domingo, 22 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 20

Capítulo 14


Nós continuamos subindo. E subindo. E subindo.
Afinal, por quanto tempo subimos?
Importa?
O topo se assemelhava ao horizonte, um horizonte curvo, uma terra côncava. Uma terra magra, esfomeada, com uma curvatura na barriga por falta de comida. O chão é ralo, magro, áspero. Sofrido. O ar é puro, mas é uma pureza massacrante, árida, ácida, pureza que inflama os pulmões e castiga friamente os olhos. A caatinga tem toda a sedutora e traiçoeira beleza de um escorpião. É uma meretriz que precisa dessa foda pra poder arranjar um prato de comida, desdentada, dissimulada, daquelas que fogem com o seu dinheiro mas ainda deixam você lá querendo mais como se você nem se importasse.
Brilhando sob o sol, os cáctus brancos, ou coisa que o valha, gritam como sinais na estrada de terra do infinito, com um destino só. O meu prêmio, digo, o prêmio de Penélope.
Quantas vezes o sol se levantou? Quantas vezes pousou? Quantos caminhos fez e refez enquanto caminhávamos? Quantas eras se passaram, quantas geleiras derreteram, quantos continentes cresceram e morreram?
-Ah, olha, uma casa.
As palavras caíram da boca seca de um Wright velho, doído, abatido.
De fato, era uma casa lá longe, que se erguia com toda a imponência permitida por seu teto pontiagudo, que, conforme nos aproximávamos, parecia emergir das areias vermelhas onde repousava o indolente sol do fim de tarde.
Era uma casa muito engraçada. Tinha uma casa no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma casa.
Era mais longa que profunda ou elevada, como um romance russo ruim. Era toda feita de madeira.
Dei alguns tiros, de aviso, e porque gosto do som que a bala faz contra as pedras.
Tá, foco, foco. Essa área provavelmente está infestada de comunistas. Ouço alguns gritos. Olho para o lado e é Shorty berrando comigo, provavelmente porque estraguei nossa posição. Meu argumento contra ele é: foda-se, eu sou seu superior e eu que dou as cartas aqui, porra. Se eu quero estragar nossa posição, eu estrago.
Ok, foco, foco, fuck! Pela segunda vez. Foco. Onde eu estava? Ah, sim. Essa área toda provavelmente está infestada de comunistas. Carretéis espalhados. Ok. Servem como posições de cobertura.
Wright grita alguma coisa. Shorty dispara; eu também. Algumas cabeçinhas se levantam dos carretéis. Sabia! Murmuro para mim mesmo, e Wright pelo visto tem telepatia, já que ele sorri.
Corro para um carretel. Chuto. Dois cuca rachas ficam descobertos, tentam correr para trás enquanto seus amigos os cobrem com um saraivada. A sorte é que miram mal, e eu consigo abater os dois comunas em fuga. Wright e Shorty se escondem atrás do carretel virado. Eu também. Mas, à bem pensar, é muito pequeno para nós. Vamos ficar com problemas bem rápido.
Talvez pensando nisso, Shorty começa à rolar o carretel. Eu lembro de Shorty no começo. Você acharia que, por ele ser um hippie, ele entraria no Exército exalando rebeldia e tocando o terror. Balela. Exatamente o oposto. Foi o recruta mais disciplinado que eu já tive. Talvez porque quisesse fugir do estereótipo de hippie desordeiro e, quem sabe, aprender algo com o inimigo, ele tenha se adaptado, e se adaptou bem demais, na verdade. Era sempre o mais animado e o único que sabia o hino nacional de cor.
-Oh say, can you see- ele esbravejou, enquanto chutava o carretel, que rolou em direção à um outro e o derrubou.
Mais dois comunistas descobertos. Saímos atirando enquanto Wright nos cobre as costas. Eu tenho a impressão que vejo a cabeça de um cara explodir.
Tomamos o carretel e uma pilha de caixas. Agora o plano de Wright aparece em toda a sua glória. Quando tomamos aquela posição, deixamos de estar na frente dos comunistas para estar atrás deles. Todas as suas posições estão visíveis, eles estão desprotegidos, e nós temos o elemento surpresa. Eu e Shorty trocamos olhares. Sabemos o que fazer.
É hora da matança.


*****


A limpeza é rápida e fácil. É como se tivéssemos três garrafas jumbo de alvejante. Porra.
Estamos lá, acalmados pela visão reconfortante de uma dúzia de corpos comunistas e cuca
rachas atrás de seus carretéis sem linha.
Estamos embevecidos por aquela visão, o sangue quase evaporando antes de tocar o chão, sumindo do mundo ao tocar a areia, deixando apenas sua cor como lembrança de sua existência.
Havíamos vencido? Senti uma mão no meu ombro. Wright. Seu rosto me dizia para olhar para trás, e que o que eu veria não seria bonito.
‘Merda’, eu disse, em voz alta. Ele estava certo. Do alto da varanda da casa, cinco, seis, não, sete canos nos observavam, manuseados por cinco homens bigodudos e mal-encarados, suados, em roupas de vaqueiro.
Uma porta se abriu e um outro homem saiu, mais baixo, mais calvo, mais confiante da vitória. Eu não sei o que o tornava mais confiante, dado que ele estava usando a mesma roupa de vaqueiro tosca dos outros.
Ele disse algumas poucas palavras, e Shorty se preparou para traduzi-las para mim, mas não precisei. Sua mão estava erguida e seus quatro dedos estavam colados um ao outro, indo para frente e para trás. Conforme o homem andava para dentro, desaparecendo do sol inclemente para a escuridão opaca e sufocante da casa, nós três nos aproximávamos para adentrá-la.

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