro.
Soares relaxou.
-Vou falar com Marighella. Você acabou de se tornar
útil.
*****
O homem que saiu da tenda estava na metade final de
sua vida, usava uma farda militar e óculos escuros, e se chamava Carlos
Marighella.
-Ele não está falando nada, nada mesmo. É a sua
deixa, Major.
E Major Soares entrou na tenda, pronto para cumprir
o seu dever.
A tenda, antes um depósito de suprimentos
alimentares, tinha sido convertida em uma verdadeira sala de tortura.
No meio da sala, havia uma cadeira de madeira
desgastada e riscada, com correias nos encostos. Sentado na cadeira, estava um
homem. Sobre o homem, estava um saco.
Soares retirou o saco.
-Ah, que beleza, fui capturado- disse o homem. Era
jovem e tinha um bigode ralo. O calor da floresta, amplificado pelo saco, havia
embebido seu rosto de suor, e seu cabelo úmido ficara grudado à pele.
-Nome, por favor- disse Soares.
O homem não disse nada.
-Eu disse nome, por favor- disse Soares, nervoso.
-Você é novo nisso, não?- disse o homem.
-O que te faz achar isso?
-Nada em particular. Mas, na verdade, você acabou
de se entregar.
Pera, é verdade.
-Certo. Deixa eu pegar algo aqui.
Soares se dirigiu à uma pequena mesas de metal com
rodinhas, como a de um dentista. Na verdade, provavelmente pertencera à um
dentista.
Sobre a mesa, haviam vários instrumentos,
geralmente algo fálicos. Soares pegou um taco.
-É melhor você contar logo, senão vai levar nas
costelas!- gritou Soares.
O homem começou à rir.
-É... Sério isso? Que péssimo!
-Porra cara, eu estou tentando. Me passa a droga
das informações e você vai poder ir!
-Nunca!- retrucou, recuperando a seriedade.
-Droga, cara!
Soares balançou o taco no ar. Se preparou para
acertar o homem amarrado, sentado. Impotente. Viu a sombra de seu cajado no
rosto suado do homem.
Largou-o, e saiu da cabana.
Pôde sentir as lágrimas em seus olhos, quando viu o
hipopótamo amarelo.
-Mas... Cacete, quem é você?
-Quem é você, eu pergunto?- disse o hipopótamo.
-Bom, isso é uma pergunta idiota. Eu sou Major
Soares.
-E eu sou a porra de um hipopótamo amarelo. Esse é
o seu sonho, você me imaginou.
-Ah, é. Esqueci que esse é um sonho-memória.
-Enfim, detalhes. O que você pensa que está
fazendo? À qualquer momento, Marighella vai estar de volta.
-Eu... Eu não sei.
-O que você fez quando esse momento ocorreu na vida
real?
Soares fez silêncio.
O hipopótamo encarou.
Soares se controlou para não rir da idéia de um
hipopótamo o encarando.
O hipopótamo encarou mais.
Soares deu de ombros, e olhou para baixo com
acídia.
-Eu não sei.
-Diga.
-Eu...
-Diga!
-Torturei.
-De novo.
-Eu torturei aquele homem.
-Repita.
-Eu torturei aquele homem!
-Então volte lá dentro e faça isso de novo!
-...Não!
-Porque? Isso é só uma memória. Isso não mudará
nada. Tudo que era para ter acontecido, já aconteceu.
-Não! Eu posso mudar!
Só então Soares notou. Não estava mais na floresta.
Via raízes no chão. Raízes que cresciam, distorcidas, transformando-se em
folhagem, a folhagem ficando cada vez mais lisa e uniforme, como tecido. A
tenda crescera ao seu redor, como uma árvore.
Em sua mão, tinha o cassetete. Sares começou à suar
frio. A luz febril da lâmpada pendurada no alto da tenda penetrava e machucava
seus olhos, mas ele sabia que não podia olhar para baixo. Ainda assim, sentiu
algo puxando-o.
Abaixo de si, estava o homem que torturava, nu,
amarrado de cabeça para baixo, sangrando profusamente do ânus.
-Me tirem daqui!- Soares berrou.
-Seu desejo é uma ordem.
A tenda abriu-se, como um botão de rosa
desabrochando, suas paredes caindo ao chão como pétalas delicadas.
Do lado de fora, estava Marcello Wallace em uma
cadeira.
-Marcello, Marcello, me ajuda cara, eu não sei o
que está acontecendo- ofegou Soares sôfrego.
Então lhe ocorreu.
Marcello não estava usando o uniforme do Exército.
Estava usando o terno branco de Cassius.
Acima de seu sorriso alvo, estava a cratera do tiro
de Orfeu.
-P...Porra, Orfeu- disse Soares, suando frio, e, de
fato, tinha a impressão de derreter.
-Você quer sai daqui, patrão?- riu Cassius. -Pois
bem. Mas eu achei que fosse preferir algo vagamente mais cronológico.
-Qualquer coisa, mais me tire daqui.
-Ei, ei, calma, campeão. Você nem sabe as suas
opções ainda.
Soares se atirou sobre Cassius e ergueu-o pelo
pescoço. Ele parecia estranhamente leve.
-Porque... Porque está fazendo isso comigo?! HEIN?!
-Eu não estou fazendo nada- Cassius estalou os
dedos e Soares o soltou, incapaz de controlar as mãos. Elas ficaram rentes à
seu corpo, dormentes e moles. -É você que está fazendo isso consigo mesmo.
-Então o que você é suposto ser?
-E eu lá sei? Só sei o que eu sou suposto fazer: Te
mostrar as coisas como são. A realidade da qual você acha que escapou.
Cassius então atirou Soares, que colidiu com uma
árvore. Pode ser um sonho, mas a dor é bem real, pensava Soares em
agonia, se perguntando também se outra farpa entraria nas suas costas.
-Agora, vejamos o que podemos fazer- disse Cassius,
enquanto flutuava até a altura de Soares.- Eu posso fazer com que você termine
essa tortura. Seguiremos em ordem cronológica até o momento em que Marighella
reconhece a grandeza de suas habilidades de tortura e te torna o favorito da
tropa. Parece que tudo vai acabar bem. Mas daí, para evidenciar o drama da
situação, a gente vai cortar abruptamente para a cena chuvosa, em que o
Marighella já perdeu completamente a cabeça, e começa à ver traidores em toda
parte. E é nessa hora que você pula fora.
-V... v...
-Eu ouvi você dizer alguma coisa?
-Vá para o inferno.
-Certo. Então façamos da maneira mais dolorosa.
Em um bater de palmas de Cassius, tudo sumiu.
*****
Soares não estava mais pregado contra a árvore. Não
havia mais farpa nas suas costas.
O cenário ao seu redor parecia agora ligeiramente
mais montanhoso, cinzento.
Aonde será que estou, ele se perguntou. Maldito
negro mágico, ele chegou à pensar.
E então uma gota d’àgua caiu em sua cabeça.
-O QUE ESTÁ FAZENDO AÍ PARADO, SOARES? CONTINUE
MARCHANDO!
Olhou para trás. Era Marighella. O mesmo Marighella
de sempre, com a diferença que sua orelha estava enfaixada e ele parecia
visivelmente mais irritado.
Ai, não. Essa memória.
-Temos que continuar andando se quisermos chegar à
base, agora mecham-se! MECHAM-SE, CARALHO!
O declive era acentuado. Soares olhou para trás e
notou que estava sendo seguido por meia dúzia de soldados cansados,
maltrapilhos, carregando trouxas grandes demais para eles.
-Wallace, mapa, por favor.
Soares viu uma figura andando até Marighella, que
fumava um charuto, com raiva.
Mal pôde reconhecer Wallace: Estava mais magro, com
entradas em todos os lugares possíveis de sua cabeça, incluindo as têmporas.
Seus olhos estavam vermelhos de sangue e a jaqueta entreaberta deixava ver
algumas costelas.
-Deixa eu ver... F16... G16... G15... Cacete!
Estamos perto! Fica no alto dessa colina! Vamos lá, rapazes!
Soares se lembrava daquele dia. Não havia sido dos
melhores. Os ataques constantes às instalações do Exército Americano no Rio de
Janeiro haviam dado fama à guerrilha, mas também haviam atraído a atenção dos
próprios americanos, e a chegada de novos reforços havia dificultado as
operações de insurgência. Após um bombardeio particularmente intenso que
destruíra a base e os levara à acreditar que um ataque poderia vir à qualquer
momento, eles haviam recuado para a Serra Fluminense, não sem antes ter de
atravessar o subúrbio, o que levara à dispersão de boa parte do grupo.
E agora, estavam prestes à ser acolhidos por um
outro grupo resistente, perto de Teresópolis. Estranhamente, Soares não se
lembrava daquela parte.
Soares resolveu andar até Marcello, para descobrir
o que ocorreria em seguida. Estar em um evento que já tinha acontecido tinha
suas vantagens.
De perto, Marcello parecia ainda mais detonado. Seu
uniforme parecia que ia ceder diante da chuva à qualquer momento, de tão gasto
que estava. Sua pele estava gosmenta de lama e suor, e ele andava curvado
debaixo do peso de uma enorme mochila.
Soares o cutucou.
-Ei, Marcello... Como vai? Levantando muitas
pessoas com telecinese ultimamente?
Marcello pareceu não ouvir e continuou andando,
olhando meio para frente, meio para a estrada de terra à sua frente.
Acho que nem todas as projeções tem senso de humor,
pensou Soares.
-Marcello... Que grupo é esse que nós vamos
encontrar?
Marcello continuou mudo. Soares estava começando à
perder a esperança, mas quando ele começou à se distanciar para falar com outra
pessoa, Marcello respondeu, em uma voz rouca, quase inaudível.
-Recebemos uma chamada. Frente de Libertação
Fluminense. 100 metros. Estaremos lá logo.
Soares estava cada vez mais confuso. Nunca tinha
ouvido falar desse grupo. E, ainda assim, aquela memória começava á causar uma
coceira dentro de sua cabeça.
-Frente de Libertação Fluminense? Mas... Marcello,
você já ouviu falar disso?
-Não. E nem você. Mas é isso ou morrer. Continua
andando, espião.
Algumas cabeças se viraram ao som da palavra
“espião”. Soares decidiu se distanciar e continuar subindo, guardando seus
olhares para si.
Frente de Libertação Fluminense...
Queria tentar formular um pensamento, mas não
estava conseguindo. Algum barulho forte o estava impedindo de somar dois mais
dois.
Libertação...
O zumbido continuava, frenético, e Soares não tinha
idéia de onde vinha. Penetrava em seu ouvido como um baque surdo, constante.
Libertação...
Mas o que aquele avião estava fazendo ali?
Um motor de avião. Porra de avião, atrapalhando
meus pensamentos. Mas que porra é essa? Porque o Marighella está gritando na
minha cara? E porque...
Soares não viu o que o atingiu. Bateu a cabeça no
chão e, por um instante, viu tudo branco, mas rapidamente recuperou a visão,
sentindo as veias de sangue em sua cabeça latejando.
Demorou alguns segundos para perceber que havia um
soldado em cima dele. Suas pernas, onde ele estava deitado, estavam úmidas.
Avião...
Ah, não.
E então veio. A última peça do quebra-cabeça.
Nãonãonãonãonãonãonão
Soares tentou se arrastar para longe. Em um único
impulso, tirou suas pernas debaixo do soldado, só para notar que estavam
encharcadas de sangue. O cheiro forte e o calor do líquido deixaram Soares
tonto. Ele já vira sangue, mas nunca tanto junto.
Tentou correr para longe. Sentia suas pernas leves,
ágeis. A perda de peso realmente o dera uma agilidade que era quase atlética.
Em poucos minutos, já estava na mata fechada. Ainda
assim corria.
O barulho insuportável dos motores de avião
continuava.
Agora se lembrava de tudo.
No canto do seu olho, podia ver tudo que tinha
acontecido. Todos os eventos que estariam acontecendo e que na verdade, já
tinham acontecido, e que aconteceriam da mesma maneira, com ou sem a sua
presença.
Viu as explosões. As bombas jogadas de aviões
confortáveis, zunindo quilômetros acima. Os corpos feridos, sendo levados até
uma clareira. Uma clareira onde não estava, nem nunca estivera, a Frente de
Libertação Fluminense.
Viu Marighella gritando, e amaldiçoando todos ao
seu redor. Viu sua expressão de descrença se tornar uma de decepção, depois
raiva, e depois... Bom, apenas raiva.
Viu ele tomar um revólver de suas mãos e atirar em
uma pessoa, depois duas, depois três. Viu ele exigir sangue. Exigir execuções.
Exigir a morte de todos no grupo, à menos que o infiltrado que os colocara na
armadilha se entregasse.
E, no meio do discurso apaixonado e da fúria
assassina daquele homem que um dia fora são, viu o olhar vazio de Marcello. A
fome esvaziara seu rosto, mas inchara seus olhos, que agora o encaravam
fixamente. Ele podia estar apenas desolado, perdido em seus pensamentos. Mas
Soares sabia, no fundo, o que ele estava pensando. O espião havia levado à
isso; à morte de quase toda a guerrilha. O pacto não importava mais.
Ele seria delatado ainda aquela noite.
Havia apenas uma escolha: fugir, antes de ser
delatado e Marighella decidir desossá-lo, ou coisa pior.
Ele já tomara aquela decisão.
Corria sem parar, mas a floresta, subitamente,
acabou. As árvores sumiram. Acima de si, havia apenas o céu. Abaixo de si,
havia apenas o abismo.
Enquanto caía rumo à sua morte, se perguntou, uma
última vez, se aquilo era mesmo um sonho.
*****
Soares acordou, em um sobressalto.
-Cacete, esse foi o pior pesadelo da minha vida-
disse, quase instintivamente.
E ainda assim, é tudo realidade, pensou, mas essas
considerações foram interrompidas por um barulho.
-Droga, ele já acordou- disse uma das sombras.
-Ah foda-se, isso não muda o plano- disse a outra
voz, bem alto para quem era suposto estar escondido.
-Que porra é essa?- disse Soares, ainda sem entender
nada. Ainda não se levantara, e estava olhando para o feioso quadro da raposa,
que o encarara durante todo o sono.
-Rápido, joga o saco- disse a primeira vez.
-É, ta. Senhor Major Soares, em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo, você está preso por alta traição à República Legalista do
Brasil!
Conforme a sombra colocava um saco de plástico em
sua cabeça, Soares começava à pensar qual, entre o dia que acabara de viver ou
o dia que acabara de reviver, havia sido o pior dia de sua vida.
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