quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

120 Horas em Lhassa - Parte II

1 Hora, 43 minutos 

-Maldito engarrafamento!- vociferou Tyuugai, em Mongol.
Um grupo de galinhas escapara de suas jaulas e agora bloqueara a passagem na rua enquanto o feirante tentava, desesperado, reuni-las.
-Bom... podemos ir andando- sugeriu Li, também em Mongol.
Tyuugai era túrquico e Li era chinesa. Ambos falavam em Mongol por causa do terceiro e odiado ocupante da van- o Chinês Dong.
Dong não sabia operar a câmera, como Tyuugai, ou dar as notícias de uma maneira carismática e jovial, como Li. Sua missão era observar- e emitir permissões.- A razão pela qual estava lá era porque era funcionário júnior do Ulukorbak; e o Ulukorbak, por assim dizer, não tinha muita confiança na mídia. Na verdade, tinha tanta pouca confiança que forçara o Dalai Lama à emitir um decreto ordenando que toda mídia deveria passar por ele, sendo então devidamente inspecionada e limpa de elementos perturbadores ou subversivos, e então transmitida para o público bukkara. Assim, como parte do decreto, haveria um funcionário do Ulukorbak para cada equipe de repórteres.
-Podemos pegar um atalho pela Praça Central...-sugeriu Li- a escola não fica muito longe de lá.
A escola, no caso, era a Escola Religiosa Municipal Thubten Gyatso, que estava ardendo em chamas. Não se sabia se haviam crianças lá dentro quando o incêndio começou; o Ulukorbak ainda não havia permitido a entrada de nenhum orgão de notícias. Na verdade, Li seria a primeira à entrar.
-Certo. Vou virar.
Atravessaram uma das apertadas ruas medievais de Lhassa, e, quase que por mágica, minutos depois estavam nas largas avenidas da Praça Central, o coração de Bukkara.
-Ali! Posso ver a fumaça, e onde há fumaça, há fogo- disse Li, com um sorrisinho esperto. 
Quando passavam por uma das avenidas laterais da Praça, uma multidão interrompeu-os. Tyuugai esmurrou o volante, enfurecido.
-Saco! Qual é a de toda essa gente?
-Estão se dirigindo para a Praça- percebeu Li.- O que está acontecendo ali, afinal de contas?
Ambos olharam pela janela e de fato uma turba começava à se formar no centro da praça.
Dong, afoito, ligou um celular que mais parecia um videocassete e começou à dizer algo em chinês. Li percebeu que ele estava pedindo explicações.
-Tyuugai- disse ela para ele, em Mongol- Tem algo acontecendo nessa praça e parece importante.
Tyuugai suspirou.-Se você está pensando o que eu estou pensando que você está pensando, acho que não posso segui-la. Não com esse espião nas nossas costas. Desculpe.
-Isso não nos impede de dar uma olhada lá fora... descobrir o que está acontecendo- disse Li.
Tyuugai virou-se e olhou para Dong, que esbravejava contra o telefone em algum dialeto qualquer.
-Saia da van- ordenou Tyuugai. Li prontamente obedeceu.
Dong distraiu-se de sua conversa de telefone, e, sem entender nada, foi para o banco da frente. Pela janela, viu Tyuugai trancando a porta.
Dong, com uma expressão afoita no rosto, começou à bater contra o vidro.
Tyuugai inicialmente sorriu e fez uma dançinha; mas isso lentamente se desfez e ao invés disso ficou com uma expressão de terror no rosto.
-Ah, por Buddha! E agora? Prendi um oficial do Ulukorbak na minha van! E ele tem um celular! Vão revogar a minha licença e eu vou ser mandado para alguma serraria xexelenta na...
-Hora, seja homem!- disse Li.-Estamos no mesmo barco agora. 
Morte ao Dalai Lama! Viva a Liberdade!
As palavras de ordem da turba percorreram a espinha de Tyuugai e até Li, por um segundo, ficou espantada.
-Sacrílegos? Prendemos um superior na van para ver sacrílegos? 
-Ele não era o nosso superior, Tyuugai. Estava lá para verificar que não filmássemos nada de subversivo, e no momento não estamos filmando nada, estamos?
-Bom... Acho que sim. Mas, caso, se não vamos filmar, o que faremos?
-Ora, Tyuugai! Presenciar esse evento histórico!- disse Li, apontando em um largo gesto para a multidão que se formava.- A última grande manifestação foi em 2001, e organizada por ONGs estrangeiras. Essa aí é a primeira chance real que temos de ver alguma mudança ser feita!
Tyuugai olhava para ela. Li não era particularmente bonita; era magra demais e muito pálida. Mesmo assim, o jeito com que seu olhar brilhava quando ela falava das grandes causas sociais era apaixonante. Parecia frágil, e, ao mesmo tempo, dotada de alguma força sobrenatural, uma alegria juvenil que ainda moveria montanhas. Desde que haviam começado à trabalhar juntos, havia dois anos, Tyuugai aprendera à amá-La quase como uma filha apesar de ela ser apenas 5 anos mais nova. Aprendera também à considerá-la uma profissional de seu campo, ainda que, para falar a verdade, ele ainda tivesse a impressão de que ela conseguira o cargo apenas porque seu pai era um empresário rico e costa-quente participando no “mercado triangular” entre as grandes empresas, o Palácio Potala e a máfia chinesa.
-...Aliás, podemos até conseguir que o salário mínimo seja criado. Entende como essa situação é importante?
-Ham... Sim, mas ainda acho que deveríamos sair daqui.
-Ah, caramba, Tyu! Bom. Façamos de outra maneira. Eu tive uma idéia. Me traga a minha bolsa.
Tyuugai andou até Li e trouxe a bolsa para ela.
-Aqui- disse, entregando a bolsa- o que quer?
-Só isso- abriu e do interior da bolsa tirou uma pequena câmera digital.
-Mas porque?
-Tyuugai... você sempre quis ser repórter, não é? 
-Bom... isso, e veterinário.
-Então essa é a sua chance. De ser repórter, não veterinário. Leve a sua câmera para o local do incêndio e faça a matéria lá. Eu filmarei o que está acontecendo aqui com a minha câmera digital.
-Hein? Não, não! Sou tão responsável quanto você. Estamos no mesmo barco, lembra? Não posso te abandonar às consequências.
-Vou ficar bem- disse Li, dando um tapa nas costas do companheiro.- Só preciso de alguém pra me filmar. Ei, você!
Li acenou para um velhote magro e do óculos à distância. Falou algo em Tibetano e deu a câmera para ele.
-Agora vá. Aquela escola te chama- disse Li, decidida, virando-se para Tyuugai.
-Se você diz...- disse Tyuugai, ainda não completamente convencido. Afastou-se então da praça.
-Certo, meu bom senhor- disse Li mirando o velho- comece à rodar!
O velho olhou para Li, e então para a câmera, e então para Li de novo. Olhou para os lados, e, sem dizer nada, correu contra a multidão.
Li ficou sem entender o que acontecera, mas logo fez as contas e berrou:
-Ei! Essa câmera é minha! Pega ladrão! Pega ladrão!
Li correu então na direção do velho.
Hunf, Puff... não devia ter deixado de treinar... pensou Li, transpirando. Não era bem uma pessoa atlética, mas seguir um sexagenário não devia ser problema.
De repente, estava no meio da multidão e perdera o velho de vista. Seu tailleur, cabelo brilhoso e maquiagem causavam estranheza em meio à massa de pessoas acinzentadas e vestidas de trapos que protestavam na Praça.
-Ah, por Buddha. E agora?- disse ela em voz alta, entrando em desespero.
De repente, em meio à multidão percebeu algo peculiar. Em pé em cima de alguns caixotes, estavam monges, todos jovens e vestidos de túnicas douradas. 

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