segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 25

Capítulo 18


-Carona, senhor? Sou o último de meu batalhão.
A fileira de caminhões era longa, interminável. Os faróis formavam um tapete de estrelas no horizonte.
-Último sobrevivente, hã. Tem certeza que não é um desertor?
O caminhoneiro riu. Era um caminhoneiro gordo, sorridente, bigodudo. Devia ter uns quarenta anos, e tinha um sotaque sulista carregado.
-Vamos lá, rapaz. Entra aí atrás. Passe as suas informações pro nosso colega lá. O nome dele é Martin.
Subi o caminhão e entrei na lona. A única fonte de luz era dos faróis, que banhavam todo o interior da lona, e um isqueiro muito fraco de algum soldado participando de alguma conversa muito apaixonada.
-Cara, a Jane Fonda é a mais gostosa, sério.
-Não é não, é...
Eu entrei, e eles pararam de falar. Um silêncio curioso ocorreu. Não os culpo. Depois de alguns dias no deserto, eu devia mesmo estar parecendo um lixo.
Um vidro no fundo da lona se abriu.
-Martin, pega aí os registros desse rapaz!
Um soldado de boné respirou fundo e andou até mim.
-Seu nome, soldado.
-Tenente-capitão Dieter Freeman, senhor, da 4a Companhia de Infantaria.
O jovem abaixou o boné e disse:
“Ora, então sou eu que deveria estar batendo continência! Sargento Martin Stout, 5a Companhia de Infantaria Motorizada. Agora diga-me Tenente: Qual é a mais gostosa, a Jane Fonda em ‘Barbarella‘, ou a Marilyn Monroe em ‘Quanto Mais Quente, Melhor’?
O círculo todo começa à rir. É bom estar em casa.


*****


Não conseguia dormir. A guerra me tirara o sono, e eu iria precisar de um tempo para recuperá-lo.
Olhando pela fenda da lona, via apenas um resquício do deserto que ia ficando para trás, iluminado pelos faróis dos caminhões.
Pensei em Shorty e Wright. Aonde estariam eles?
Havíamos sido libertados pelos donos da fazenda Calipso, e, essencialmente, deixados á porta dela, com apenas o deserto entre nós e a liberdade. Já na saída, Wright e Shorty
jogaram a toalha. Desistiram. Não queriam mais saber de guerra. E, realmente, será que eu tenho como culpá-los? Ser capturado é foda. Muda toda a sua perspectiva. Se a própria guerra, a própria possibilidade constante e nunca descartável de se perder a vida, faz você dar mais valor à mesma, a captura, o estar com sua vida na mão de outra pessoa, faz com que você dê mais valor ainda à ela quando retoma dela o controle.
Eu poderia ter parado eles, mas que autoridade eu tinha? Além da minha óbvia autoridade de superior militar, mas deixa eu falar uma coisa: no Deserto, somos todos homens. Não existe esse negócio de superior. O único título meu que contava era o meu rifle. A arma faz o homem.
Resolvi deixá-los passar. Andamos juntos até a estrada mais próxima, e, na primeira encruzilhada, nos cumprimentamos, abraçamos e dissemos adeus. Pela primeira vez em dois anos, eu me separava deles.
Ando um pouco ao redor do caminhão. Todos levavam um sonho de bebê. Nem o meu andar incessante ao redor do caminhão os perturbou, e eles estavam dormindo em caixas.
A única pessoa acordada, é claro, era o motorista. Resolvi ir para a frente, conversar com ele.
Bati no pequeno vidro que separava nosso compartimento do dele. O gordo olhou de relance e bateu com o dedo indicador em um adesivo colado no vidro, que dizia:
FALAR COM O MOTORISTA APENAS EM CASO DE EMERGÊNCIA
...e então, levantou o polegar.
Ignorando seu aviso, bati uma segunda vez, e dessa vez, ele puxou a maçaneta que abria o vidro.
-O que você quer?- disse, no inconfundível sotaque do sul.
-Preciso fazer uma confissão- disse.
-Ah. Ora, desembucha.
-Eu sei de um plano secreto do exército insurgente para tomar Salvador.
-O quê, a ofensiva?- ele riu- Essa é notícia velha. Começou já faz algumas semanas. Porra, nós já perdemos a Amazônia, e estamos recuando mais ainda- o que é totalmente desnecessário, na minha opinião- só para salvar o que restou do litoral.
Sabe, Salvador é a chave de tudo, e é por isso que estamos recuando e reagrupando lá. Se perdermos a costa, perderemos todo o avanço que fizemos desde ‘64 e teremos que voltar á
bombardear o continente inteiro do ar.
-Bom, é o que já estamos fazendo.
-Porra- ele riu, e soltou uma baforada quente de seu charuto barato- porra, é verdade. Você é inteligente, hein? Mas é, é verdade, estamos só bombardeando. Não tem mais nenhuma ofensiva. Sinto falta delas. Quando o nosso Exército de fato conseguia algo. Lembra da tomada de Brasília?
Não pude conter o sorriso. “Se lembro”, eu disse. Fora o evento mais comentado de toda a guerra, e explorado como nunca pelos jornais. Todo dia saíam fotos dos corajosos pára-quedistas, ou um diagrama das etapas da conquista, ou uma entrevista com o herói americano, Cap. Rudolph McConnell, celebrado por todos os escoceses do meu bairro. Eu ainda não estava no Exército, mas como muitos jovens americanos, me alistei logo após aquela gloriosa demonstração de valentia.
-Aquilo foi incrível. É uma pena que não deu certo- ele disse.
-Porque?
Respirou fundo.
-Eu tenho um irmão que trabalha na Força Aérea. Ganha a vida bombardeando a Bolívia.
-Bolívia?!
-É. É o que ele me disse que aconteceu. Sabe, depois que avançamos em Minas Gerais e tomamos Brasília, os guerrilheiros da região não evaporaram. Eles foram para o Oeste. Começaram à vazar pela fronteira do Brasil, e chegaram na Bolívia e no Paraguai. Nos últimos seis meses, meu irmão tem saído de bases no Peru para bombardear Cochabamba.
-Cochabamba?
-É. É a capital da Bolívia, ou algo assim.
-Meu Deus.
-Eu sei. Ou seja, se recuarmos, não perdemos um país; perdemos três.
-Perdemos?
Ele terminou de fumar o charuto, e jogou-o pela janela, onde acertou um outro caminhão; estranhamente, parecia um caminhão civil.
-Perdemos?- eu repeti.
-O que disse, filho?
-Bom, acho que esses países nunca foram nossos.
Ele riu. -Bom, é, eu sei que em teoria não são nossos, eles tem presidentes, parlamentos, bandeira e tudo mais, mas a realidade é meio diferente. Esses países estão sendo tomados pelos comunistas, e os comunistas não estão conosco. É assim que funciona: se você não está conosco, você está com a URSS, e portanto está contra nós. É só que... É tudo tão mal-feito. Quer dizer, bombas? Sério? Nós vamos tentar seduzir essas pessoas pro nosso lado bombardeando elas? Eu não vejo como isso funciona. Se estivéssemos fazendo o que fizemos na Europa, dando doces para as crianças, tirando umas fotos, mandando comida- acho que até podia funcionar. Mas isso? Você não pode forçar alguém à te obedecer pra sempre. Não com bombas. Porra, eu passei em alguns lugares que me partiram o coração. Crianças tentando sugar as tetas de um vaca famélica, enquanto a sua mãe estava morta no chão, estripada. Nós chegamos em uma aldeia, tomamos ela e vamos embora, e em uma semana eles já estão acolhendo os comunistas de novo, porque pelo menos eles trazem comida. Quer dizer, tem comida estragando nos super-mercados do Kansas. Não podemos dar só um pouco? Não é nem pela guerra, é um mínimo de decência que eu esperaria de mim mesmo e dos meus compatriotas. Mesmo assim, eu posso garantir que a guerra também acabaria muito mais rápido. Além do quê, tem problemas para resolver na América também. Meu pai perdeu o emprego, minha irmã também. Eu ouvi que tem muitas fábricas quebrando, muitas pessoas desempregadas, muita pobreza. Não dava pra resolver os nossos próprios problemas antes de querer levar o capitalismo para outros países? Se não conseguimos resolver os problemas de nossa própria terra, o que nos torna melhores que os soviéticos?
Ele estava esbaforido quando terminou.
-De fato, tem muitos problemas para resolver, como...
-Como os negros- ele disse, seco.
Eu fui um pouco para trás.
-Os pretos, cara. Eles vão acabar com esse país. Eles já estão tomando o emprego de brancos decentes como o meu pai, e isso porque eles gostam de viver na indignidade e na sujeira. Por isso aceitam um salário menor. É isso que os socialistas querem. Que os pretos fiquem pobres e sujos o suficiente, para que eles acreditem no que eles dizem. Daí a termos um presidente socialista é um pulo. Quem sabe, até um presidente preto.
-É, sobre a minha descoberta...- eu disse, mudando de assunto.
-Ah, diga.
-É sobre uma fazenda. Fica no interior da Bahia. Os comunas estão usando como base, e um deles está coordenando a ofensiva.
Seus olhos brilharam.
-Sério? Isso é muito importante. Assim que chegarmos à Salvador, vou agendar uma conversa no telefone com o General Westmoreland. Pode ser o ponto de virada da guerra.
-É. Diga-me, esses caminhões civis...
-Suprimentos.
-Ah.
Os caminhões de suprimentos passavam muito mais rápido que os nossos. A lona de um se abriu do lado de trás. Vi uma mulher negra, linda como só as brasileiras sabem ser, olhando para fora, atrás de um par de óculos. Nossos olhares se cruzaram e, furtivamente, ela fechou a lona, voltando à sumir na noite escura.

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