terça-feira, 11 de junho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 7

Capítulo 5



Soares, sentindo uma dormência no traseiro, se levantou de seu banco e dirigiu-se à porta do furgão para abri-la. Recebeu, como prêmio, um safanão do soldado Williams.
-Mas que merda?- Indagou Soares, deixando que o resto da frase se falasse sozinha.
-Quieto Soares!- sussurrou Orfeu, o chefe de operações, enquanto fazia com sua boca caretas exageradas para mostrar que, não fosse a situação, estaria berrando com ele.
“Orfeu”, de nome completo Orfeu Temporário da Matriz Firmino, e era o homem que, mais cedo naquele dia, entrara com truculência no escritório/consultório/casa do detetive Soares e o cooptara á participar de uma operação pouco ortodoxa e quase certamente ilegal, sobre a qual ele ainda sabia muito pouco. Agora que o calor aumentara consideravelmente e a brisa matinal começara à arrefecer frente à umidade inclemente, estava ainda suando muito mais, coisa que Soares julgava ser impossível, e fedia, uma conseqüência que ele anteriormente não havia conseguido imaginar(estava muito ocupado levando bordoadas).
-Mas quieto, quieto porque? O que pode acontecer aqui?
-Ora, Soares, não se faça de tolo!- Orfeu rapidamente adotou um tom de condescendência pegajosa.- O que pode acontecer é óbvio. Estamos em uma parte particularmente nojenta da cidade, cheia de maconheiros descerebrados. Nós somos, segundo eles- Orfeu então ergueu os braços sobre a cabeça e fez em cada mão, com os dedos indicador e do meio, realizando assim  sinal internacional para as aspas- os “agentes da repressão”. Não vou dizer que eles estão errados, afinal, sou mesmo um agente, e gosto de reprimir por aí de tempos em tempos- Orfeu deu uma risadinha.- Mas, no momento, devemos tratar cada um dos passantes na rua como um traidor em potencial, que vai nos denunciar para Cassius assim que o fato que estamos em uma missão à serviço da República Legalista do Brasil der muito na vista.
Soares não podia fazer nada contra a palavra de Orfeu, mesmo que quisesse, ou que ela não fizesse sentido, e nesse caso, ela até que fazia.
-Mas, não vou negar- anunciou Orfeu, tirando com grande afetação um lenço do bolso do sobretudo para enxugar o rosto- que esperar aqui é um porre.
-Boss, who exactly are we waiting for?-perguntou um soldado no banco do carona.
-We’re waiting for the other detective, private.- Respondeu Orfeu, com um pesadíssimo sotaque baiano.
Soares tinha na verdade pouco conhecimento da língua inglesa, mas dominava melhor a língua “Baianglo-Saxônica”, aquela bizarra e extremamente típica forma de falar inglês que se desenvolvera nas regiões do Nordeste ocupadas pelos Americanos, envolvendo um sotaque formado à partir da pronunciação fonética das palavras vistas em placas de aviso, do toque de recolher e outras tantas mídias que faziam parte da realidade da ocupação. Assim, pôde perfeitamente entender do que Orfeu estava falando.
-Peraí, peraí, peraí. Que história é essa de outro detetive?
Orfeu subitamente mordeu o lábio inferior. Não esperava que Soares fosse entender o que estava dizendo. Tentou então se tirar daquela situação desconfortável.
-Bom, sabe, como eu disse, essa é uma operação um tanto grande. Tem muita coisa em jogo. É por isso que contratamos dois detetives.
-Ah é, é? Interessante- Disse Soares, fingindo que tentava mascarar a indignação. Se estão me cooptando pra fazer um trabalho sujo, que façam direito, Pensou.-Muito bem, mas quando contrataram esse sujeito? À uma, duas horas, atrás?
-O que? Não, claro que não, ele está nessa operação há bem mais tempo que você. Foi ele quem instalou as escutas. É a especialidade dele. Aliás- dirigiu-se então novamente ao soldado que estava no banco do carona- Tell me, private, when should he be arriving, again?
-At noon, sir.
-Puta que pariu, e já são quase meio dia e meia. O que me lembra que eu preciso tomar o meu remédio- disse, sorrindo para Soares tentando ser casual. Tirou então de outro bolso do sobretudo um pequeno pote de vidro, dentro do qual, cujo conteúdo eram várias pílulas vermelhas e azuis. Orfeu separou duas, uma de cada cor, e se preparava para engoli-las, quando subitamente, apertou-as em sua mão e abaixou os óculos.
-Excelente, ele chegou.
Soares olhou para a rua pela janela e percebeu que de fato, um outro furgão, quase idêntico àquele em que estavam,tinha parado logo atrás deles. Sua porta então deslizou e saíram dois homens: um era mais velho, de pele rosada e cabelo cor de fogo, e carregava o que Soares acreditava ser um enorme baioneta. O outro tinha uma pele mais escura que a roupa, uma jaqueta simples com um colete á prova de balas por baixo. Sua careca reluzia sob o sol; Soares tinha certeza que o conhecia.
Foi então que a verdade se abateu sobre Soares como um meteoro. Ele conhecia aquele homem.
Quando ele se aproximou o suficiente, Orfeu abriu a porta e, agarrando Soares pelo braço, levou-o para fora do carro com a truculência habitual. Soares não parava de olhar para o homem que se aproximava- e notou então que ele começara à fazer o mesmo.
-Detetive Soares- disse Orfeu, fazendo um sorriso desnecessariamente largo- Gostaria que conhecesse Geraldo Ary Carvalho,um de nossos maiores colaboradores.
É, é ele mesmo- pensou Soares.
-Ora ora, se não é o velho Soares- disse Geraldo sorrindo, e estendendo a mão.

*****

Como descrever o ilustre Geraldo Carvalho? Sem dúvida, para a maioria das pessoas, era um homem elegante, na faixa de trinta e tantos anos, que se encontrava geralmente em boa forma física, e tinha gosto por roupas caras, apesar do seu trabalho não muito bem-remunerado. Fazia sucesso com as mulheres por seu refinamento e por ser um tremendo pé de valsa, mas por mais que todas as fêmeas da cidade implorassem por sua companhia(e talvez algo mais), ele tinha interesse mesmo era nas mais novas, as que ainda poderiam ser chamadas "garotas", ou, na gíria da moda, "brotinhos".
Para Soares porém, Geraldo Carvalho era um pilantra, um sacana de marca maior cujo passatempo preferido nos últimos dois anos parecia ser infernizá-lo.
-FFFilho da puta- disse Soares, entre-dentes, enquanto estendia a mão e apertava a de Geraldo, esperando momentaneamente que não tivesse sibilado aquelas palavras alto demais.
*****
Tudo começara havia quase dois anos, em Maio de 1966. Soares, após passar por alguns maus bocados no ano anterior, finalmente sentia que a sua vida poderia ter um final feliz afinal de contas. A agência de detetives ia de vento em popa e, por um breve momento, Soares cogitou contratar subalternos, simplesmente para ter poder sobre alguém. É claro, havia também um outro motivo, mais pragmático, e o que ele usava geralmente para justificar suas ambições de contratação no lugar da simples megalomania: Estava completamente submerso em casos que ainda precisavam ser resolvidos. Foi por isso que, quando Dona Griselda apresentou à ele seu problema, Soares abafou uma risada e disse que não seria possível atendê-la, pelo menos no momento. Dona Griselda era empregada doméstica, mas a inflação descontrolada, o colapso econômico do país e a quase anulação das leis trabalhistas desde a ocupação tinham prejudicado sua renda e ela poderia inclusive perder seu modesto e insalubre barraco na Favela de Calabar. Por isso, completava o orçamento criando galinhas em uma clareira no canto do morro. Havia, porém, surgido um problema: Jà faziam três semanas, as galinhas estavam sendo roubadas uma à uma, e logo não sobraria nenhuma.
Soares olhava para Griselda de trás de sua austera mesa enquanto ela relatava as suas sofridas condições, dando detalhes melodramáticos, mencionando inclusive o nome das galinhas(eram Jacqueline, Capitu, Brigitte, Catherine e Ingrid), mostrando sempre seus dentes escurecidos pela falta de cuidados.
Ao final de sua lamúria, uma Dona Griselda de rosto inchado e vermelho de tanto chorar recebeu de Soares, falando em um tom neutro, objetivo, frio e cortado por longas pausas silenciosas que não seria possível ajudá-la. Griselda disse que se o problema era dinheiro, ela poderia juntá-lo facilmente e que iria pagar o mais cedo possível. "Juro por São Tomás", ela disse. Soares não entendeu porque aquele santo em particular, mas deixou isso de lado e mentiu assegurando-a de que o dinheiro não era parte do problema; ele apenas estava muito ocupado. Griselda deixou a sala sem virar de costas até chegar na porta, mantendo por todo o curto trajeto um olhar desgostoso de decepção e desconfiança.
Perder um cliente era uma coisa que costumava perturbar Soares, mas daquela vez ele tinha quase cem por cento de certeza de que tinha tomado uma boa decisão; afinal, a tal de Griselda evidentemente não poderia pagar pelo serviço, à menos que pagasse com as galinhas, que Soares poderia acabar aceitando mesmo sem saber verdadeiramente o valor de uma galinha. A mentira que contara também não era total: uma família tradicional, quatrocentona, tinha lhe oferecido uma bela soma para encontrar as jóias da família, incluindo-se aí um raro diamante lapidado datado do Século 18, que haviam sido roubadas havia quase um mês e que ninguém tinha sido capaz de encontrar. Os Guaracy, Soares acreditava, poderiam dar uma bela recompensa se ele de fato encontrasse as jóias- E Antonella Guaracy, a quarentona de cachos negros límpidos, vestido azul com decote pra lá de escandaloso e formas generosas escondidas debaixo do protocolo da classe alta e da frieza de quem está realizando um mero pacto de negócios, parecia um bônus interessante para alem da óbvia compensação monetária.
Mesmo assim, não pôde deixar de achar estranho quando viu a mesma Dona Griselda, baixinha, curva, usando um vestido rosa surrado que não lhe cairia bem nem se estivesse em bom estado, andando ao lado de um sujeito alto, longilíneo, jovem, e preto que nem carvão. Poderia ser qualquer um- um filho, talvez um neto, um sobrinho, qualquer familiar próximo- não fosse por um simples detalhe: o sobretudo.
O sobretudo era a marca registrada não-oficial dos detetives particulares- ainda que, no campo das coisas não-oficiais, que no caso dos detetives particulares eram muitas, à começar pela própria profissão, o sobretudo tinha a posição confortável de ser um consenso. Ninguém entendia muito bem de onde havia surgido esse consenso, embora Soares tivesse um palpite: os estúdios de cinema americanos haviam aproveitado a invasão para relançar no país os clássicos do cinema noir dos anos 40(Soares se lembrava distintamente de ter assistido pelo menos dois desses filmes desde que chegara em Salvador). Então, talvez com o objetivo de se fazer reconhecer diante do povo, os detetives adotaram o figurino dos ianques esguios de "Selva de Concreto" e "O Falcão Maltês". Subitamente, um à um os detetives particulares passaram á ser distinguidos por seus sobretudos das mais variadas cores, fossem elas bege ou cinza, bege-acinzentado ou cinza-bege. Soares estranhara o fato de encontrar tantas pessoas usando casacos longos e grossos tão perto do verão, na época em que chegou na cidade, mas poucos meses depois ele mesmo se rendera à moda do sobretudo. Soares, logo, não precisou usar suas grandes habilidades de detetive para saber que aquele jovem homem era um dos seus.
Mas não era isso que o preocupava: podia sentir uma aura ameaçadora vinda do jovem homem, embora não acreditasse muito em auras.
Conforme descobriria mais tarde, aquele homem era Geraldo Ary Carvalho, e se tornaria o maior pé no saco que Soares já conhecera, e o principal motivo pelo qual às vezes, ele cogitava abandonar aquela vida ingrata de detetive particular, construir uma jangada e se lançar ao mar, rumo ao vazio. Era uma morte poética, pensava Soares, e o pior que poderia acontecer era ele ser devorado por tubarões, ou morrer de inanição. Ou, sei lá, chegar à África.
Mas, naquele longínquo ano de 1966, Geraldo Carvalho, o “Gê” era só o mais novo de uma lista de detetives rivais, e que tinha acabado de lhe roubar o cliente. Mesmo sentindo uma certa aflição por perder o caso de Dona Griselda, Soares não se deixou levar e, na verdade, mergulhou a cabeça no trabalho, passando a maior parte de seu dia pensando no caso dos diamantes roubados. Montou na mesa de seu escritório um enorme painel conectando com barbantes as fotos e informações de diversos suspeitos, todos com motivos críveis, que crescia dia após dia. Sua concentração montando a gigantesca rede de conspirações só era perturbada ocasionalmente quando pensava na(mulher que encomendou a enquete) tendo tórridas fantasias sobre o que faria com ela quando tivesse em suas mãos o diamante. Nelas, ela o agradecia pelo excelente serviço prestado, antes de se sentar em seu sofá, levantando pouco à pouco o vestido enquanto cruzava as pernas de maneira sugestiva.
Foi de uma dessas noites de trabalho intensivo e paixões imaginárias que acordou no dia que viraria seu mundo de ponta-cabeça. Como sempre, sua aparência ao acordar não era das melhores e na verdade ele estava sofrendo de uma pesada dor e cabeça, mas lá no fundo se sentia bem, com uma intensidade que dificilmente experimentara nos últimos três anos. Após passar dias montando uma lista de possíveis culpados, elaborara um pódio daqueles que julgava mais prováveis e estava prestes à apresentá-los para (mulher). Arrumou-se rapidamente e saiu de seu escritório, com a papelada enrolada debaixo do braço. O dia estava radiante e mesmo a cidade, normalmente tão suja e no limite do que poderia se chamar de sórdido, parecia recebê-lo de cabeça erguida.
Ao virar uma esquina, uma rua que ainda conhecia mal mas que agora se lembrava como sendo a rua Y, viu uma convidativa banca de jornal que acabara de abrir. Mesmo com a sua importante missão, no momento nada parecia mais importante e belo do que aquele senhor de idade, de cabelos brancos curtos, bigode e boina de português, abrindo a porta de metal de seu modesto estabelecimento. Movido por um instinto semelhante ao de quando comprara seu primeiro e último Acarajé, Soares andou rumo à banca de jornal e pediu a edição diária d’O Novo Bahiano, o único jornal que dava algum foco ao que se passava na cidade e não apenas na linha do front.
E foi então, no momento em que dobrou a primeira página do jornal que viu, ao lado da foto de um guerrilheiro comunista capturado, o sorriso do sujeito que vira ao lado de Dona Griselda, segurando nas mãos um colar de pérolas. Na manchete, lia-se:
DETETIVE INTRÉPIDO RESOLVE DOIS CASOS IMPOSSÍVEIS
A curiosidade tomou conta de Soares, e ele leu a matéria diversas vezes, até quase decorá-la por completo. Não conseguia acreditar como havia sido burro.
O artigo descrevia em longos floreios o método engenhoso que o jovem detetive Geraldo Carvalho tinha usado para capturar uma gangue de malfeitores. Tudo começou quando estava trabalhando para Griselda Pereira, uma moradora da Favela do Calabar, cujas galinhas haviam sido roubadas. Geraldo comprou de seu próprio bolso uma galinha, e a deixou no picadeiro de Griselda. Se os ladrões ainda estivessem na ativa, pegariam a deixa- e Geraldo, que montava guarda lá, poderia seguí-los.
Assim, na madrugada do dia 7 de Fevereiro, Geraldo vira os ladrões- um grupo de crianças moradoras de rua, vulgarmente apelidadas de pivetes. Gerald então seguiu os pivetes até seu esconderijo- um lixão quase nos limites da cidade(nessa hora, o autor do artigo ficava criativo e dava ao lixão nomes imponentes como “o portão do inferno” ou “deserto sem esperança”) e lá descobriu que os pivetes estavam alimentando todas as galinhas em um cercado. “Então eu fiz o que tinha que fazer”-era o que Geraldo, citado entre um par de aspas, dizia naquela parte do artigo. Subentendiam-se muitas coisas por aquela frase, e quase todas davam calafrios à Soares.
De qualquer maneira, Geraldo recuperara as galinhas e, no dia seguinte, elas já haviam retornado para Dona Griselda. Porém, pouco mais de um dia depois, ele recebera uma ligação da mesma Dona Griselda, dizendo que suas galinhas estavam doentes. Mas não era qualquer doença. As galinhas estavam defecando diamantes.
O novo mistério levou mais tempo para ser solucionado, mas, ao chegar àquela arte do artigo, Soares já havia entendido o que acontecera. Os pivetes haviam roubado as jóias da família Guaracy, mas perceberam que seria impossível penhorá-las na cidade- Antonella já as havia celebrizado em uma dúzia de eventos-, logo haviam também roubado galinhas, à quem deram de comer as jóias, para que então saíssem da cidade sem suspeitas. “Só não contavam com o Super Geraldo filho da puta”, pensou Sares enquanto terminava de ler o artigo pela terceira vez.
Geraldo encontrou a família Guaracy através de anúncios em vários jornais, e, apesar de recusar a recompensa que a família lhe oferecera, ele nem precisava aceitar- o caso se espalhara por toda a cidade, primeiro como justificativa para o modelo de “Justiça terceirizada”, depois como exemplo de cidadania, até finalmente cair na boca do povo. As chances de Soares de se tornar o maior detetive de Salvador haviam acabado ali.
-Fffffilho da puta- sibilou mais uma vez Soares enquanto Geraldo apertava sua mão. Pelos olhares desconfortáveis que a maioria das pessoas à sua volta lhe lançavam, ele havia falado alto demais.
Geraldo, de repente abrindo um sorriso jocoso, decidiu quebrar o silêncio:
-E aí, Soares... pegando muitas galinhas recentemente?
Todos deram uma saudável risada. “Essa história realmente foi longe”, pensou Soares, não sem algum rancor. O homem ao lado de Geraldo, que, Soares pôde notar, debaixo de seu uniforme militar usava uma batina de padre, foi o primeiro à parar de rir e o primeiro à falar.
-Ai, ai ai. Demos umas boas risadas, não? Mas bom, temos trabalho à realizar. Orfeu, ele sabe da missão?
-Acredito que sim- disse Orfeu, tirando um pequeno lenço bordado com motivos florais de seu bolso e esfregando-o em seu rosto de onde o suor pingava, abundante. “Quantas coisas esse cara guarda nos bolsos? Parece que o casaco dele não tem fundo”, pensou Soares.
-Detetive Soares, este é o Sargento Brandão, da Milícia de Jesus, um de nossos colaboradores mais freqüentes.
Soares não pôde deixar de tremer um pouco ao ouvir aquele nome associado à uma pessoa tão amigável. A Milícia de Jesus havia conquistado uma pouco desejável fama nos últimos anos. Quase tudo sobre ela era desconhecido, exceto o seu modus operandi: atacar, em bandos de 12, cidades do interior acusadas de abrigar comunistas. Se um sequer fosse descoberto, a cidade era punida de variadas maneiras. Soares se lembrava de um em particular, que vira em uma edição d’O Novo Bahiano havia menos de seis meses. Uma patrulha americana que estava passando pelo lugarejo de Vila Rosada encontrou a cidade vazia, mas as portas de todas as casas estavam abertas, e havia fortes indícios de que um combate havia ocorrido. Quando os americanos foram patrulhar o cemitério, porém, a população foi encontrada. Mais de uma centena de homens, mulheres e crianças haviam sido crucificados em postes de madeira. Alguns ainda estavam vivos, e falaram de bandos andando com lenços brancos no pescoço- o uniforme da Milícia de Jesus. A lembrança das fotos no artigo faziam o sangue de Soares gelar.
-Bom dia, meu filho- disse Brandão.
-B-Bom dia.
-Que lindo, vocês todos se conhecem agora.- disse Orfeu.- Mas agora o que você vai fazer é entrar lá, dizer que vai cumprir a missão, e só isso.
Soares ergueu as sobrancelhas de surpresa. “Se for só isso, será a grana mais fácil que já ganhei. “
-Claro, depois haverá mais o que fazer...
“Óbvio.”
-...Mas no momento, é só isso. Tente ser gentil, usar frases curtas e objetivas. Ah, e tente não lembrar à ele de que você é branco.
Soares ainda se perguntava o que significaria aquela última frase enquanto adentrava o prédio.

*****

-Entra logo filho da puta! Estamos em guerra!- berrou o homem na porta, puxando Soares para dentro pelo braço.
Ele não devia ter mais de 25 anos, usava um tipo de camisa rendada de lã, óculos escuros e uma arma ameaçadoramente reluzente. E haviam mais de 5 não muito diferentes dele naquele mesmo quarto.
“Então esse é o esconderijo de Cassius”, pensou Soares, usando sua visão periférica para examinar cuidadosamente o quarto em que se encontrava no minuto que tinha até se encontrar com o líder.
Apesar de se situar em uma zona relativamente nobre de Salvador, o apartamento era um dos mais podres em que Soares já estivera, isso sem contar o seu próprio. As paredes pareciam ceder sobre o mofo que nelas se acumulava, que era tão espesso que dava à elas uma aparência brilhante debaixo da luz pálida e esverdeada que vinha de uma lâmpada acoplada à um ventilador quebrado. De fato, tudo lá parecia estar em algum tom de verde- desde as paredes, até o carpete grosso, úmido e manchado, passando pelos vários sofás decrépitos que vazavam enchimento e os sete closets- ou pelo menos pareciam ser closets- dispostos em uma ordem aleatória pelas paredes.
O choro alto de uma criança interrompeu seus pensamentos e o desconcentrou. Só então notou que todas as pessoas no quarto estavam olhando para ele.
-O grande Madiba diz que você pode entrar. Mas eu vou com você- diz o homem que havia aberto a porta.
O homem então, tirando uma chave do bolso, abre um dos closets. De dentro da porta, sai uma forte luz branca, que inunda quase toda a sala, e um vapor que parecia rastejar no chão.
A sala dentro do closet estava repleta de uma fumaça espessa, e Soares reconheceria aquele cheiro de maresia em qualquer lugar. Estranhamente, a luz branca e cegante vinha das janelas- eram provavelmente painéis de vidro instalados por sobre janelas muradas, atrás das quais haviam sido postas algumas lâmpadas particularmente poderosas. Uma mesa de madeira gasta, cujas pontas descascavam profusamente, estava à frente da cadeira giratória acolchoada onde sentava Cassius. Isto é, pelo menos até onde Soares podia supor, já que ele ainda não havia se virado.
-Você deve estar se perguntando porquê não me virei até agora- disse uma voz grave vinda de trás da cadeira.
-Olha, de fato...
-É simples. Você vem aqui, e entra em minha base de operações. Não te conheço, nem sei quem é. Estamos prestes à assinar um contrato de importância capital. Ao contrário da luta diária da nossa raça, que labutou sol à sol durante séculos e está somente agora juntando as forças que adquiriu nesse longo exílio para usar contra seus antigos mestres, uma luta em que eu posso definir quem você é e para quem trabalha usando seu nome e a clareza de sua pele, nesse contrato eu não sou seu mestre. Eu sou apenas seu irmão. Diga, filho, eu acho que conheço a sua voz.
Estranhamente, Soares tinha a mesma impressão.
-É, de fato parece...
-Continuemos. Detetive...
-Soares.
-Detetive Soares. Meu grupo não é apenas um Exército.- Soares se perguntou de que exército ele estava falando. Seriam aqueles cinco caras na sala?- Mais que isso, ele é uma família. Obá me abençoou com três filhos saudáveis, e quatro lindas e férteis esposas. Bom, três, mas isso não muda o argumento principal: Esse exército é minha vida, e por extensão, é a vida de muita gente. Era também a vida de minha sobrinha. O senhor consegue ver a minha sobrinha nesse momento?
“O que será que ele está querendo dizer?” pensou Soares, e então ele viu na mesa um porta-retrato, com a foto desbotada de uma pequena garota negra de tranças, em um uniforme escolar.
-Sim, estou vendo.- arriscou Soares.
-Muito perspicaz. Sabe, isso é tão simples, e mesmo assim os dois últimos detetives não souberam responder. Mandei-os embora na mesma hora. Um pouco de poder dedutivo é o mínimo que se pode ter.
Soares olhou para a arma e, por um momento, achou que mandar os detetives embora não era a única coisa que Cassius fazia.
-Hà um mês, minha sobrinha foi seqüestrada. Nós não sabemos que, não sabemos por que motivo. A sua missão é simples: Descubra quem a tomou de mim e porquê. Responda à essas dúvidas, e nada mais. O senhor é um detetive. Não posso pedir que saia atirando e traga ela de volta para mim. Isso é trabalho da família.
Um curto silêncio se fez. Soares não soube o que dizer. “Ok, ele terminou de falar. Melhor ir embora antes que ele fique irritado com a minha presença.”, pensou, recuando.
-Onde você pensa que vai? Eu por acaso pedi pra você sair?
Soares parou, acometido de um frio na espinha. Como ele havia ouvido seus passos silenciosos, ele jamais saberia.
-Não senhor- disse, tremendo.
-Certo. Você será acompanhado, em sua investigação, por um membro da família. Ela fiscalizará se você está fazendo o trabalho bem. Ela se chama Cléopatra, e está atrás de você.
Soares se virou, e a primeira coisa que viu foi uma mulher de um metro e oitenta, o rosto parcialmente coberto por um farto Black Power e um par de óculos escuros. Usava uma livrara de Cleópatra, mas ela voltaria no dia seguinte, e isso significaria mais algumas horas dirigindo à esmo pela cidade, jogando conversa fora com uma pessoa que ele odiava.
Resolveu ligar para Orfeu, para ventilar um pouco suas preocupações e falar com uma pessoa para quem não precisaria mentir- muito.
-Capitão Orfeu, pois não?- disse a grave voz do outro lado do pequeno telefone de plástico azul.
-Orfeu, sou eu, o Soares. Eu...
-Ora, é claro que eu reconheço a sua voz, Soares. Apenas digo “Capitão Orfeu, pois não” por protocolo.
Então porquê me interrompeu?- pensou Soares, mas tratou de ir direto ao ponto.
-Orfeu, estou com problemas.
-É, eu vi. E aí, comeu?
-O quê?
-A neguinha, comeu?
-O que? Não, porra, claro que não. Mulher chata dos infernos.
-Pena.
-Orfeu, você não tá entendendo.
-É claro que eu entendo. Ao invés de passar o dia investigando, você quer entregar o dossiê e ficar nisso mesmo.
-Sim.
-E não dá pra fazer isso com ela ao seu lado.
-Exato.
jaqueta militar, e Soares tinha certeza, mais nada por baixo. Soares ainda não tinha idéia de como ela havia entrado sem que ele percebesse.
-Agora está liberado. Viu? É fácil. É só me obedecer.
Escoltado por Cleópatra, Soares deixou o apartamento.

*****

-Okay, então como vamos fazer isso?
-Cala a boca e entra no carro, branquelo. Isso é uma guerra.
Cleópatra abriu a porta do carro- um Cadillac velho e batido dos anos cinqüenta- e fez sinal para que Soares entrasse.
-Certo, desculpa por revelar a sua posição. Mas como vamos fazer isso?
-Você é o detetive, você deveria dizer onde começamos. Quem, você acha, é o principal suspeito? Pense, homem.
“Porra, eu mal te conheço e já te odeio”, pensou Soares.
-Olha, pra um detetive, você é ruim mesmo.- disse Cleópatra, ajustando os óculos que refletiam forte o sol do meio-dia. O vidro e a carroceria fariam a mesma coisa, se não estivessem sujos e enferrujados.
-Certo. Vamos deixar isso de lado. O Cassius...
-Shh! Deixa de ser imbecil, branquelo. Use um código. Isso aqui é uma guerra.
-Como o quê?
-Ah, não sei, porra branquelo, algo como, sei lá, chefia.
-Certo. O “chefia” te deu algum papel com informações que eu deveria saber sobre a sobrinha dele?
-Porra branquelo! Não! Pode ter alguém escutando essa merda de conversa, use um código, como...
E assim foi. Soares precisou se segurar para não bater o carro de propósito. Ele olhou para as pessoas que estavam do outro lado da rua e que até agora desprezava- o Capitão Orfeu, Sargento Brandão, e até o maldito Geraldo- e viu como até eles pareciam se compadecer de sua situação. Uma coisa era certa: seria impossível conduzir uma verdadeira investigação falsa com aquela mulher na sua cola.

*****

Soares desabou na sua cama após o que pareceu ter sido uma semana inteira fora dela. Já se

As condições haviam piorado bastante. Agora não apenas o governo estava na sua cola, como a sua única chance em meses de descolar um trocado haviam sido solapadas por acontecimentos maiores e mais cheios de melanina do que ele. Havia uma única chance de resolver essa situação, e isso era tomando uma ação vigorosa e corajosa. Porém, Soares não era um homem de ações vigorosas e corajosas, e por isso decidiu ligar para Orfeu em busca de conselhos.
-Escritório do Capitão Orfeu, pois não.
-Orfeu, sou eu, o Soares.
-Ora, é claro que é você, Soares, eu reconheceria sua voz em qualquer lugar. Apenas digo “Escritório do Capitão Orfeu, pois não” por protocolo.- A sua voz adquirira uma tonalidade informal e descontraída, que Soares já conhecia e que, pela experiência (e pela marca visível de um galo em sua cabeça), vinha sempre carregada de segundas intenções.
-Orfeu, eu estou com problemas.- disse Soares, tentando ir direto ao ponto.
-É, eu sei.
-É a Cleópatra.
-Ah, tá, ela tem nome. E aí, comeu?
-Hein?
-A neguinha, você traçou ela?
-O que?! Não, claro que não! Porra homem, vamos tentar manter isso sério!
- Ah, tá, tá bom.-Orfeu recuperou rapidamente a compostura e adotou mais uma vez um tom de voz alegre e apoiador.- É disso que eu gosto em você, Soares, você vai direto ao ponto! É um investigador de verdade.
-Agradeço os elogios, Orfeu, mas eu realmente estou com um problema aqui- disse Soares, irritadiço.
-Eu entendo o seu problema. Infelizmente, não é minha tarefa ajudar você.
-Como não?
-Seja criativo, homem! Invente algum jeito de se livrar dela. Câmbio e desligo.
Ele não desligou o telefone; Soares pôde ouvir saindo do cabo do telefone uma frase que se assemelhava à algo como “Quer dizer então que a neguinha tá livre?” antes de desligá-lo ele próprio.
Soares observou a alça do telefone por alguns segundos. Então, tomado de raiva contra os homens do governo que lhe tinham emboscado para dentro dessa missão e agora lhe abandonavam sem cerimônia ou um mísero “foi mal”, “desculpa”, pegou o telefone e jogou-o com força sobre a alça, derrubando o pequeno aparelho em um gesto incompleto de má vontade. Ainda insatisfeito com sua vingança sobre o pequeno eletrodoméstico, deu-o um chute que isolou-o em um canto de seu exíguo quarto. Agora sentia que havia exagerado na dose, mas o telefone estava muito longe e no momento, haviam assuntos mais importantes a serem tratados, dentre os quais como se livrar de sua co-investigadora megera. Várias idéias passaram por sua cabeça como vagões de um mesmo trem, que rapidamente descarrilava; por isso, entenda-se que ele descartava as idéias muito rapidamente.
Sem aviso, uma idéia tomou de assalto o território que ia de sua orelha esquerda à sua orelha direita e das sobrancelhas até a sua nuca. Era uma idéia que beirava o irracional, mas, quem sabe, poderia funcionar. Ele a vira num filme que entrara em cartaz havia uns seis meses, “As portas da fúria”. O filme não era bom; a idéia dava pro gasto.

Recuperou seu inocente aparelho de telecomunicações do chão, limpando-o, restabelecendo-o à sua posição original e finalmente ligando para Orfeu, que ouviu tudo com paciência e agradeceu a proposta. Finda a ligação, Soares atirou-se em sua cama em um único gesto(um salto), tendo consciência de que ainda estava usando as roupas do trabalho, o que sem dúvida lhe valeria uma noite de sono desagradável e várias marcas de costura pelo corpo quando acordasse, mas estava muito feliz para se importar.

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