Capítulo
2
Os
tiros me fizeram acordar de sobressalto. Olhei para o meu despertador, caído no
chão, virado para o teto: 4 da manhã. Os tiros não pararam; ao invés disso, se
intensificaram, e o espaço de tempo entre as rajadas diminuiu ao mesmo tempo em
que seu barulho aumentava. A companhia corria ao meu redor em um agito
frenético.
Era
mais uma daquelas noites.
Agarrei
o mais rápido que pude minhas calças, que estavam guardadas e dobradas debaixo
da cama, e, tentando me equilibrar sobre uma única perna, amarrei minha jaqueta
camuflada.
Quase
toda a companhia já tinha deixado o dormitório, e eu agora podia ouvir a
alternância dos tiros dos rifles M-16 com... pareciam ser Kalashnikovs, mas
posso estar enganado. Precisava acelerar.
*****
Em
cerca de 30 segundos estava pronto. Era rápido até para mim.
A porta
do dormitório dava diretamente para o pátio, que dava diretamente para o grande
portão de entrada. Não era necessário um binóculo para perceber que havia uma
poderosa força invasora tentando realizar um ataque frontal.
Conseguia distinguir
talvez uma centena de soldados na escuridão correndo em nossa direção, sem
qualquer tipo de proteção- ou estratégia. Esses comunistas nunca aprendem mesmo.
Fiz um
sinal para três homens que estava correndo à esmo procurando uma posição.
Acreditava conhecer um deles; era franzino, seu rosto era ossudo e tinha
sobrancelhas grossas, o que o tornava bastante semelhante ao Major Sullivan.
Mas não, era mais provável que fossem voluntários patriotas com apenas dois
neurônios de algum cafundó esquecido no Arkansas ou na Geórgia. Lá eles eram o
orgulho da família; aqui, eram bucha de canhão.
Com
balas voando por toda parte, nos reunimos atrás de um jipe. Ordenei, com meu
bom humor característico e que cultivava desde minha chegada ao Brasil para
manter a moral em alta, que dessem cobertura à mim e à eles mesmos, não como o
resto dos idiotas que ficavam petrificados na frente dos vermelhos, como que
esperando levar um tiro. Deveriam preservar a sua pele atrás do jipe ao mesmo
tempo em que matavam o maior número de cucarachas possíveis, o que me daria
tempo suficiente para dar partida no jipe, que por sua vez nos daria poder de
fogo suficiente para ganhar essa batalha.
No
começo tudo estava dando certo, sem levar em conta, é claro, todas as balas que
voavam por cima de mim. Era possível ouvir distintamente as cucarachas caindo
uma após a outra no chão, e o barulho das Kalashnikovs foi diminuindo. Mas
então um som começou á dominar todos os outros: o ronco de um motor. E não
vinha do jipe.
Levantei
ligeiramente a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas uma luz cegou meus
olhos. Nesse exato momento, ouvi algumas vozes gritando atrás de minha nuca, e
algo me pegando pelo pescoço.
O ronco
cresceu e se tornou um estrondo. Tudo que se seguiu foi muito rápido.
Subitamente
eu fui projetado para trás, não só pelo que estava me agarrando mas por um
impacto que eu não sabia dizer de onde tinha vindo. Quando dei por mim estava
de costas no chão. Tinha levado um baque e minhas costelas doíam como se eu
tivesse sido atropelado. O que eu precisei entender nos segundos seguintes é
que isso era precisamente o que tinha acontecido.
A dor
excruciante ainda era motivo de risada perto de minha juventude jocosa, e por
ISS me levantei pouco depois sem nenhum esforço. Demorou um pouco mais, porém,
para recobrar a visão, ainda sob efeito do baque e misturando uma brancura
possivelmente ligada à falta de sangue circulando por poucos segundos na minha
cabeça, com vários pontinhos coloridos e brilhantes, possivelmente ligados à
Deus-sabe-o-que.
Mas
logo, quando mais um dos recrutas me balançou como um boneco de pano e me fez o
sinal de me deitar no chão, eu recobrei meus sentidos e pude ver o que
acontecera. Era uma moto. Uma moto, sabe-se lá como, havia conseguido impulso
suficiente para se lançar no ar e aterrissara sobre o jipe no exato momento em
que eu tentava acioná-lo. O Sullivan de mentirinha me salvara, e agora... agora
estava preso sob a moto? Puta merda.
*****
É, o
recruta estava sob a moto. Sem pensar duas vezes, me joguei sobre a moto e
tentei levantá-la. Meu esforço, porém, não surtiu nenhum efeito. Olhando para
trás, chamei o outro recruta, que parecia ter deixado crescer alguns cachos
ruivos sob o capacete.
Antes
que ele pudesse chegar, porém, senti algo sob a moto. Não era uma coisa viva.
*****
Mais um
tiro, mas desta vez, ele vinha de perto. Olhei para trás, e pude ver que meu
instinto não me falhara desta vez. O recruta ruivo foi ao chão com a perna
sangrando.
A
reação quase-automática foi olhar para baixo.
Era de
fato uma segunda coisa viva com Sullivan. Um cucaracha soltando um rio de
sangue pela sobrancelha, obviamente agonizante. Porém, o que tinha no braço era
mais importante; um revólver calibre 38 com o qual acabara de ferir,
possivelmente de maneira fatal, o recruta ruivo.
Vi que
ele estava tentando brandir o revólver em minha direção. O ruivo era
provavelmente apenas o aperitivo, e depois da prática ele iria tentar o jogo de
verdade.
Tentei
não lhe dar essa chance, sem ser injusto. Levantei meu joelho o mais alto que
pude e pisei com força e com minha bota em seu antebraço. Pude ouvir o barulho
sonoro de ossos rachando. No ponto. O infeliz, que parecia ter seus 30 e poucos
anos, ficou choramingando. O próximo passo foi dar-lhe uma coronhada com o
M-16, à nível do olho.
Estava
me sentindo vivo e cheio de energia, e a depressão que acomete quem vê a morte
de perto ainda não se abatera sobre mim. Ao contrário, estava leve e eufórico.
Dei três tiros no ar, só por dar, soltando um uivo que comemorava o meu poder
guerreiro.
Três
homens logo apareceram e eu tive que escapar de minha ilusão. Nos juntamos e
levantamos a moto, recuperando os cadáveres do cucaracha e do Sullivan.
Subi
então na canhoneira da moto, enquanto um dos outros homens dirigia. Olhando de
perto, pude ver que era George Halliwell, capaz com esse tipo e equipamento
pesado, o que significava que estava em boas mãos. Com a confianças nas alturas
e sentindo em minhas mãos uma máquina de matar possante, comecei á atirar.
Atravessamos
o portão principal, com o jipe atropelando sem dificuldades fileira após
fileira de comunas. Enquanto isso, eu atirava. E atrava. E atirava mais. Com
cada tiro a metralhadora tremia e esquentava, e um cucaracha ia ao chão. Ou
quase isso, afinal eu tenho certeza que gastei muito mais balas aquela noite do
que matei cucarachas. Mas isso não importava, afinal eram as balas gastas e o
chute que a máquina dava que forneciam a verdadeira emoção.
Tenho
certeza que vi pelo menos alguns vermelhos não com armas de verdade-e por isso
eu entendo até as malditas Kalashnikovs- e sim com utensílios de cozinha,
facões, ancinhos, enxadas pontiagudas e sacos que acreditava serem frondas.
Ocasionalmente, via um cucaracha com uma arma de fogo que possuía um brilho
especial ao luar em sua ponta- era uma baioneta artesanal, uma faca de caça
acoplada à uma espingarda.
O jipe
semeou o caos entre os comunas, cujo ataque frontal começou à derreter e se
transformar em uma retirada desajeitada, uma fuga para todos as direções que
não conduzissem à base. Eu não estava mais atirando em um exército, e sim em
uma multidão.
A fuga
tornou tudo mais fácil, pois os comunas não estavam mais atirando, apenas
correndo para os cantos de um círculo em cujo centro eu estava. Pude atirar
panoramicamente enquanto o resto da força invasora se escondia na mata densa de
palmeiras.
*****
O jipe
deu meia-volta e eu e Halliwell descemos, recebendo uma acolhida de heróis.
Quase toda a nossa base estava n pátio e comemorava a vitória atirando para
cima. Havia alguns feridos, mas nada muito sério-e de fato, mesmo que houvessem
centenas de feridos, nossa base contava com um centro médico de qualidade.
Ou ao
menos, era isso que eu achava, até ouvir o estrondo.
Todos
na base se viraram ao mesmo tempo para um único ponto, seus rostos iluminados
pela luz alaranjada do fogo.
Era o
hospital da base. Suas janelas quebradas cuspiam labaredas que elas próprias
pareciam engolir o ar à sua volta, formando uma parede de chamas e de fumaça.
Podíamos ver, forçando um pouco os olhos, os muitos remédios e frascos lá
dentro, submetidas à fúria do fogo, rachando e escurecendo com o calor.
Algum
cucaracha devia ter entrado na base com um coquetel Molotov ou outro explosivo
enquanto enfrentávamos o ataque no portão. Engenhoso. Mais engenhoso do que
poderia ter imaginado, vindo dos cucarachas.
Mas não
adiantava fingir que parte da culpa não era minha. Havia subestimado os
comunas, mas isso não iria acontecer de novo.
Sem um
hospital para curar os soldados, essa vitória não valia de nada. Já era
dificilmente uma vitória, já que nosso objetivo naquela base era recuar- sim,
recuar. Para cada homem que perdíamos, eles perdiam cinqüenta, mas isso não
impedia queseus ataques prosseguissem com um fanatismo suicida. Quanto mais
atirávamos, mais bombas jogávamos, menos efeito parecia ter, e mais fortes eles
ficavam. A missão na Amazônia havia sido um desastre- a tentativa de abrir um
novo front na maior floresta tropical da Terra esbarrou em todos os problemas
possíveis: falta de suprimentos e preparação, e uma hostilidade de todas as
forças possíveis, fossem elas animais, vegetais, bacterianas ou humanas. Todas
estavam unidas com a preocupação de nos matar. Eu havia chegado tarde no front
Amazônico, mas o que vi me deu medo. Uma tropa reduzida à procurar por comida
em árvores ou roubar de habitantes locais, dividindo fardas e roupas de baixo,
sem se barbear há semanas. Meus subordinados riam de mim quando eu tentava
impor a disciplina, e meus superiores me aconselhavam à desistir de
fazê-lo.
Passávamos
a maior parte de nosso tempo atirando em inimigos invisíveis. Atirávamos quando
havia inimigos, quando achávamos que poderiam haver inimigos escondidos, e às
vezes, atirávamos por atirar. Nem sabíamos porque. Raramente víamos qualquer
comunista na floresta; atirávamos porque, acredito, mantinha a moral em alta, e
nos dava algo para fazer nas longas viagens de barco que fazíamos.
A
operação fracassara totalmente, e, após um único mês na Amazônia, recebi ordens
de retirada. E não seria uma retirada pequena; toda a força do Exército dos
Estados Unidos iria abandonar a
Amazônia, e seria realocado para vários lugares no Brasil. Assim esperava-se
que o colapso de nossa moral combatente na Amazônia seria compensado pela chegada
de tropas “frescas” nas outras zonas de ocupação, e que a causa comunista seria
enfraquecida por ter que ocupar nossas velhas bases na Amazônia.
Balela.
Após uma única noite em uma base no Estado do Maranhão, estávamos sendo
atacados por uma centena de cucarachas que destruíram nosso hospital. Essa
retirada tinha sido fatal para nossas forças- uma fatalidade cara e sangrenta.
Enquanto isso, nosso inimigo ficava mais forte. ‘Zil, como chamávamos, ainda ia
engolir muitos garotos.
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