terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 22

Capítulo 15





Estava morto de cansaço.
Soares foi dormir suado e acordou suado.
O lençol aderira à seu corpo e ele precisou de alguns segundos para se desvencilhar dele. Precisava urinar.
Foi andando à passos pesados. Apesar do sono, sentia-se vivo como não se sentia há muito tempo. Do lado de fora do quarto, a noite escura ficava mais e mais azul, depois mais e mais branca, dando lugar ao amanhecer.
Encontrou uma porta, que parecia ser a do banheiro. Quando estava pronto para abaixar as calças- não, pêra, ele não estava usando calças- ele viu que ao invés de uma pia, de um chuveiro elétrico, de uma privada e quem sabe de um bidê, um sabonetinho e talvez um copo com escovas de dente, lá estava jogado no chão uma pilha de roupas.
Soares se abaixou para olhar mais de perto; não era qualquer roupa. Eram calças pretas, botas pretas afiveladas e capas; vestidos azul-claros com uma abertura que indicavam que na verdade eram capas, do lado de calças da mesma cor.
O uniforme da milícia de Jesus.
-O que está fazendo?
Soares, agachado, se virou. Atrás dele, nua em frente à porta aberta, a luz da madrugada chegando ao fim a transformando em um negativo cercado de azul; Rosa e Azul, suas curvas ultrapassando os contornos do negativo e se banhando na leve luz enquanto a sua prodigiosa bunda ia de um lado para o outro, seus braços encostados na moldura da porta em meio ao calor noturno tropical, ou matutino sub-tropical, não importa.
Soares ficou sem responder nada por um instante. Rosa o deu algo para dizer:
-Porque você não volta para a cama? Ainda não amanheceu.
-Nada, eu...
-Anda, essas são coisas pessoais. Gostaria que você evitasse mexer nas minhas coisas da próxima vez- ela disse, visivelmente incomodada.
Soares obedeceu.


*****


Sol matutino. Soares adorava aquela parte do dia; sentiu o vento suave da manhã ainda não sufocante do sol, o canto dos pássaros, o início ainda preguiçoso de atividade nas ruas. Estava louco para se levantar e olhou para a janela.
Algo parecia prender os seus braços. Tentou se mexer de novo. Não conseguia. Estranho, pensou.
Abriu os olhos. Boca curva, cabelos negros, olhar 43. Rosa estava sobre ele.
-Bom dia- ela disse. -Espião.
-Pera, que? -disse Soares, e então ele viu objetos em volta de seu braço : pareciam correias. Estavam conectadas às outras, nas suas pernas, abdômen e pescoço.
Que... Que porra é essa? -ele diz.
-É uma pena que você descobriu o meu plano. Eu estava até gostando de você. Eu estava esperando essa noite já faz um tempo- diz ela, de joelhos sobre a cama.
Rápido, Soares. Pense, pense.
-Aqueles uniformes lá... Eles tem algo à ver com o seu plano?
Rosa riu.
-Nossa. Você é pior até do que eu pensava.
Soares engoliu em seco.
-É verdade. Eu sou mesmo o pior detetive dessa cidade. Quiçá do mundo. Mas tem uma coisa que eu não sou, e essa coisa é um espião.
Rosa se levantou da cama e, com poucos passos de bailarina, transmitindo elegância apesar de tudo, abriu uma gaveta da mesa-de-cabeceira branca ao lado de Soares. A arma que tinha lá dentro era pequena e discreta.
Uma Browning. Soares sempre achara que a pequena argola que pendia do cabo dava àquela arma um certo charme feminino.
-Espião ou não, temos aqui um fato: você agora sabe do plano, e por isso precisa ser eliminado. Além disso, eu só posso manter você aqui até o papai acordar.
Droga. Ela... Sabia que isso ia ocorrer. Ela sabia que ia ter que me matar. Porra, Soares, você foi enganado.
-Diga Adeus -ela disse, apontando a arma para a cabeça de Soares.
-Pera aí!
-O que agora?
-Vai atirar em mim na sua cama? Isso vai estragar o travesseiro inteiro. Vai ficar tudo manchado de sangue. Você não quer isso, quer?
Ela hesitou, e finalmente abaixou o revólver.
-É... Não.
-Ótimo, então vamos arranjar outra maneira de fazer isso- disse Soares, suando frio, exibindo o sorriso mais falso de sua vida.
-Tive uma idéia! Vá para a janela! -ela disse, levantando a arma de novo.
Soares tentou se levantar, mas apenas rolou para o canto da cama. Lá, tentou pôr os pés no chão, mas tudo o que conseguiu foi tropeçar feio na própria perna e dar de cara com o carpete fofo, mas ainda assim doloroso. Rosa desatou à rir.
-Vamos, fique contra a janela. O sangue vai cair lá no quintal.
Soares rastejou pelo carpete cheirando à mofo, ás vezes não conseguindo ficar nem de quatro. Rosa pôs então um pé sobre a sua cabeça. Apesar da dor, da humilhação e do risco de vida, Soares estava achando tudo aquilo muito erótico.
*Toc Toc*
De repente, batidas na porta. Com algum esforço, Soares olha para cima e vê que Rosa mudou completamente; sobrancelhas arqueadas, olhos arregalados, boca cortada- ela está com medo.
Ela segura Soares pelo cabelo, sempre apontando a arma para ele, e sussurra em seu ouvido:
-Entre agora nesse armário.
Ela abre um pequeno closet de veneziana coberto por um pôster dos Beatles, e o joga lá dentro sem muita cerimônia. É um armário apertado, como daqueles onde se guarda gravatas. Soares mal cabia lá dentro, mesmo de cócoras; porém, a veneziana permitia que ele visse o que estava se passando lá fora.
Ele viu, em raios de luz entrecortados por madeira mas que ainda permitiam ver o mundo em silhuetas, Rosa correndo de um lado para o outro do quarto, sua bunda em uma dança frenética esquerda direita esquerda direita enquanto seu corpo brilhoso, suado e cheio de preocupação vai pelo quarto à procura de uma roupa. Ela some por alguns segundos, e
reaparece debaixo de um vestido branco, talvez mais adequado á uma freira do que à mulher que o segurara pelo cacete na noite anterior. Ela pigarreou por mais dois instantes, até lembrar da arma que tinha na mão, que então, se abaixando, jogou debaixo da cama.
Foi até a porta e a abriu.
-Qual o motivo da demora? -disse um homem entrando.
-Hum, e qual o motivo da visita? -diz Rosa, tentando provocar. O homem ri.
-Mas sério, porque demorou?- ele repetiu, sério.
-Nada, eu... Só queria ficar bonita pra você- ela respondeu sem muito convencimento, torcendo a boca.
O homem era negro, careca e usava um sobretudo escuro, muito mais elegante e bem-cuidado que o de Soares. Sua aparência era estranhamente familiar.
Ele agarrou Rosa pelos braços e a virou contra o armário. Entre um beijo e outro, Soares conseguiu ter um vislumbre de seu rosto. Ele esfregou os olhos, sem conseguir acreditar no que via.
Era Geraldo Ary.


*****


Jana era quente e suave contra os seus braços. Ele podia também sentir que havia algo diferente nela- estava mais solta, mais à vontade. Pena que ela resolveu me receber nessa maldita roupa de freira, pensou Geraldo. Bom, eu provavelmente consigo pensar em algum jogo com isso.
Foi quando apoiou seu braço contra o armário que sentiu algo estranho. Um leve chute. Jana parecia ter percebido também; logo após o chute, tentou empurrá-lo para longe do armário. Apertou-o e beijou-o com força, torcendo seu pescoço. Não foi o suficiente para mantê-lo longe, porém, e ele sentiu outro chute. Ela não era forte o suficiente para mantê-lo afastado; pelo menos, fingia não sê-lo.
Geraldo partiu seus lábios por um momento, e disse então:
-Rosa, eu quero saber o que tem nesse armário.


*****


Aquela era uma situação que Soares tinha que aproveitar.
Geraldo Ary, no mesmo quarto que ele! Ele sem dúvida entenderia o seu ponto de vista. E o que ela poderia fazer, afinal?
Assim, se contorceu dentro do armário. Com muito esforço, passou o braço debaixo da bunda, e então pelas pernas, para que eles ficassem à sua frente. Ajeitou as pernas e deu um chute de leve na porta. Não surtiu efeito.
Esperou um pouco e deu outro chute. Dessa vez, ouviu a voz de Geraldo dizer: “Rosa, eu quero saber o que tem nesse armário.”
Interpretou aquilo como um bom sinal, dando mais um chute, enquanto o diálogo lá fora continuava.
-Gê, não tem nada lá dentro. É só a sua imaginação fértil e paranóica de detetive.
-Jana, eu juro que...
*POC*
-Olha! Olha aí de novo! ...Jana, o que você está escondendo de mim?!
-Jana? Porra, até o nome ela omitiu?
-...Jana, o seu armário ta falando.


*****


Do lado de dentro, Soares pôde ver que Rosa/Jana estava com uma tremenda cara de cu. À qualquer momento, aquilo podia ficar feio. Estava na hora de sair.


*****


Geraldo estava quase certo de que Jana estava lhe escondendo alguma coisa, só não sabia o quê. Mas nem ele estava preparado para o que ia acontecer em seguida.
A ponta do armário se rompeu, se separando da parede, e caiu em cima de Jana, que desabou sobre a cama.
De dentro, pulou um homem. Não era qualquer homem. Era um homem pelado, coberto de arapucas de couro. E não era qualquer homem pelado, coberto de arapucas. Era o Detetive
Soares.
-Soares?!- exclamou Geraldo.
-À seu dispor- disse Soares, correndo pelo quarto.
O que fazer agora? Ele não sabia exatamente. Não sabia se alguma porta estava aberta, mas ficar parado seria suicídio.
Enquanto pensava, tropeçou feio e beijou o carpete de novo. Ao se levantar, ouviu um tiro.
-Esse maníaco- berrou Rosa/Jana- entrou no meu quarto e tentou me estuprar!
Virando a cabeça de relance, Soares pode vê-la chorando, com uma arma na mão. Corada. Enfurecida. Hipócrita.
Soares não esperou para ver a reação de Geraldo. Não podia se dar esse luxo. Olhou para o lado. Jana não era uma atiradora boa; errara o alvo à um metro de distância e detonara a janela.
...a janela...
A janela. Boa, Major.
Sem pensar duas vezes, Soares deu o maior salto de sua vida e se atirou pela janela.

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