quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 30

Capítulo 23



A Companhia escapou com sucesso. Na verdade, tinha quase certeza que matamos todos os comunistas que estavam na base.
Mas o que doía era saber que isso não importava nada.
Para todos os efeitos, a cidade estava perdida. Escapamos da base, mas quando saíamos, a Companhia estava completamente dispersa e a maioria simplesmente deserdou, desaparecendo pelas vielas escuras sem olhar para trás, sem dar nenhuma desculpa. Quem sou eu para culpá-los?
A saída da base dava para um pátio cheio de latas de lixo reviradas e cheirando a ratos. Três soldados estavam comigo. Todos recrutados compulsoriamente.
Ordenei que fossem procurar os outros- não podiam estar muito longe, afinal o tiroteio acontecera á menos de meia hora. Marcamos para nos encontrarmos daqui à quarenta minutos perto da praia, que não ficava longe do quartel, onde nos reuniríamos e planejaríamos o contra-ataque. Agora, vejo o problema. Tratei à eles como um oficial trata seus subordinados. À essa altura, ninguém estava com muita vontade de receber ordens. Maldita juventude e sua capacidade inaudita de me fazer sentir um velho antes de chegar aos 30.
Aqui estou, quarenta minutos depois, e ninguém surgiu na praia. Nenhum tipo de reforço, e o pior, ninguém da companhia. A eletricidade da cidade parece ter caído.
Continuar a lutar? Como? Com que? Deixar a base havia sido tarefa complicada, e atravessar as ruas sem arriscar ser notado, mais difícil ainda.
Do que adianta? Mesmo que nos reagrupemos na zona do porto, estaremos ilhados, e somos muito pouco numerosos para efetivamente retomar a cidade. Havíamos perdido a batalha antes mesmo de ela começar.
Parei à frente do mar, que se estendia em uma imensidão negra à minha frente. Uma brisa suave soprava, diferentemente do calor úmido que assolava o resto da cidade. Algumas estrelas no céu; algumas luzes no horizonte. Navios de guerra, sem dúvida.
Sentei-me à beira do mar, em um rochedo úmido, pedra vulcânica lisa. Esperei quinze minutos. Ninguém apareceu. Esperei meia hora.
Ninguém apareceu.
Meu exército sumira. O reagrupamento fracassara.
Havia algo de gratificante na solidão do porto. Sim, eu estava sozinho no escuro; mas também mostravam-se ausentes em explosões, os gritos de agonia á mim tão familiares.
Olhei-me em uma poça. Minha tez estava suada, meu cabelo desarrumado; estava mais sujo e bastante mais magro do que quando deixara os EUA. O último soldado americano em Salvador.
Levantei meu olhar, e, de repente, vi que não estava mais sozinho.

*****

Um homem, cuja silhueta apenas eu via, desamarrava a corda de um barco. Aproximei-me, e disse:
-Vai para algum lugar?
O homem virou o rosto e encarou-me, parecendo positivamente apavorado. Um bigode fino adornar-lhe o rosto; usava apenas um tipo de camisola azul, suja de suor. Era alto e longilíneo; talvez fosse um hippie.
-Fugindo da cidade, eu presumo – disse, não sem rir um pouco da situação. Aqui estava eu, utilizando-me de minha autoridade militar em um país estrangeiro, sem ter nenhuma arma para fazê-la valer.
-Eu vim pôr um fim em tudo – disse o homem, em um inglês surpreendentemente bom.
-Porque? Medo dos comunistas? – perguntei ao homem, que ainda se debatia contra as cordas.
-Não são os comunistas – ele disse, tropeçando um pouco na pronúncia. – Sou eu mesmo Só causo problemas. Tudo que eu faço leva sofrimento a aqueles ao meu redor. Eu fujo, fujo, mas os problemas sempre voltam para me seguir. Eu mudei de cidade, mas as conseqüências de minhas ações me seguiram até aqui. E quando eu tento fugir, acabo gerando mais problemas, para mim e para os outros. Estou vivendo em uma eterna avalanche de sofrimento. Por isso, eu
vim aqui organizar a derradeira fuga. Vou fugir para o mar, vou até onde nenhum problema pode me alcançar, aonde não posso prejudicar ninguém. Lá com sorte, eu vou morrer.
O homem desistiu de desamarrar as cordas e se contentava de contar sua história, despejando as palavras á uma velocidade cada vez maior, e gestivulando vorazmente. Tenho que imaginar que, antes de se suicidar, ele pretendia ao menos realizar um último desabafo. Ele provavelmente era tão solitário que não tinha nem com quem deixar um bilhete de suicídio.
-Antes de fazer isso – eu sugeri, passando a mão em meu cabelo e me sentando ao seu lado. – Pense que tem pessoas cujos erros são maiores que os seus.
-Como os comunistas? – ele produziu uma risada irônica, e continuou a desamarrar o barco.
-Não. Como eu – respondi.
Ele interrompeu novamente o trabalhoso processo e olhou para mim.
-E você é?
-Dieter Freeman.
-E o que você, Dieter Freeman, fez de tão ruim?
-Eu possuía informação confidencial sobre a ofensiva que se iniciou hoje à noite.
-Essa ofensiva? – Soares apontou para uma loja – sem dúvida uma peixaria – que ardia em chamas atrás de si.
-Não tinha visto até agora, mas sim, essa mesma.
-Aham. E pelo visto não entregou sua informação.
-Pior Eu poderia ter entregado. Mas não me precavi, e agora os comunistas tomaram a cidade. Isso poderia ter perfeitamente sido evitado, e milhares de vidas poderiam ter sido salvas não fosse a minha irresponsabilidade.
O homem do bigode fino fitou o horizonte por alguns segundos e disse simplesmente:
-Você está errado.
-Por que?
-Se tivesse entregado essa sua informação, o seu exército – presumo que seja o americano...
-Presumiu certo.
-...Teria esmagado a ofensiva. Esmagado com armas e helicópteros. Milhares teriam morrido de qualquer maneira, eles só não estão do seu lado. O que eu fiz foi pior.
Fiquei atônito coma conclusão daquele homem. Tão atônito que me esqueci de perguntar o que ele tinha feito de tão ruim.
-Pessoas morreram por minha causa – ele completou, sem eu precisar adicionar nada.
-Pessoas morrem todos os dias.
-Cala a boca. É mais complicado que isso. É uma longa história, mas fui contratado pelo governo para espionar um velho amigo meu e descobrir se ele estava realizando alguma atividade subversiva. Pelo que entendi, o que eles pretendiam realizar era a ofensiva de hoje.
-Que coincidência.
-É, mas não é a parte importante. Eu sou um detetive. A forma que encontraram para que ele me contratasse pedindo ajuda, assim permitindo que eu me aproximasse dele e conseguisse as informações que o governo queria, foi fazendo com que ele precisasse de mim para resolver um caso. Como que por coincidência, a sua sobrinha sumiu na mesma semana.
-Cacete.
-Eu não sei o que aconteceu com ela. Eu não sei se está morta, ou viva, escondida em algum armazém por aí. Mas tudo que ela sofreu não ocorreria se eu não estivesse aqui, nessa cidade. Uma cidade onde estou somente por causa dos problemas dos quais fugi.
Alguns segundos se passaram em silêncio, e nós dois olhávamos para o horizonte, para o ponto insondável onde o mar virava céu e os navios viravam estrelas. De súbito, eu disse:
-Você está errado.
-Porque?
-ACARAJÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!
A terceira presença era um homem, empurrando um carrinho com uma grande panela de óleo, e potes contendo vários ingredientes coloridos e estranhos. O outro homem, o do bigode, escondeu sua cabeça entre os braços, e repetiu várias vezes:
-Ai, meu Deus... até aqui... até aqui...
-Quem é esse homem? – perguntei, curioso.
-É mais um exemplo! Eu tive problemas com esse homem no mesmo dia que o conheci e desde então ele tem me seguido!
-Vamos fazer o seguinte – eu disse, e peguei a mão do homem de bigode fino. Estava suada.
-Ei! O que está fazendo? – perguntou, enquanto eu o puxava.
-Você vai ver – respondi.
Paramos na frente do homem, enquanto ele ainda empurrava seu carrinho. Este ajustou seus óculos, saiu de trás do carrinho e veio perguntar algo em português.
-Peça desculpas à esse homem.
-O que? Está maluco.
-Peça desculpas.
O homem de bigode fino pigarreou, hesitando. Finalmente, foi até o outro homem – um pequeno tonel roliço, queimado de sol – e disse algumas palavras. O homem saiu, disse algo, ambos riram, e meu amigo saiu com um esquisito bolinho, recheado de camarão.
-E então? – eu perguntei.
-Funcionou! – ele disse, e me ofereceu o bolinho. – Se chama Acarajé. É uma comida local. Talvez já tenha ouvido falar.
Fiz que não, e tomei em minhas mãos o acarajé, pelando. Começei com uma mordida cautelosa – os apimentados e oleosos sabores da iguaria explodiram em minha boca.
-Nossa, isso é ótimo!
-É, eu não gosto tanto – comentou. – Aliás, você estava dizendo algo sobre eu estar errado.
-Ah, sim. Bom, você não está realmente errado. Entenda, as conseqüências de suas ações podem mesmo ser sua culpa, mas essa não é a questão; a questão é o que você faz com elas.
-Prossiga.
-Pretendia prosseguir mesmo. Quando as consequências do que faz começam à chover sobre você, tem duas opções: fugir, ou enfrentá-las de alguma forma. Você sempre escolheu fugir, e olha aonde isso te deixou. É aí onde mora a sua culpa. Por outro lado, olha o que aconteceu quando você resolveu ir até esse homem, e falar com ele para resolver os problemas que tinha com ele, seja quais fossem, não me importo. A solução não é fugir, e, longe de resolver seus problemas, se jogar ao mar representaria a maior fuga de todas.
-Isso tudo é muito bonito, mas não vai trazer ninguém de volta á vida. – Disse o homem de bigode fino enquanto eu dava mais uma mordida no acarajé, o seu cheiro singular invadindo minhas narinas. Subitamente, ele parou, cutucando os dedos das mãos, e disse:
-Acho que sei o que podemos fazer. Não podemos trazer ninguém de volta. Mas podemos dar um descanso digno aos que se foram.
-Enterrá-los?
-Enterrá-la. Começaremos pela vítima de que mais tenho vergonha: a sobrinha de meu amigo. Uma criança que não tinha nada a ver com essa guerra. À partir de hoje, não fugirei mais: darei meia-volta e correrei atrás. Podemos ser escravos do passado, mas o presente pertence à nós.
Encarado por aquelas luzes e pela imensa escuridão, o peso do que fizera nas minhas costas, a cidade em ruínas a nossos pés, declarei laconicamente:
-Vou com você.
-Ele olhou para mim de cima a baixo, provavelmente não muito impressionado com minha aparência cansada e uniforme em frangalhos, e respondeu:
-Certo, mas lá vai. Quando eu finalmente corrigir aquilo que eu errei, após eu caminhar o mundo atrás de meu passado, eu retornarei para o presente, para esse local e esse momento – e, em um gesto cansado, de um homem desesperado, ele aponta para o mar – e terminarei aquilo que começei.
-Acarajé! Os melhores acarajés da cidade! Não sou eu quem digo! – disse o homem, sumindo em uma esquina mal-iluminada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário