quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 18

Capítulo 29



Meados de Dezembro. A umidade da cidade ganhava pouco à pouco um caráter de névoa quente inescrutável, como aquelas névoas verdes e densas de poluição que volta e meia faziam de vítimas letais os incautos azarados o suficiente para estar na rua no momento de sua chegada. Pea soup fog, era o nome que davam a elas na Inglaterra. Embora o calor em Salvador, ao contrário de sua enevoada contraparte Londrina, não matasse ninguém – com a exceção possível e sempre divulgada de alguns idosos incautos e azarados – isso não o tornava menos insuportável, e certamente não para Camilla Buri, ainda vivendo na casa de Rafael.
No momento, ele estava de pé sobre uma escrivaninha colada à parede, usando apenas um short que expunha uma quantidade indecente de pêlos e uma camisa vermelha desbotada – que ele usara pelo menos três vezes desde que ela chegara – com o logotipo puído de uma banda da qual ela nunca ouvira falar (GaRaj).
Intimidade é uma merda, pensou Camilla.
Rafael se debruçava sobre o ar-condicionado que tentava consertar em meio a aquele calor esfuziante, e, a julgar pelos primeiros ruídos encorajadores à sair da velha máquina, obtivera sucesso.
-E pimba – disse Rafael, pulando da escrivaninha e aterrissando em uma pilha de roupas, como as muitas que estavam espalhadas pela casa, altivas à sua própria maneira, indiferentes às pilhas de livros com que dividiam o espaço.
O ar-condicionado pouco à pouco domava o ambiente, e Camilla se recolheu à cama de Rafael – desarrumada, coberta pelo lençol mais amarrotado que já vira – e, colocando os pés na cama, pôs se a ler o manuscrito de Eu Matei Caetano Veloso.
Apesar de ter rejeitado oficialmente o livro, guardara-o extra-oficialmente consigo; podia não ser edificante, mas à essa altura, ela precisava saber como, exatamente, tudo aquilo terminaria.
-E aí, já falaram de como mataram Caetano? – perguntou Rafael, que já se sentara à escrivaninha e visitava um daqueles sites da Interlink que falavam de teorias da conspiração. Pelo que Camilla pudera ver, Rafael passava a maior parte de seu tempo livre
nesses sites, que contavam quase invariavelmente com um fundo preto, letras verdes e algumas fotos granuladas – de extra-terrestres, ou de operações secretas conduzidas pelo governo.
-Na verdade, ainda não, Rafa – disse Camilla, mal levantando o olhar do manuscrito.
-Olha, eu aposto que ele ainda está lá – disse Rafa, também sem tirar os olhos do monitor, digitando furiosamente.
-Quem?
-Caetano. Está no interior, lutando contra o Partido. Um amigo meu disse que o viu. Está velho, barbudo, mas em forma. Musculoso... Você acha que é possível permanecer musculoso até quando estamos velhos?
-Ele tem alguma evidência disso?
-Quem, o meu amigo?
Camilla meneou a cabeça e continuou lendo.
-É claro que ele tem. Ele o viu com os próprios olhos.
-Ele o viu, ou foi a Sinerdina que viu?
-Muito engraçado – reclamou Rafael, mal-humorado.
-Você gosta de teorias de conspiração – disse Camilla, se ajeitando na cama, aproximando os joelhos nus dobrados ao tronco.
-Gosto, mas não da expressão em si.
-Então escuta essa. E se a Sinerdina estiver sendo manufaturada pelo Partido?
-O que?
-Você ouviu. Todas as pessoas que usam Sinerdina são contra-revolucionários em potencial – hackers, pessoas que acreditam em teorias de conspiração, jovens da contra-cultura. E se a Sinerdina deixar eles mais burros, além de fazê-los gastar seu tempo tendo que realizar os serviços para arranjá-la?
-Isso é uma generalização grosseira – protestou Rafael. – Além do que, eu acho que é a Sinerdina que faz as pessoas abrirem a cabeça e considerarem a existência de que nem tudo que nos contam é verdade.
-Mas você entende onde eu estou querendo chegar, não? Que o governo pode estar transformando todos aqueles que se opõem a eles em dependentes químicos?
-É uma teoria idiota. – disse Rafael, resmungando.
Incapaz de conseguir alguma resposta de Rafael que não soasse passiva-agressiva, Camilla retornou ao seu livro.
É verdade que uma ou outra coisa do que D’Este dissera fazia sentido – ela realmente não saberia dizer se o mundo ao seu redor tinha qualquer semblante de realidade a mais do que um livro – mas ela ainda permanecia uma herege quando se tratava das conclusões mais práticas. Seria impossível recomendar um livro como esse ao Partido, lançando uma crítica daquilo que representava a revolução, sem ter nenhuma fonte – se é que elas existiam, ou não passavam de mera invencionice. O problema maior seria o de dizer se aquilo havia acontecido ou não. Seria no mínimo desonesto vender como sendo histórico um livro que de história nada tem; concepções alternativas do que seria o tempo, a história, o fato e a ficção a parte, certos eventos são percebidos pelas pessoas como tendo ocorrido. A história ainda era um evento atrás do outro.
Algumas coisas a haviam chocado: a tomada de Salvador fora substituída por um infame concerto de rock, os artistas dos anos 60 foram pintados em luzes pouco elogiosas, o Partido estava completamente ausente dos eventos e a morte de Caetano Veloso em particular havia sido inusitada e pouco ortodoxa, para dizer o mínimo.
Eram todos eventos que tinham ocorrido, e que estavam marcados a ferro na sua memória após tê-los visto inúmeras vezes na escola e novamente na faculdade, com mais profundidade. Mas a descrição que lera nos livros didáticos e a história contada por D’Este eram tão diferentes, tão contrastantes no eixo central e nos melhores detalhes, que ela começava a se perguntar o que era real, e o que não era. Era como olhar através do espelho e encontrar a si mesma vestida de Alice: uma versão paralela e similar, mas mais leve e estranha que o mundo que ela habitava, um mundo despido da narrativa prometêica do Partido em prol de algo mais prosaico. Um poema épico versus uma tirinha de jornal. Um dos dois era certamente real: na base de tudo, ambos contavam os mesmos eventos, vivenciados por pessoas diferentes. Mas até que ponto o ponto de vista era uma influência, até que ponto não passava de uma enganação, e até que ponto ambas as narrativas eram verídicas no seio de uma realidade ficcional?
Sei lá, mil coisas.
Um último ponto intrigava Camilla. Da forma como Major Sores era descrito, ela sentia que já o conhecia. Mas não era como se fosse um personagem extremamente bem-
desenvolvido; não, sua força vinha de outro lugar ; como se já o tivesse conhecido antes. Como se uma pessoa tivesse tirado suas qualidades de Soares, e vice-versa. Foi então que lhe veio a idéia: marcaria mais uma vez com D’Este para averiguar isso.

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