sexta-feira, 17 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 3


Capítulo 25

Freude!
A Nona Sinfonia de Beethoven se iniciava mais uma vez, alardeada pela rádio do metrô cheio. As palavras em alemão chamaram brevemente a atenção daqueles ali presentes, mas a banalidade de ouvir uma sinfonia do mestre alemão no transporte público, principalmente a mais batida, logo fez com que tudo voltasse à apatia costumeira.
Camilla Buri está entre essas pessoas, sentada em um dos assentos acolchoados do trem, protegida do freqüentemente obsceno calor do verão de Salvador pelo ar-condicionado, instalado dentro dos trens e em todos os cantos das diversas estações de metrô.
-Próxima parada, Estação Aurora. Desembarque pelo lado direito. Atenção para o vão entre trem e a plataforma.- uma voz metálica anunciou, e, como muitos, Camilla levantou a cabeça de sua leitura: o jornal cotidiano O Trabalhador, distribuído em português e espanhol, incluindo as melhores republicações de notícias do Pravda. Data: 1° de Dezembro de 1997.
Como de costume, havia pouco de interessante no jornal. A maioria das notícias falava de assuntos internacionais, e sequer eram notícias internacionais chamativas. Nova rodada de negociações entre o Presidente dos Estados Unidos e o Secretário-Geral do Partido Comunista da República Californiana, recessão piora na China, Embaixador Soviético confirma presença na Festa da Música Baiana, cachorro resgata garotinha de poço. Chato.
Camilla enrolou o jornal e guardou-o na bolsa, caso quisesse ler depois. Sua mão encostou em uma coisa dura. Enfiando a mão na bolsa, pôde sentir sua superfície lisa, e com um gesto, tirou de dentro dela um livro.
O Mundo é um enigma, de Umberto Eco. Era um autor italiano que fizera algum sucesso nos anos 80 ao defender o socialismo na Itália, então o último grande país da Europa Ocidental que não tinha assinado algum tipo de acordo com a União Soviética. Lembrava vagamente de ter lido um ou outro poema de sua autoria naquela época- a mídia naquela época ainda imprimia diligentemente qualquer coisa relacionada ao socialismo e que soasse elogioso.
Mas o que realmente a interessava no livro era o fato de ser uma autobiografia, contendo os detalhes mais suculentos da vida do autor: Isso incluía, sem dúvida, o motivo de sua nebulosa e controversa renúncia à Presidência do Conselho Europeu pela Cooperação, Desenvolvimento e Socialismo. O motivo oficial é de que renunciara por humildade: era “apenas um autor” e não tinha idéia de como administrar uma organização tão importante.
O livro ainda não fora publicado na Itália, e, na verdade, em lugar nenhum. Camilla iria terminar de ler o livro e decidir se seu conteúdo era, digamos, “seguro” o suficiente para ser publicado.
Acontece que Camilla é uma editora para a Saber do Povo, responsável pela edição de títulos de todos os tipos na região Nordeste da República Popular do Brasil. A censura fora oficialmente abolida em 1981, quando se julgou que todos os inimigos interno e traidores da nação haviam sido erradicados. É claro, muitos diretores de editoras continuavam sendo membros do Partido, e, para ser promovido dentro do Partido, era melhor evitar irritar muita gente.
As portas do trem se abriram. Estação Aurora: entraram de uma vez só talvez uma dúzia de crianças vestidas de calças curtas, camisa branca e um lenço vermelho ao redor do pescoço. Pequenos Curupiras, os mais jovens membros do Partido. Camilla fora uma deles, mas não consegue se lembrar de quase nada de seu período com os Curupiras. Visões turvas de tendas sendo porcamente montadas, sol escaldante, uma colher com pirão indo na boca de uma velhinha, não, senhora, fecha a boca que é mais fácil, sol escaldante, aprender a atirar com um rifle, infelizmente falso, picada de mosquito.
Os Curupiras começaram a cantar. Mais uma de suas músicas falando de caminhadas e de aventura, o que seria menos bizarro se eles não estivessem todos parados. E menos chato, se eles não estivessem plantados do lado de Camilla.
Beethoven. Curupiras. Um duelo até a morte para ver quem conseguia superar o outro.
Retornou ao seu livro. Tipicamente, lia três manuscritos por dia, mas para esse estava dedicando mais atenção. Começara pelos últimos capítulos, para ver se encontrava alguma menção do incidente. Até agora, nada.
Absorta que estava no livro, se esqueceu de sua estação. Não ajudou o fato que os Curupiras continuaram cantando por cima da voz metálica da anunciante.
Guardou o manuscrito na bolsa e se levantou, dizendo Com licença e abrindo caminho entre os partidários mirins e uma ou outra pessoa lendo jornal. Por sorte, havia apenas mais ou menos um quilômetro de distância entre a estação e a Editora onde trabalhava, embora a perspectiva de cobrir essa distância não animasse Camilla ás sete da manhã.
A Estação, uma caverna de concreto pintada de branco, era decorada por painéis colossais, pastiches de Portinari, misturados á estética do Realismo Socialista. Caboclos de peito largo, empunhando enxadas e rifles, seguindo uma figura que carrega uma enorme bandeira vermelha. Um emaranhado de escadas rolantes transportava pessoas para dentro da caverna e para o mundo lá em cima. Beethoven continuava sua sinfonia.

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