segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 21

Capítulo 30




Camilla cutucou novamente os olhos enquanto bocejava, limpando dos seus olhos a remela da noite anterior e esfregando para fora de si o sono. A noite, ontem, fora longa; pouco depois de decidir que ligaria para D’Este, o telefone tocou, como que por mágica. Do outro lado da linha, no entanto, escutou não a voz de D’Este e sim a de Henrique. Usando meias-palavras e se desculpando por ser incômodo, convidou-a para jantar em um bar que, segundo ele soube, servia excelentes frutos do mar. Quando Camilla indagou-o a respeito de porque ele subitamente decidira chamá-la para sair após uma mudez prolongada e sequer um “oi”, Henrique emudeceu do outro lado da linha e, desconfortável, murmurou algo sobre assuntos não-resolvidos. Dando a ele uma colher de chá, Camilla apareceu em um deslumbrante vestido azul e um cachecol comprado na Rússia, completamente supérfluo no clima quente e úmido de Dezembro. Foi quando viu Anastácio Amásio, amigo de infância e advogado de Henrique, que o verdadeiro mote daquele jantar se revelou.
Dividiram salmão das corredeiras da Noruega, além de algumas ovas de peixe do Mar Negro, servidos sobre torradas brancas retangulares.
Amásio comeu silenciosamente em seu canto, parando de vez em quando para limpar a boca com o guardanapo com uma leveza que levava Camilla a se perguntar se aquilo realmente funcionava ou se ele inventara uma nova e curiosa maneira de passar o tempo.
A trilha sonora era de jazz instrumental; a conversa, animada. Ricardo, o namorado e pomo da discórdia, manteve-se cordial em todos os momentos; sorriu, falou pouco para não dizer besteiras, fez os comentários certos nas horas certas, evitou falar de relacionamentos. Camilla quase sentiu pena daquele homem inocente e sorridente, tragado até o centro daquela guerra baixa e desnecessária – e então lembrou que ele era a causa daquela discórdia, e a pena passou. No entanto, não sentia mais raiva daquele homem. Algumas pessoas, por piores que sejam no que fazem dissimuladamente, são boas demais em público para que possamos ter algo contra elas.
A noite começou fria, quando Camilla não apertou a mão de Henrique, e, resignado, ele se sentou em uma cadeira que rangia. Tentou ajustar-se nela. O ranger não passou.
Progressivamente, porém, o ambiente se acalmou. Trocaram piadas, muitas delas internas;
lembraram dos bons momentos. Mas aí Amásio abriu a boca. Falou algo sobre estar tarde e sobre os problemas que deveriam ser resolvidos, sempre limpando a boca com aquele gesto cuidadoso. A partir daí, a conversa ficou mais pragmática e o salmão perdeu seu sabor. Definiram quem ficaria com o apartamento na Avenida Marighella(ele), quem ficaria com a casa de praia no Ceará(ele), quem ficaria com o piano de cauda para a prática de piano, nunca usado(ela).
Definiram pensões, danos morais. Não precisaram definir a guarda das crianças, pois criança não havia.
A noite terminou como não havia começado: num cordial aperto de mãos. Camilla pegou o metrô de volta para casa enquanto os três cavalheiros fumavam fora do restaurante; Henrique teve a gentileza de pagar a conta. Uma coisa Anastácio Amásio acertara: era tarde, e a ansiedade que ela escondera tão bem ao longo da noite lhe valeu apenas 5 horas de sono. Pelo olhar que ele adquirira nos últimos dias, ela podia ver que Rafael estava de olho em seu emprego. Era hora de se manter vigilante, pensou, embora soubesse que, lá no fundo, nada disso importava mais.
Sem aviso, D’Este entrou pela porta. O dia nublado lá fora, o primeiro em muito tempo, emprestava à tudo uma qualidade azul soturna. Com quase 2 metros de altura, D’Este lembrava, nesse ambiente crepuscular, o gigante de um conto-de-fadas.
-Bom dia, camarada D’Este – cumprimentou cordialmente Camilla, competentemente encobrindo seu cansaço.
-Bom dia, camarada – ele respondeu laconicamente, e se sentou na cadeira á frente dela.
-Vim aqui fazer umas perguntas sobre o seu livro – disse, e logo se corrigiu mentalmente, já que era ele quem viera; ela meramente o chamara.
-Pensei que tivesse sido rejeitado? – ele murmurou com candor.
-E foi, mas sabe o que dizem, não? Nunca diga nunca,
-Estou confuso.
-Entenda que isso é um encontro extra-oficial. O motivo de você estar aqui é que certas páginas de seu manuscrito me intrigam.
D’Este se reclinou na sua cadeira, cruzando as pernas, e um novo sorriso atravessou seu rosto abaixo do bigode fino.
-Pois bem, Camarada – disse Camilla, colocando o dedo sobre o título garrafal do livro,
enquanto um raio caía do lado de fora – Preciso saber o quanto disso é verdade.
-Como assim?
-Esse Major Soares, por exemplo. Trata-se apenas de um veículo anódino, um narrador para sua história, ou... um personagem que realmente vivenciou o que você conta?
D’Este se reclina mais uma vez, e olha para o teto. – Algo me diz que já tivemos essa conversa. – diz.
-Sem gracinhas, por favor, Camarada – falou Camilla com rispidez – descarte por um segundo suas considerações metafísicas e me diga se existiu mesmo um Major Soares.
-Ele não poderia ter existido? Sua história é tão implausível assim?
Camilla repousa sua testa sobre o dedo indicador esticado, e então pôs-se a massagear suas têmporas. – É realmente notável sua incapacidade de me dar uma resposta clara, curta e concisa. A realidade física. Soares existiu em algum momento nela? Ou melhor... você conheceu Major Soares?
-Claro que o conheci – disse D’Este, com franqueza.
Os olhos de Camilla brilharam de esperança.
-Afinal eu estava vivo em Salvador naquela época. Havia detetives por toda parte. Eu conheci vários deles, conversei com eles, até fiquei amigo de um. Soares pode não ser um detetive de carne e osso, mas milhares de detetives vivem nele ao mesmo tempo. Ele é todos e nenhum ao mesmo tempo, e nesse sentido, é tão plausível e tão real quanto qualquer detetive poderia ser.
Camilla suspirou com desalento.
-Eu desisto. Camarada, é impossível arrancar qualquer resposta que seja sobre você Está dispensado.
-Pelo menos foi curto – disse D’Este, botando sobre a cabeça o chapéu de feltro que ficara passando de uma mão para a outra.
-Só uma coisa – disse Camilla.
-Pois não – respondeu D’Este, virando praticamente em uma pirueta.
Camilla abriu o manuscrito e, levando seus dedos pela suave superfície das páginas, foi passando-as em velocidade – páginas brancas revoando em um ambiente azul – até chegar á última.
Nela, estava escrito, bem no meio:

ESTÁ TERMINADO


Camilla pousou seu dedo indicador sobre aquelas palavras.
-Agora, me explique. Dados os eventos do final do livro, e a promessa que Soares faz no último capítulo, essa frase tem uma conotação possível. Ela quer dizer que Soares cumpriu a sua missão e está morto.
D’Este levantou-se de sua cadeira e começou à andar em direção à porta, sem dizer nada.
-Eu preciso saber – Camilla disse, de uma voz rouca – ele está vivo ou morto?
D’Este se virou e disse, com um semblante calmo:
-Morreu, morrendo, morrerá. A cronologia dos eventos, o próprio tempo é irrelevante aqui. Aquilo que foi posto em marcha não pode ser parado nem seu resultado modificado.
Camilla ainda estava pensando no significado daquela frase quando D’Este bateu a porta atrás de si.

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