quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 23

Capítulo 16


Dentro da casa, não demorou muito até homens tão mal-encarados como aqueles que haviam me ameaçado do lado de fora tirarem nossas armas. Depois disso, fui conduzido através de um corredor- iluminado por um pequeno vitral alaranjado, que captava a luz solar já alaranjada lá fora e dava à madeira uma mortiça tonalidade de chamas vivas- em direção à uma pequena sala. Nessa pequena sala, havia um pequeno homem, sentado em uma pequena e pouco fornida cama.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele me mandou entrar.
-Sente-se- Ele disse em um inglês perfeito.
-Você fala inglês?
-Eu gerencio nossos prisioneiros de guerra. Tenho que falar.
-Então sou um prisioneiro de guerra agora, correto?
-Até certo ponto, é sim. Mas sinceramente, estamos confusos.
-E porque, devo perguntar, “vocês” estão confusos?
Eu não tinha medo do homem, mas mesmo assim sabia que estava forçando a barra um pouco. Esses caras não costumam gostar de pensamento independente ou respostas espertas- pelo menos, acho que o comportamento de militares e para-militares não deve variar muito de país à país.
Ele era um homem baixinho. Como os outros, usava uma camisa dentro da qual suava profusamente. Sua pele tinha uma tonalidade escura, da genética como do trabalho ao sol, e seu bigode e cabelo eram grossos, oleosos e negros, sua pele, castigada e irregular, estava coberta de gotículas de suor, que pareciam esperar autorização sua para escorrer. Ele sorria.
-Nós não entendemos o que um grupo de soldados tão pequeno está fazendo fora do destacamento principal do Exército.
-Eles estavam todos em Santa Ítaca. Você matou eles, não lembra?
O sorriso desapareceu do rosto do homem, e um pesar pareceu tomar conta de seus olhos.
-As coisas saíram um pouco de controle. Mas é uma guerra. Para que certos objetivos sejam atingidos sacrifícios devem ser feitos.
Ele está com pena dos soldados? Possível, mas improvável. Não. É outra coisa.
-Suponho então que você e seu grupo escaparam de nosso ataque- disse ao homem, fazendo
um sinal para a porta. O vidro do quarto, também alaranjado, dava ao seu rosto uma qualidade ligeiramente sombria e enigmática.
-Sim. Mas não sou mais parte do Exército. Vocês estão mexendo com o grupo errado.
O homem solta uma risada surda.
-E você quer que eu acredite em você? O que te faz acreditar que eu posso te liberar só porque você é um desertor? Sabe quantos “desertores” eu já capturei? Tente enganar alguém menos experiente.
-Não somos só desertores. Somos desertores missionários.
-Ah é? E qual é essa suposta missão?
-Ajudar as pessoas da cidade que você destruiu.
Aquilo, novamente, pareceu afetar alguma parte no interior dele. É isso! Dano colateral é o seu medo. A morte de inocentes.
Completo rapidamente a frase:
-Estamos aqui para recuperar um de seus prisioneiros. Um homem. Sua mulher se chama Dona Pepé.
Pepé. As palavras fluíram para fora de minha boca enquanto meus lábios se tocavam duas vezes. À cada um dos toques, algo dentro dele se contorceu, se retorceu, se distorceu e estalou. Algo havia mudado.
-Pepé?- ele disse, com um abalo que cheirava estranhamente à esperança.
-Sim.
-Minha mulher.
-Sim, espera, o que?!
-Pepé... Penélope é minha mulher. Eu não a vejo há meses. Como ela está?
-Vo... Vo...
-É a guerra, meu amigo. Sacrifícios tem de ser feitos.
-Você não é um prisioneiro?
-Longe disso. Eu estou liderando a ofensiva. Bom, essa frente, em todo caso.
Eu deixei aquelas palavras se assentarem por alguns segundos. Pensei também em fazer algum comentário ou dois; Tentar descobrir exatamente que ofensiva, e de que frente ele estava falando.
-O que exatamente você está fazendo aqui, longe da sua família?- perguntei, ao invés disso.
O homem suspirou.
A minha família...a família- ele corrigiu- nem sempre aceita os sacrifícios necessários em uma época especial como essa. Por algum motivo, é mais fácil aceitar que somos forçados à fazer algo do que admitir que certas coisas ocorrem por decisão nossa.
Dizendo aquelas palavras, ele relaxou as costas até então impecavelmente eretas, e olhou para a janela do quarto, fazendo com que a luz batesse em seu rosto.
-Então você fingiu ter sido capturado pela guerrilha sendo que na verdade estava nela voluntariamente? Porque isso é bizarro.
Aquilo o irritou e ele olhou nos meus olhos.
-Essa conversa acabou. Os guardas irão escoltar você para fora do aparelho.
Os guardas apareceram na porta, olhando com certa severidade e impaciência. O homem fez um sinal com o braço, e eles vieram me puxando para fora da saleta.
-Soldado- eu ouvi o homem dizer, conforme o quarto ficava para trás.
-Sim.
-Diga para Pepé...
Ele hesitou.
-Sim.
-Diga à ela... Que eu estou morto.
E com essas palavras, eu me despedi do complexo, enquanto a luz alaranjada da janela dava lugar ao pálido crepúsculo azul do sertão.

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