quinta-feira, 16 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 2


Capítulo 2


Os tiros me fizeram acordar de sobressalto. Olhei para o meu despertador, caído no chão, virado para o teto: 4 da manhã. Os tiros não pararam; ao invés disso, se intensificaram, e o espaço de tempo entre as rajadas diminuiu ao mesmo tempo em que seu barulho aumentava. A companhia corria ao meu redor em um agito frenético.
Era mais uma daquelas noites.
Agarrei o mais rápido que pude minhas calças, que estavam guardadas e dobradas debaixo da cama, e, tentando me equilibrar sobre uma única perna, amarrei minha jaqueta camuflada.
Quase toda a companhia já tinha deixado o dormitório, e eu agora podia ouvir a alternância dos tiros dos rifles M-16 com... pareciam ser Kalashnikovs, mas posso estar enganado. Precisava acelerar.

*****


Em cerca de 30 segundos estava pronto. Era rápido até para mim.
A porta do dormitório dava diretamente para o pátio, que dava diretamente para o grande portão de entrada. Não era necessário um binóculo para perceber que havia uma poderosa força invasora tentando realizar um ataque frontal.
Conseguia distinguir talvez uma centena de soldados na escuridão correndo em nossa direção, sem qualquer tipo de proteção- ou estratégia. Esses comunistas nunca aprendem mesmo.
Fiz um sinal para três homens que estava correndo à esmo procurando uma posição. Acreditava conhecer um deles; era franzino, seu rosto era ossudo e tinha sobrancelhas grossas, o que o tornava bastante semelhante ao Major Sullivan. Mas não, era mais provável que fossem voluntários patriotas com apenas dois neurônios de algum cafundó esquecido no Arkansas ou na Geórgia. Lá eles eram o orgulho da família; aqui, eram bucha de canhão.
Com balas voando por toda parte, nos reunimos atrás de um jipe. Ordenei, com meu bom humor característico e que cultivava desde minha chegada ao Brasil para manter a moral em alta, que dessem cobertura à mim e à eles mesmos, não como o resto dos idiotas que ficavam petrificados na frente dos vermelhos, como que esperando levar um tiro. Deveriam preservar a sua pele atrás do jipe ao mesmo tempo em que matavam o maior número de cucarachas possíveis, o que me daria tempo suficiente para dar partida no jipe, que por sua vez nos daria poder de fogo suficiente para ganhar essa batalha.
No começo tudo estava dando certo, sem levar em conta, é claro, todas as balas que voavam por cima de mim. Era possível ouvir distintamente as cucarachas caindo uma após a outra no chão, e o barulho das Kalashnikovs foi diminuindo. Mas então um som começou á dominar todos os outros: o ronco de um motor. E não vinha do jipe.
Levantei ligeiramente a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas uma luz cegou meus olhos. Nesse exato momento, ouvi algumas vozes gritando atrás de minha nuca, e algo me pegando pelo pescoço.
O ronco cresceu e se tornou um estrondo. Tudo que se seguiu foi muito rápido.
Subitamente eu fui projetado para trás, não só pelo que estava me agarrando mas por um impacto que eu não sabia dizer de onde tinha vindo. Quando dei por mim estava de costas no chão. Tinha levado um baque e minhas costelas doíam como se eu tivesse sido atropelado. O que eu precisei entender nos segundos seguintes é que isso era precisamente o que tinha acontecido.
A dor excruciante ainda era motivo de risada perto de minha juventude jocosa, e por ISS me levantei pouco depois sem nenhum esforço. Demorou um pouco mais, porém, para recobrar a visão, ainda sob efeito do baque e misturando uma brancura possivelmente ligada à falta de sangue circulando por poucos segundos na minha cabeça, com vários pontinhos coloridos e brilhantes, possivelmente ligados à Deus-sabe-o-que.
Mas logo, quando mais um dos recrutas me balançou como um boneco de pano e me fez o sinal de me deitar no chão, eu recobrei meus sentidos e pude ver o que acontecera. Era uma moto. Uma moto, sabe-se lá como, havia conseguido impulso suficiente para se lançar no ar e aterrissara sobre o jipe no exato momento em que eu tentava acioná-lo. O Sullivan de mentirinha me salvara, e agora... agora estava preso sob a moto? Puta merda.

*****

É, o recruta estava sob a moto. Sem pensar duas vezes, me joguei sobre a moto e tentei levantá-la. Meu esforço, porém, não surtiu nenhum efeito. Olhando para trás, chamei o outro recruta, que parecia ter deixado crescer alguns cachos ruivos sob o capacete.
Antes que ele pudesse chegar, porém, senti algo sob a moto. Não era uma coisa viva.
           
*****

Mais um tiro, mas desta vez, ele vinha de perto. Olhei para trás, e pude ver que meu instinto não me falhara desta vez. O recruta ruivo foi ao chão com a perna sangrando.
A reação quase-automática foi olhar para baixo.
Era de fato uma segunda coisa viva com Sullivan. Um cucaracha soltando um rio de sangue pela sobrancelha, obviamente agonizante. Porém, o que tinha no braço era mais importante; um revólver calibre 38 com o qual acabara de ferir, possivelmente de maneira fatal, o recruta ruivo.
Vi que ele estava tentando brandir o revólver em minha direção. O ruivo era provavelmente apenas o aperitivo, e depois da prática ele iria tentar o jogo de verdade.
Tentei não lhe dar essa chance, sem ser injusto. Levantei meu joelho o mais alto que pude e pisei com força e com minha bota em seu antebraço. Pude ouvir o barulho sonoro de ossos rachando. No ponto. O infeliz, que parecia ter seus 30 e poucos anos, ficou choramingando. O próximo passo foi dar-lhe uma coronhada com o M-16, à nível do olho.
Estava me sentindo vivo e cheio de energia, e a depressão que acomete quem vê a morte de perto ainda não se abatera sobre mim. Ao contrário, estava leve e eufórico. Dei três tiros no ar, só por dar, soltando um uivo que comemorava o meu poder guerreiro.
Três homens logo apareceram e eu tive que escapar de minha ilusão. Nos juntamos e levantamos a moto, recuperando os cadáveres do cucaracha e do Sullivan.
Subi então na canhoneira da moto, enquanto um dos outros homens dirigia. Olhando de perto, pude ver que era George Halliwell, capaz com esse tipo e equipamento pesado, o que significava que estava em boas mãos. Com a confianças nas alturas e sentindo em minhas mãos uma máquina de matar possante, comecei á atirar.
Atravessamos o portão principal, com o jipe atropelando sem dificuldades fileira após fileira de comunas. Enquanto isso, eu atirava. E atrava. E atirava mais. Com cada tiro a metralhadora tremia e esquentava, e um cucaracha ia ao chão. Ou quase isso, afinal eu tenho certeza que gastei muito mais balas aquela noite do que matei cucarachas. Mas isso não importava, afinal eram as balas gastas e o chute que a máquina dava que forneciam a verdadeira emoção.
Tenho certeza que vi pelo menos alguns vermelhos não com armas de verdade-e por isso eu entendo até as malditas Kalashnikovs- e sim com utensílios de cozinha, facões, ancinhos, enxadas pontiagudas e sacos que acreditava serem frondas. Ocasionalmente, via um cucaracha com uma arma de fogo que possuía um brilho especial ao luar em sua ponta- era uma baioneta artesanal, uma faca de caça acoplada à uma espingarda.
O jipe semeou o caos entre os comunas, cujo ataque frontal começou à derreter e se transformar em uma retirada desajeitada, uma fuga para todos as direções que não conduzissem à base. Eu não estava mais atirando em um exército, e sim em uma multidão.
A fuga tornou tudo mais fácil, pois os comunas não estavam mais atirando, apenas correndo para os cantos de um círculo em cujo centro eu estava. Pude atirar panoramicamente enquanto o resto da força invasora se escondia na mata densa de palmeiras.

*****


O jipe deu meia-volta e eu e Halliwell descemos, recebendo uma acolhida de heróis. Quase toda a nossa base estava n pátio e comemorava a vitória atirando para cima. Havia alguns feridos, mas nada muito sério-e de fato, mesmo que houvessem centenas de feridos, nossa base contava com um centro médico de qualidade.
Ou ao menos, era isso que eu achava, até ouvir o estrondo.
Todos na base se viraram ao mesmo tempo para um único ponto, seus rostos iluminados pela luz alaranjada do fogo.
Era o hospital da base. Suas janelas quebradas cuspiam labaredas que elas próprias pareciam engolir o ar à sua volta, formando uma parede de chamas e de fumaça. Podíamos ver, forçando um pouco os olhos, os muitos remédios e frascos lá dentro, submetidas à fúria do fogo, rachando e escurecendo com o calor.
Algum cucaracha devia ter entrado na base com um coquetel Molotov ou outro explosivo enquanto enfrentávamos o ataque no portão. Engenhoso. Mais engenhoso do que poderia ter imaginado, vindo dos cucarachas.
Mas não adiantava fingir que parte da culpa não era minha. Havia subestimado os comunas, mas isso não iria acontecer de novo.
Sem um hospital para curar os soldados, essa vitória não valia de nada. Já era dificilmente uma vitória, já que nosso objetivo naquela base era recuar- sim, recuar. Para cada homem que perdíamos, eles perdiam cinqüenta, mas isso não impedia queseus ataques prosseguissem com um fanatismo suicida. Quanto mais atirávamos, mais bombas jogávamos, menos efeito parecia ter, e mais fortes eles ficavam. A missão na Amazônia havia sido um desastre- a tentativa de abrir um novo front na maior floresta tropical da Terra esbarrou em todos os problemas possíveis: falta de suprimentos e preparação, e uma hostilidade de todas as forças possíveis, fossem elas animais, vegetais, bacterianas ou humanas. Todas estavam unidas com a preocupação de nos matar. Eu havia chegado tarde no front Amazônico, mas o que vi me deu medo. Uma tropa reduzida à procurar por comida em árvores ou roubar de habitantes locais, dividindo fardas e roupas de baixo, sem se barbear há semanas. Meus subordinados riam de mim quando eu tentava impor a disciplina, e meus superiores me aconselhavam à desistir de fazê-lo.        
Passávamos a maior parte de nosso tempo atirando em inimigos invisíveis. Atirávamos quando havia inimigos, quando achávamos que poderiam haver inimigos escondidos, e às vezes, atirávamos por atirar. Nem sabíamos porque. Raramente víamos qualquer comunista na floresta; atirávamos porque, acredito, mantinha a moral em alta, e nos dava algo para fazer nas longas viagens de barco que fazíamos.
A operação fracassara totalmente, e, após um único mês na Amazônia, recebi ordens de retirada. E não seria uma retirada pequena; toda a força do Exército dos Estados Unidos  iria abandonar a Amazônia, e seria realocado para vários lugares no Brasil. Assim esperava-se que o colapso de nossa moral combatente na Amazônia seria compensado pela chegada de tropas “frescas” nas outras zonas de ocupação, e que a causa comunista seria enfraquecida por ter que ocupar nossas velhas bases na Amazônia.
Balela. Após uma única noite em uma base no Estado do Maranhão, estávamos sendo atacados por uma centena de cucarachas que destruíram nosso hospital. Essa retirada tinha sido fatal para nossas forças- uma fatalidade cara e sangrenta. Enquanto isso, nosso inimigo ficava mais forte. ‘Zil, como chamávamos, ainda ia engolir muitos garotos.

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