quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 19

Capítulo 13


Capturado! Soares não podia acreditar naquela infâmia. Pego sem roupas em uma pousada de quinta categoria, em plena madrugada.
-É... Seu Ermeval?- perguntou um dos homens, que Soares podia pressentir ao seu redor mesmo com o saco na cabeça, não menos porque eles ainda estavam segurando-o pelos braços.
-Pois não?- Respondeu uma voz que Soares de fato reconheceu como a de Seu Ermeval, não menos porque seu nome tinha sido dito logo antes.
-Você não teria como nos dar algo para... Sabe... Cobrir o negócio dele? Não manda uma mensagem legal.
-Besteira- disse uma outra voz, que Soares reconheceu como sendo de outro homem que o agarrava- Temos que trazer ele pelado mesmo, para humilha-lo diante de nosso grupo como o traidor sujo que é.
-É, mas... Dois homens com um homem nu? Que tipo de mensagem isso manda sobre nós? Vai parecer que nós somos algum desses malditos sodomitas.
-Ora, tolice! Ninguém vai fazer esse tipo de suposição! Nós somos os guerreiros de Cristo!
-O que será que as escrituras dizem à respeito disso?
-Meu pai, vocês são malucos- disse uma voz que Soares reconheceu como sendo a de Ermeval.
-Acho que deixei O Livro no carro- disse o outro, sem prestar atenção no comentário de Ermeval. A forma como dizia “O Livro” era cheia de respeito e solenidade. Um vento fraco fustigou os bagos de Soares, que se encolheu.
-Ai, saco, o carro, é verdade!
-O que houve?
-Não quero botar um cara pelado no meu carro, para que a bunda dele fique suando no meu estofamento!
-Não diga isso!
-O quê?
-...Você sabe.
-Ah, certo. Derrière.
-Se vocês estão preocupados com esse cara sujando seu carro, posso trazer uma roupa. Ele deixou tudo no quarto- disse Ermeval.
-Ah, por favor, faça isso, estou congelando!- Soares deixou escapar. Pôde sentir o abafado clima de estranhamento ao seu redor e imediatamente se arrependeu. Sentiu uma violenta dor no saco.
Nem precisou recuperar a abalada capacidade de dedução para saber que tinha sido acertado com um taco.
-Nós por acaso pedimos a sua opinião, mundano?- berrou uma das vozes.
-Mas, traga alguma roupa sim, fiel. Estou cansado de olhar para esse mundano.
Soares sentiu algo familiar sendo posto em suas costas, cobrindo seu corpo. Meu sobretudo. Soares sentia falta dele, mesmo após poucas horas. Rapidamente deixa de sentir frio e seus pêlos deixam de ficar eriçados.
-Vamos levá-lo para a base, daí checamos as escrituras sobre o que deveríamos ter feito, e pensamos nos nossos erros, se erro houver.
-Feito.
-Espera, espera. Não estão esquecendo alguma coisa?- disse Ermeval.
Mais silêncio.
-Ah- respondeu uma das vozes.
-Pegue a gasolina- disse a outra.
Em poucos segundos, Soares ouviu estalos cada vez mais fortes. Uma baforada de ar quente encheu-lhe o rosto e a temperatura ao redor aumentou muito.
Subitamente, uma explosão.
-A concorrência não será mais um problema, Senhor Ermeval- Soares ouviu.
-Deus seja louvado- ele respondeu.
-Agora vamos.
Soares agora estava sendo conduzido enquanto sentia o incêndio se alastrando ao seu redor.
Um chute na bunda, e Soares caiu, vendo-se em território novo.
Macio. Estreito. Barulho de motor.
Carro, sem dúvida.
As portas se fecharam.
-Ufa. Que belo dia de trabalho, não é?
-Sim. Jesus de fato esteve do nosso lado hoje.
-Deus seja louvado.
-Amém.
-Você mal pode esperar, mundano- disse uma das vozes, claramente dirigindo-se à Soares, que virara “o mundano” por algum motivo.
-Vamos levar você lá pro Padre Brandão. Líder do nosso movimento, guardião da cruz, Santo guerreiro!
-Ei, não blasfeme!
-Certo. Deus seja louvado.
-Amém.
-Amém. Mas sério, o padre vai acabar com a sua raça. Daí você vai nos contar tudo sobre seus amigos comunistas. Mas primeiro, vamos nos divertir muito com você.
-Hehe, vamos sim. Já faz um tempo que não nos divertimos. Aleluia!
-Deus seja louvado!
-Am... Hein?
A rodada de louvores foi interrompida por um novo barulho ensurdecedor. O carro primeiro deu uma leve chacoalhada, para então saltar nos ares, atirando Soares ao teto enquanto a gravidade desaparecia. Foi atirado então para a frente, que ele descobriu ser abaixo, descobrindo também o couro duro do banco da frente enquanto seus captores gritavam. Finalmente, caiu no teto.
Soares estava de cabeça para baixo. Ao que tudo indicava, o carro também. Seus captores pareciam estar mortos, mas foi então que ouviu:
-Ai, meu Deus, que dor... Irmão? Irmão, se mexa! Se mexe, caralho, se mexe! Ajuda... Ajuda, por favor! TEM GENTE FERIDA AQUI!
De súbito, crescendo quase imperceptivelmente, roçando até o carro, e rastejando à passos largos, Soares sentiu uma nova presença. Ela andava com passos leves, chegava sorrateiramente e agora estava na janela. O homem do banco da frente continuava ofegante e beirando o desespero.
-Socorro! Por favor, tem gente ferida aqui!
-Agora não tem mais- respondeu a voz, com felinez gelada.
Soares ouviu um tiro.
Provou uma leve umidade no saco que estava em sua cabeça. Gosto de ferro. Os gritos haviam parado.
Foi aí que Soares percebeu que poderia morder o saco e rasgar o papel tosco e áspero com os dentes, mas a intuição lhe dizia que, no momento, essa não era a melhor idéia.
-Mais um dia, mais um dólar- disse uma voz que vinha de fora do carro.
-Pára de usar essa expressão- disse outra voz, mais grossa, mais irritada.
-Pessoal, pessoal, vamos embora, daqui à pouco as autoridades estão aqui.
-Não tem mais nada no carro?
-Tem sim- disse a primeira voz, e Soares foi cegado por uma luz.
-Um prisioneiro! Ajudem-me à tirar ele daqui, companheiros.
Soares sentiu uma mão em seu sobretudo. Pequena, mas tenaz, quente contra seu peito.
-Espera, espera!- disse uma das vozes do lado de fora- Já passamos por isso antes. E se isso for uma cilada?
-Não temos tempo para essas coisas- disse a pessoa que o segurava- Vamos botar ele na garupa e ir embora antes que os tiras apareçam por aqui. Vamos, me ajudem aqui.


*****


Antes que percebesse, Soares estava em movimento.
O grupo o retirara de dentro do carro, mas, para evitar o pior, ele permanecera em silêncio. O resultado disso foi que eles acharam que ele estava inconsciente.
Curioso para ver aonde o estavam levando, pouco à pouco devorou o saco de papel que estava na sua cabeça, casualmente mordendo os pedaços que sua boca podia alcançar e cuspindo-os fora não sem uma certa destreza que o deixava orgulhoso de si.
Quando finalmente conseguiu descobrir seus olhos, sentiu uma lufada de ar no rosto, o que o deixou sem ver, mas foi apenas temporário. Logo, ele descobriu que não estava em cima de uma moto, e sim em cima de uma bicicleta.
Seu captor aliás, não era um captor, e sim uma captora. Era uma mulher de cabelos negros descuidadamente cobertos por um tecido vagamente árabe. Usava um casaco- ou seria um pulôver? Existia, afinal, diferença? Olhando melhor, talvez seja uma jaqueta. É, uma jaqueta de couro, Soares pensou para si mesmo- uma jaqueta cobrindo os braços até o
ponto onde começavam suas luvas de couro.
O que tirava Soares do sério era saber se era mesmo um homem ou mulher. Aquela roupa não entregava muita coisa, e apesar do/a captor/a ter uma estrutura corporal diminuta que se encontrava mais facilmente entre as mulheres, isso não significava tanta coisa, e o mesmo podia ser dito do cabelo, já que a juventude daqueles tempos adotara o estranho hábito de deixar o cabelo crescer à um comprimento indecente, fosse para homens ou mulheres, o que, ligado também à tendência dessa juventude de usar o mesmo tipo de roupas largas e manchadas, dificultava o trabalho de reconhecer um do outro. Soares já entrara em uma situação muito desagradável por causa daquilo, e estava determinado à não repetir os seus erros.
Olhando um pouco ao redor, Soares tentou descobrir aonde estava. Tinha a impressão de que conhecia aquela rua, e a parede de pedra bruta mais à frente não permitia dúvidas: eles tinham ido mais para dentro da cidade ainda, e estavam perto da divisão entre a cidade alta e a cidade baixa. Talvez não muito longe do Elevador Lacerda. Cacete, pensou Soares. Eu posso estar perto da morte e nunca nem visitei o Elevador Lacerda. Bom, não que seja um grande ponto turístico mesmo.
As bicicletas foram parando. Estavam na frente de um bar- o João Sebastião Bar, mais especificamente, já fechado, o que não era surpreendente naquele horário, mesmo levando-se em conta a agitada vida noturna de Salvador.
Soares tomou um momento para prestar atenção nos ciclistas e ver se conseguia tirar alguma conclusão só olhando para eles. Era um grupo de uma dez pessoas, todas vestidas da mesma maneira, como se o casaco, o lenço árabe e as luvas e botas de couro fossem um uniforme. E, à menos que fosse uma coincidência, devia ser mesmo um uniforme. Isso tinha implicações muito claras- Soares estava lidando com um grupo de terror organizado.
Mais um.
Um dos encasacados saiu de sua bicicleta e andou em direção à porta de metal, puxando-a para cima. O que aquilo significava? Eles iam mesmo parar de fugir para tomar um drinque no bar? Se fosse verdade, os terroristas teriam decaído muito com o passar dos anos.
Ou não exatamente. O bar estava mal-iluminado, mas Soare podia ver que não havia muito mais cadeiras, nem engradados.
O/a captor/a se levantou da bicicleta. Sua calça apertada roçou contra o peito de Soares,
enquanto ele/ela levantava o/a perna/o para sair da/do veículo/a. Soares não sabia muito bem o que achar de tudo aquilo, e na verdade, estava começando a ficar irritado com toda/o a/o ambigüidade.
Ele/ela virou-se então e Soares pôde olhar em seus olhos. Ok, é uma mulher, pelo menos, pensou Soares aliviado. Dessa vez, adicionou tentativamente.
De fato os olhos não deixavam dúvida. A tez larga e as sobrancelhas marcadas e escuras eram contrabalanceadas pela negritude larga, profunda e convidativa dos olhos. Arqueadas, em surpresa, as sobrancelhas expandiram os olhos fazendo com que brilhassem ante a luz noturna.
Soares demorou para entender que isso significava que seu arremedo de disfarce fora descoberto.
-Ele está consciente! Viu tudo!- disse um dos enjaquetados.
-Caralho! Eu sabia! Um espião!- disse aquele que, aparentemente, o acusara de ser um espião.


*****


E mais uma vez, Soares encontrava-se com a cabeça coberta e o corpo despido frente à um grupo de estranhos. Estava começando à se sentir como um avestruz.
-Agora fale, camarada- bradou uma das vozes ao seu redor- o que você pretende fazer por aqui? Porque fingiu estar inconsciente?
-Eu já disse! Estava inconsciente, mas daí acordei!- mentiu Soares.
-Balela! Passeios de bicicleta te deixam mais cansado, e não mais ligado!
-Falando em ficar ligado, a gente bem que podia usar agora aquelas folhas boladas que ganhamos dos camaradas lá da Bolívia. To cansadão.
-Use a nossa terminologia. A expressão, Camarada Peres, é “questão de ordem.”
-Camarada, deixe de ser imbecil! Não precisamos do espião sabendo de nossos nomes!-disse uma terceira voz, dessa vez a única e inconfundível voz feminina.
-Certo. Desculpe, Camarada Ro...
Bronca inaudível.
-...Camarada.
Soares parou um tempo para pensar naquele nome. “Camarada Ro”. Seria apenas um nome código? Iniciais, como R.O? Uma referência ao primeiro-ministro do Vietnã recém-unificado, Ho Chi Minh? Ao Rock ‘n Roll? Só o tempo dirá.
As considerações de Soares foram interrompidas por uma colocação deveras justa.
-É, questão de ordem- disse uma outra voz- Estou cansado de ter que olhar para o pinto desse cara.
-Certo- respondeu a “Camarada Ro” -Todos em favor de arranjar uma roupa para o espião, levantem a mão.
Votação inaudível.
-Certo. A moção foi aprovada.
-Ai, chega- protestou finalmente Soares. Estou de saco cheio de ser caçado e capturado. Ainda sou relevante, porra! Um grande detetive! O grande Soares! E se eu tivesse um parceiro, seria uma dupla dinâmica!
-Perdão, espião?
Opa. Vamos lá, Soares, pense em algo inteligente para dizer.
-Por favor, tirem esse saco da minha cabeça- disse, não muito inteligentemente.
-E porque faríamos isso?- perguntou Camarada Ro.
-Porque eu não sou espião. Sou um detetive.
-Prove.
-Bom, ao que tudo indica vocês são um grupo de libertação de inspiração Marxista, e que tem uma rixa contra as milícias teocráticas. O uso de bicicletas indica que vocês preferem ataques rápidos e furtivos às grandes demonstrações de força, sem ao mesmo tempo querer atrair atenção, porque senão teriam escolhido motos. Vocês também fizeram sua base em um bar fechado, o que é criativo, ao contrário de todos os movimentos que tem sede em algum armazém abandonado no porto.
Boquiabertez inaudível. Mas logo Camarada Ro levantou a voz.
-Só isso? Até eu poderia deduzir isso.
-É, além do mais, não somos marxistas. Somos maoístas, seu tapado.- disse outro.
-Ok, ok, sou um detetive péssimo.- admitiu- E aproveitem esse momento, porque dói muito ao meu orgulho finalmente admitir isso.
-Achei uma toalha- disse a voz de alguém à quem todos muito provavelmente já
esqueceram.
-Mas, antes de me prenderem, me executarem, ou sei lá-
-Executar, com certeza. Preso você já está- disse o da toalha.
-Obrigado. Antes de me executarem, eu peço que, pelo menos, ouçam a minha história.
-Todos à favor de ouvir a história dele, levantem a mão- disse Camarada Ro, com a frieza usual, ainda que Soares pudesse sentir um leve toque de compaixão.
A votação inaudível, exceto por algumas pequenas riscadas no ar carregado do aparelho, se seguiu.
-Moção aprovada. Camarada, pegue as folhas para podermos mascar. Tenho a impressão de que essa história vai ser boa.

*****

-Uau, essa história foi... boa- disse Camarada Ro, permitindo que o escritor não gastasse seu precioso tempo resumindo as últimas cento e tantas páginas.
-E é tudo verdade.- disse Soares.
-Eu duvido- reagiu o da toalha, que desde então enrolara a toalha em Soares, perdendo assim tudo que pudesse distingui-lo dos outros.
-Eu concordo. Ele escapar de um incêndio e encontrar o seu amigo de infância transformado em um cafetão marxista? Ridículo.
-Eu não disse que era um cafetão, só que se vestia como um!- disse Soares, com dificuldade. Sua voz estava rouca e ele podia sentir uma leve ferida no fundo da garganta. Tinha falado durante mais de uma hora.
-Sem falar nessa história que você é o Açougueiro da Tijuca. Todos sabem que o Açougueiro da Tijuca era careca e tinha ascendência japonesa.
-Sejamos razoáveis, camaradas- disse Camarada Ro- vocês acham mesmo que ele inventaria toda essa história aqui e agora?
-Claro que não! Ele decorou ela antes com ajuda de seus mestres da Milícia de Jesus!- disse o da toalha. Soares estva começando a realmente odiar aquele cara.
-Então o que ele estava fazendo naquele carro, capturado por eles, pelado e com um saco na cabeça?
-Ora, Camarada, é óbvio que eles arquitetaram isso para que a história dele parecesse mais verídica!
-Corriga-me se estiver errada, Camarada, mas você entrou no nosso grupo em circunstâncias semelhantes.
Silêncio. O toalhudo engoliu em seco.
-Mas... É diferente!
-Certo, certo.- interviu uma voz, ainda desconhecida por Soares.- A questão é: se integrarmos ele ao grupo, como garantimos que ele não é uma ameaça? Que não é um espião? Proponho uma votação para decidir isso.
-Isso é uma quebra de protocolo, Camarada.
-Que se dane o protocolo. Todos aqueles que forem contra a integração desse suposto detetive no grupo, levantem a mão.
Votação inaudível, porém Soares pôde identificar o resultado pelo que pareceu ser um suspiro de desilusão da Camarada Ro.
-Certo, certo. Sei reconhecer uma derrota quando vejo uma.
-Camarada, entenda, amanhã é a grande operação.
-Eu sei, eu sei.- ela pausou. Suspirou então mais uma vez, mas desta vez foi algo mais parecido com uma inspiração, um Eureka antes da palavra.
-Eu sei! Veja, posso leva-lo até lá em casa.
-...Você pirou, não é?
Até Soares estava achando aquilo meio estranho.
-Não, você não entende! Vou leva-lo vendado, assim ele não saberá onde está. Guardarei ele lá até que fique recuperado, e então o levarei de volta para a bicicleta de venda, e o deixarei em algum ponto da cidade. Assim, não temos que lidar com a possibilidade de ele nos trair, e lavamos as mãos do fato de ter abandonado um necessitado e potencial recruta.
Soares se sentia mal com tantas vozes falando ao seu redor de forma tão explícita.
-Bom, admito que isso acaba com todos os pontos negativos de se ter um hóspede maldito.
-Isso não é uma referência?
-Acho que não. Enfim, pode até ser. Mas cuidar dele não vai... Impedir você de se juntar à nós amanhã?
-Não, na pior das hipóteses eu prendo ele em um armário- a Camarada Ro riu, uma risada
inocente, quase infantil, acompanhada por outras. Soares não entendia direito o senso de humor.
-Droga, camarada. Você sabe que não sei dizer não à uma mulher.
-Você estava dizendo não à alguns segundos.
-Pois é, todas as máscaras caem depois de um tempo.
-Bom, vai lá.
Abraço inaudível. Beijo audível.
Cara, esses são mesmo os piores terroristas que eu já vi, pensou Soares, enquanto a Camarada Ro o conduzia pelo braço até o lado de fora.


*****


-Estamos chegando. Acho que você vai gostar de onde estamos indo.
-Então, aonde exatamente é esse lugar que eu vou gostar?
-Já disse. Minha casa. Nós vamos cuidar de você.
-Vamos? Quem mais?
-É o “nós” da Família Real.
Soares ainda se sentia pouco à vontade. Não conhecia aquela mulher, nem sabia o seu nome, com a exceção dos olhos não a tinha visto sequer uma vez e ela, na verdade, o tinha seqüestrado e estava realizando seqüestro 2- A missão naquele momento.
E ainda assim, ela insistia em falar com ele. Talvez estivesse entediada e precisasse conversar naquele longo trajeto de bicicleta.
-Então, que filme você gostou recentemente?
-Bom, não tenho ido muito ao cinema, sabe. Passei o dia de ontem sendo tomado como refém e ameaçado pelo meu melhor amigo, sendo capturado pela Milícia de Jesus e depois por vocês.- Soares estava ficando cansado daquelas perguntas bizarras.
-Bom, desculpe por aquilo, eu acho- disse ela, com certa timidez.
-Não precisa se desculpar. Eu estava no lugar errado na hora errada.- ele suspirou. -Pra variar.
-Bom, você de fato parece possuir uma predisposição ao azar. Se eu estivesse na sua situação, não sei o que eu faria.
-Na maior parte das vezes, eu também não sei o que estou fazendo. Acho que tudo o que eu faço, no fim das contas, é fugir de um destino que parece ter sido escrito pra mim sem o meu consentimento.
-Chegamos.
A bicicleta parou subitamente. Soares, ainda algemado e com um saco na cabeça, escorregou para a frente e encostou com o tronco inteiro nas costas da captora. Pensou ter ouvido um riso.
-Agora saia.- ela disse, inquisitiva.
-O que? Sair de onde, para onde?
-Ah é, esqueci que você estava cego. Anda, vamos lá.
Camarada Ro pegou em sua mão, e ele pôde sentir, passada a surpresa inicial, a suavidade daquela mão, inacostumada com o pesado trabalho braçal que Soares também não realizava.
Ela o conduziu por um caminho pedregoso e musguento. Clic-clac.
-Um segundo.- Soares sentiu os dedos de Camarada Ro percorrendo o seu cabelo e encontrando nó da venda que lhe haviam amarrado com tanta força. Ela novamente estava encostada em seu corpo.
-Voilá- ela completou, e Soares pôde ver.
Estava em uma casa que poderia laconicamente ser descrita como chique. As paredes eram de uma cal bastante simples e rugosa, mas estavam cobertas de quadros de antepassados que pareciam importantes. Sisudos administradores coloniais portugueses, crianças de uniforme militar ao lado de mucamas, algo desse nível. O chão era feito de um mármore bege tão polido que Soares podia ver seu reflexo com uma distinção que um espelho não permitiria(ele estava com uma cara horrível). Uma escadaria, também de mármore, começava em uma descida curta em um dos cantos, para então percorrer toda a extensão de uma das paredes, chegando à um mezanino, que ficava mais ou menos na mesma altura do enorme candelabro de cristal que pairava pesadamente sobre a cabeça de Soares.
-Bem-vindo à minha casa- disse Camarada Ro, subindo as escadas.
-Casa bem bonita.
-Obrigado.
Ela parou na curva da escada e se apoiou na parede. Um momento de silêncio
desconfortável se fez, enquanto Soares não sabia como reagir.
-Bom... Não vai subir?- ela disse, e Soares, olhando em seus olhos podia ver que ela estava fazendo aquilo que ele conhecia como ‘o biquinho’ debaixo do lenço que cobria metade de seu rosto. Ao que tudo indicava, queria que ele tomasse uma decisão, mas o que exatamente?
-Tem... Um lugar onde eu possa dormir lá em cima?- Soares perguntou com inocência.
-Mais ou menos. Suba e eu te explico.
Soares subiu a escada, que rangia e latejava do alto de seus possíveis séculos de existência. Passou ao lado de um crucifixo grande e pesado, adornado com um Cristo de metal e um pequeno pergaminho feito do mesmo material com algumas palavras incompreensíveis em latim nela escritas.
Ao passar pelo mezanino, pôde notar que Camarada Ro abaixara um porta-retrato, virando-o de cabeça para baixo.
Soares parou por um segundo para ver se discretamente conseguia virá-lo de volta.
-O que está fazendo? Venha logo.- ela disse.
-Certo- ele disse, pensando que talvez devesse deixar isso para outra hora.
-Bem-vindo!- ela disse, abrindo uma estreita e discreta porta. -Ao meu quarto.
Soares entrou pela porta. O quarto revelava algumas coisas sobre Camarada Ro. O papel de parede rosa indicava contrastava com uma decoração espartana, um crucifixo menor que o da sala mas ainda assim grande sobre a cama, adornado de um ramo de oiveira e um rosário pouco chamativo. Ela era uma garotinha ainda ontem, mas talvez recentemente tenha passado por uma conversão religiosa. Faz sentido? Acho que não, mas é o melhor que eu tenho.
Lençóis imaculados, armação alva: tudo lá indicava uma certa pureza, perturbada apenas por um discreto, quase simbólico, pôster dos Beatles antes de eles ficarem completamente malucos e Paul McCartney ter partido para a guerrilha.
Soares nem notou, mas nesse meio-tempo Camarada Ro tinha sentado na cama e estava tirando as botas.
-Então...- ela disse, em um tom que Soares não conseguiu entender muito bem- Você vai achar isso ridículo, mas não tem nada aqui pra você dormir. Nenhum colchão sobrando.
-Ah, certo. Você quer que eu durma no chão então?
Camarada Ro suspirou. Mais uma vez, ficava difícil para Soares perceber que emoção ela estava querendo transmitir somente pelos olhos, embora eles fossem bastante emotivos. Soares nunca fora bom com emoções. Soares na verdade não era bom com quase nada, mas não deixava isso impedi-lo de realizar seu trabalho.
Camarada Ro lentamente colocou as mãos atrás do pescoço. Surpreendeu então Soares retirando o lenço que cobria seu rosto.
-Desculpa, mas eu ainda não sei o seu nome.- ele perguntou.
-Não posso te dizer o meu nome. Segredo do coletivo.
-Ah, certo.
-É Rosa.
Rosa era o socialismo com um rosto humano. Um rosto oval, bochechas redondas e um queixo suavemente pronunciado. Sua boca era um adorno discreto, ajudado pelo lábios finos. Olhar para seus olhos agora que o resto do rosto se revelara era como ver um quebra-cabeças que finalmente estava completo.
-Rosa. Faz muito mais sentido do que ‘Ro’.
-Eu suponho.
Soares então percebeu que os dois já estavam encarando um ao outro e nenhuma palavra fora dita.
Ainda estava confuso. O que exatamente ela está tentando fazer? Parece uma armadilha. Vigilante, Soares, permaneça vigilante! Ele repetiu em sua cabeça, só então notando que Rosa olhava para sua cintura.
-Senta aqui do lado- ela disse, pondo a mão no colchão e tocando o delicadamente.
-Porque?
-Não quer ver como é macio?
Soares deu de ombros e sentou do lado dela.
Ok, Soares, não é hora de se desconcentrar. Vamos voltar para a evidência que temos: Ela parece ser de boa família, tradicional. Um foco especial parece ser dado à religião...
-Eu realmente vou ter que fazer tudo, né?
...Provavelmente, está nessa para se rebelar contra o pai. Complexo de Édipo às avessas, e mal-resolvido...
...Quando Soares finalmente olhou para o lado, viu que Rosa tinha seu rosto próximo ao dele, o pescoço levemente torcido.
-Você...- murmura Soares observando enquanto a própria ficha caía.
-Cale-se.
Seus lábios eram suaves e aveludados, os primeiros de Soares naquela cidade(prostitutas raramente concediam o direito à um beijo).
Soares se deixou cair em cima de um colchão, enquanto Rosa corria a mão pelo seu peito, sentindo os pelos se dobrando debaixo de sua mão antes de se erguerem novamente altivos e loiros contra a luz, conforme a sua mão descia pelo tronco.
Soares põe as pernas na cama e ao redor da cintura de Rosa, enquanto a mão dela chega debaixo de seu umbigo, o que leva o pênis de Soares a enrijecer. Subitamente, ele sente algo mais. Dedos se fechando ao redor de seu falo, e puxando. Abre os olhos, e vê que Rosa o está carregando em sua direção.
-Mas o que é isso?
-Curve-se à mim- diz Rosa, botando a sua bota sobre o peito de Soares, esmagando-o, enquanto abre o zíper de seu jeans e abaixa as calças, revelando uma bunda redonda, brilhosa, saltando para a liberdade em todas as direções, fora da costura. A mistura surpreendente de um pêssego com uma melancia.
As calças escorrem para baixo de suas pernas, mostrando à Soares as torneadas coxas cor de oliva, erguidas sobre ele como pilares sustentados por uma peça de roupa de baixo lutando para manter o conjunto inteiro em seu lugar, agrilhoando aquela montanha lisa e globular de carne quadrilica, Rosa segurando o pênis de Soares já como um mastro enquanto, repousando sobre aquelas pernas esculturais e a grandiosa almofada que Deus lhe deu, ela abria sua jaqueta preta revelando um umbigo solitário em meio à aveludada e musculosa carne de oliva.
Rosa segura Soares pelos quadris, e os dois trocam línguas enquanto ela carrega seus quadris rumo à aquele momento. A calçinha já está longe, as calças armadas. Soares, nem calça tinha. O contato é esplendoroso.

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