sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 26 e post número 100!

Capítulo 19


-Em termos de comida, sobrou um pouco do vatapá de ontem. Se quiser, esquenta no micro-ondas.
-Micro... Quê?
-Aquele forninho retangular.
-Geraldo foram bem gentil em vestir Soares, e ele não pensava diferente. O armário que ele abriu tinha uma variedade interminável de sobretudos camisas, calças, e roupões de gosto duvidoso, todos de primeira qualidade, feitos com algum tecido suave que provavelmente tinha sido inventado na Noruega ou alguma merda dessas.
Olhando bem para a casa ao seu redor, Soares se sentou e mergulhou seu garfo no fumegante e requentado prato de vatapá.
-Bom- disse Geraldo, sentando-se à frente de Soares na mesa repleta de prataria reluzente- Acho que está na hora de discutirmos esse assunto à fundo.
Soares fez uma nota mental para não derrubar o vatapá na roupa cara de Geraldo.
-Hmm- resmungou Soares, com comida na boca. Ainda lhe espantava como aquele forno esquentara a comida em apenas um minuto.
-Eu poderia ter matado você naquela rua. Talvez devesse, afinal, crimes de honra podem ser resolvidos dessa forma. Mas não seria justo nas minhas condições.
Soares permaneceu calado, aproveitando seu único prato de comida em 24 horas.
-Não vai... Perguntar quais são as condições?
-Mque?
-Porque eu não te matei.
-Ah sim, claro. Porque não...
-Você roubou a minha mulher- interrompeu Geraldo- Mas eu também a roubei de alguém.
O queixo de Soares caiu. Em um reflexo, olhou para baixo para ver se um pouco do vatapá de sua boca tinha manchado a roupa. Felizmente, estava tudo no prato.
Soares se recompôs e disse:
-Bom, antes de tudo, eu não roubei a sua mulher.
Geraldo parecia desconfiado.
-Cara, eu já to te dando um passe livre porque aquela história de estupro estava no mínimo mal-contada. Agora, pelo menos tenha a dignidade de admitir que vocês dois estavam me traindo pelas costas.
-Existe traição de frente?
-Perdão.
-Não. Só comentando que eu não tenho certeza se dá pra trair alguém na frente da pessoa.
-O que?
-Mas é só uma pergunta, uai- disse Soares, empregando a expressão mineira.
-Olha, é claro que dá pra trair alguém na frente da pessoa que está sendo chifrada. É só que ninguém faz isso. Por isso ninguém fala “trair de frente”.
-Interessante.
-Interessante é o caralho- berrou Geraldo, e Soares interrompeu na metade o gesto de colocar em sua bocarra aberta uma garfada de vatapá.
-Me dê um bom motivo para eu não tirar a conclusão que você estava traçando a minha namorada.
-Sua “namorada”- disse Soares, fazendo o sinal de aspas com as mãos.
-É, certo, minha “namorada”.
-Ela me capturou e me botou no armário.
-...
-O que?
-Pelado?
-É. Humilhante, não?
-Pera um segundo. Quando você diz que foi capturado...
-Ai, ai, ai... como dizer isso?- disse Soares, tomando um largo gole de água, e de fato, tentando encontrar as palavras certas para aquela notícia. Estava suando, mas não sabia porque. Ainda não estava nem perto de meio-dia.
-Digamos que... a sua namorada é uma terrorista. Que omite o nome- Soares ainda não perdoara aquela parte.
-Ah, é, eu sei disso.
-De que?
-Da Frente Revolucionária de Libertação da Bahia.
-Você... sabia que ela era uma terrorista marxista?
-Maoísta.
-Maoí... que se dane! Como sabe disso?!
-Ah, são coisas que namorados contam um pro outro antes de começarem um relacionamento sério. Sou alérgico à amendoim, fui fã do Tonico e Tinoco quando moleque, sou um terrorista de esquerda.
-...Sério?
-Não realmente. O Padre Brandão me mandou espiar ela, para ver se ela tinha algum amante que ele não aprovasse. Felizmente, esse era eu- disse Geraldo, com um sorriso serelepe- Então não teve problema. Daí, é claro, fazendo uma pesquisa, eu descobri que ela era...
-Uma coisa- Soares disse, com o dedo indicador levantado. De súbito, sentiu seu estômago reclamando, soltando uma daquelas largas e graves ruminações.
-O que?
-Você disse Padre Brandão. Porque ele estava interessado na vida sexual de uma jovem
garota?
-É normal para os pais se interessarem pela vida sexual das filhas- Geraldo disse, com naturalidade.
-Espera aí!
-Exatamente.
-Ela?
-Sim.
-Não.
-Sim.
-Brandão tem uma filha? Mas...
-Adotiva.
-Ah. Mesmo assim, caralho- o rosto de Soares caiu em suas mãos. – O líder da Milícia de Jesus tem uma filha terrorista... E porque você não conta nada?
-Nunca me perguntaram nada- disse Geraldo, dando de ombros.
-Bom ponto. Agora, falando sério, qual é a idade dela? Ela parece ter uns dezoito anos.
-Dezessete.
-...Cara, isso dá cadeia.
-Não quando é você quem aplica a lei.
Geraldo ergueu seu copo e deu uma piscadela.
-Tá bom. Agora, dito isso, tem uma coisa que eu preciso falar. Tinha várias roupas da Milícia de Jesus no armário dela. O que você acha que isso significa?
Geraldo deu de ombros.
-Nada. Ela é membro da Milícia.
-Mas eram umas quinze!
Geraldo vira-se para o lado de sua cadeira e repousou a cabeça sobre o punho fechado.
-Quinze uniformes- ele disse, mastigando a informação.
-...Sim?
-Nah, não vem nada.
-Porra homem, pense! Você é suposto ser o grande detetive!
-Ei, mais respeito, moleque, você está comendo a minha comida.
-Tá, é verdade.
O estômago de Soares reclamou mais uma vez.
-Falando nisso, o que tem de errado com essa comida? Parece que está ocorrendo um atentado aqui.
-Olha, se isso está te causando tantos problemas assim, sugiro que você use o banheiro aqui ao lado- Geraldo disse, apontando um corredor.
Antes que ele terminasse a frase, Soares correu para o corredor, quase esbarrando no crucifixo pendurado na porta.


*****


Água encanada. Beleza.
O quarto-escritório de Soares não tinha banheiro, e, na verdade, nem seu prédio. Bom, nada que merecesse o nome de banheiro, em todo caso. Tudo de que dispunha era uma latrina infame que ninguém usava, e que tinha ficado congestionada hà muito tempo. Na última vez que a visitara, o cheiro infecto tinha se convertido em uma fumaça sólida que grudara no teto e o escurecera. Ela fazia arder os olhos e inflamava os pulmões. Olhando para dentro do poço, Soares podia ver algumas plantas crescendo.
Agora, o banheiro de Geraldo era outra coisa. Um pequeno trono de porcelana, com uma manivela prateada para livrar-se das impurezas.
Na frente do trono estava algo que Soares identificava como um penico menor, mas que não estava conectado à nenhum tipo de encanamento, apesar de ter buracos em seu fundo. Era de um formato curiosamente semelhante à uma pêra oca. Um pequeno tubo se desprendia dela, como um aparelho genital. Em sua superfície, estava escrito “R. Mutt, 1917”.
Foi exatamente no momento de maior alívio de seu dia, superior inclusive ao momento em que fugira da prisão de Jana, que Soares começou á entreouvir uma conversa.
Começou com uma campainha.


*****


Geraldo andou até a porta. Era sem dúvida um momento inconveniente para mais uma
visita.
Do outro lado, estava um jovem verde-oliva. Um militar verde como madeira. Sem barba. Apesar do nome no uniforme- T. Tzara- e de parecer americano, com grandes olhos azuis, ele falava um português perfeito.
-Bom dia- ele disse, entrando sem ser convidado- Suponho que você seja o Sr. Geraldo Ary?
-Sim- disse Geraldo, mantendo a porta aberta, com a esperança de que ele visse isso como um convite à se retirar.
-Eu estou aqui como um representante do Capitão Orfeu da Matriz, do Serviço Secreto.
Geraldo franziu a testa e tentou um sorriso.
-Com licença? E porque Orfeu não mandou um de seus próprios subordinados? Ou esse serviço também foi terceirizado para os americanos?
A jovialidade do americano se converteu em severidade.
-Não se brinca com coisas sérias assim, Sr. Ary. O Capitão Orfeu sofreu um acidente de trabalho. Sua tropa sofreu um grande número de baixas em uma missão.
-Que tipo de missão?
-A informação é confidencial.
-Certo.
-Estamos aqui para pedir que participe de uma missão. Sua participação será compulsória.
Geraldo repousou a testa na mão.
-Outra vez? Quando é que vão começar à me pagar por isso?
-Eu sou apenas o mensageiro, Sr. Ary. E se não me engano, os seus últimos serviços compraram essa casa.
-É verdade. Esses cheques do Serviço Secreto são como chuva de verão. Você nunca sabe quando eles vão vir, mas quando vêm...
O soldado interrompeu.
-Espero que tome isso como um encorajamento para participar dessa missão.
Encorajamento o caralho. Se eu não participar, eu vou acordar com as minhas bolas pregadas na parede, pensou Geraldo.
-Olha, não é por nada não, mas eu to com um detetive aqui comigo que é perfeitamente capaz de realizar esse trabalho. Ele ta no banheiro, posso chamar ele se você quiser.
-Recebi ordens específicas de buscar por você, Sr. Ary.
-Certo.
-Aqui está a pasta.
O Americano andou até Geraldo e largou a pasta em suas mãos sem muito cuidado, foi até a porta e, fazendo uma breve reverência com o capacete, saiu da casa.


*****


Soares estava em pânico. Suando frio, e nem era mais por causa do vatapá. Um soldado entrara na casa. Conhecendo Geraldo, ele o denunciaria à qualquer momento, e em breve Orfeu e seus capangas estariam no banheiro, e ele seria torturado de formas que não queria nem imaginar.
Lembrou então de Orfeu. Ele escapara do incêndio? Que fim levara? Nem todo homem seria capaz de sobreviver à um tiro no olho, mesmo de raspão como aquele havia sido.
Soares pensou em um plano de fuga rápido. Subiu em cima do vaso, sobre o qual havia uma janela. Abriu-a, tendo cuidado para não fazer barulho.
Olhou para o lado de fora. Um pequeno quintal de gramado verde, com uma mesa branca. Talvez se eu me espremer por essa janela e pular, a mesa amorteça a minha queda.
Começou então o doloroso trabalho de se espremer pelo buraco. A cabeça passou facilmente. Perguntou-se se a barriga ia passar- mas então lembrou que não comera quase nada nos últimos dias, e isso sem dúvida ajudaria.
Passou o pescoço, e então os braços. O seu centro de gravidade então ficou equilibrado entre o banheiro e o jardim.
Estava preso?
Estava preso. Merda.
Debateu-se no ar, tentando encontrar algum ponto de apoio para continuar se empurrando, e suas perna também fizeram um estardalhaço dentro do banheiro. Ele ouviu o barulho de um vidro de xampu caindo.
Droga.
Debateu-se com mais força, agarrando-se em um cano e tentando puxar o próprio corpo em direção à ele. As pernas iam passando.
Subitamente, ouviu a porta do banheiro se abrindo.
-Soares?
-Ge-Geraldo?
-Que porra é essa Soares?
-Eu... Eu posso explicar?
Soares largou o cano e impulsionou-se para dentro, tropeçando no vaso e caindo de cara no chão de mármore.
-Eu não acredito- disse Geraldo, furioso, com as mãos na cintura.
-Geraldo, eu...
-Tentando roubar o meu sobretudo. Se você quer tanto, eu posso te dar. Ele é velho.
-... É claro. Desculpa, Geraldo. Eu não sei o que passou pela minha cabeça.
-É, é. Seguinte. Eu tenho um problema à resolver hoje à noite. Tem alguma coisa à ver com um festival de música, ou algo assim.
-Festival de...
Os pensamentos começaram à clicar. Marcello falara de uma operação, e tinha à ver com um festival de música. Raulzito. Nara Leão. Caetano Veloso. Todos artistas que haviam sido exilados.
Lembrou-se então das roupas no armário de Jana. Ela não tinha como precisar de 12 roupas, e algumas eram do modelo usado por homens.
Se lembrou da missão que recebera de Orfeu. Orfeu. Orfeu filho da puta. Ok, breve digressão.
A missão: mostrar que aquela menina- doce menina- tinha sido seqüestrada por uma organização terrorista- a mesma que Jana fazia parte. Jogar uma organização contra a outra. Um banho de sangue vermelho-comunista. Dividir para conquistar.
Fracassou. O apartamento explodiu. O castelo de cartas caiu.
Mas nada mudou. O sol se pôs, o sol nasceu, mas o plano permaneceu o mesmo. Quem seria culpado? Os comunistas. Os outros comunistas.
Eu era apenas a isca. O mundo pode até não ser um palco, mas essa é uma cena de teatro. Eu fui à frente, disse minha fala, e as cortinas se fecharam. Aplausos.
As engrenagens continuaram. Soares tinha feito seu papel. Havia uma conexão que ele não conseguia ver- todas as partes do mistério estavam se revelando aos poucos, mas aquela
permanecia oculta. Qual era a conexão de Soares com a missão de Jana nessa noite fatídica? Os uniformes, onde entravam?
Eu fui uma isca. Para botar o grupo de Jana como bode expiatório. Jana tem os uniformes da Milícia de Jesus. Faça as contas. Faça as contas. Façaascontasfaçaascontasfaçaascontasfaçascontasfaçascontadsfsfçascontasfaçacontas 
-Soares? Você parece meio disperso. 
-Espera, to pensando.

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