Capítulo
25
Freude!
A Nona
Sinfonia de Beethoven se iniciava mais uma vez, alardeada pela rádio do metrô
cheio. As palavras em alemão chamaram brevemente a atenção daqueles ali
presentes, mas a banalidade de ouvir uma sinfonia do mestre alemão no
transporte público, principalmente a mais batida, logo fez com que tudo
voltasse à apatia costumeira.
Camilla
Buri está entre essas pessoas, sentada em um dos assentos acolchoados do trem,
protegida do freqüentemente obsceno calor do verão de Salvador pelo
ar-condicionado, instalado dentro dos trens e em todos os cantos das diversas
estações de metrô.
-Próxima parada, Estação Aurora. Desembarque pelo lado
direito. Atenção para o vão entre trem e a plataforma.- uma voz metálica anunciou, e, como muitos, Camilla
levantou a cabeça de sua leitura: o jornal cotidiano O Trabalhador, distribuído em português e espanhol, incluindo as
melhores republicações de notícias do Pravda.
Data: 1° de Dezembro de 1997.
Como de
costume, havia pouco de interessante no jornal. A maioria das notícias falava
de assuntos internacionais, e sequer eram notícias internacionais chamativas.
Nova rodada de negociações entre o Presidente dos Estados Unidos e o
Secretário-Geral do Partido Comunista da República Californiana, recessão piora
na China, Embaixador Soviético confirma presença na Festa da Música Baiana,
cachorro resgata garotinha de poço. Chato.
Camilla
enrolou o jornal e guardou-o na bolsa, caso quisesse ler depois. Sua mão
encostou em uma coisa dura. Enfiando a mão na bolsa, pôde sentir sua superfície
lisa, e com um gesto, tirou de dentro dela um livro.
O Mundo é um enigma, de Umberto Eco. Era um autor italiano que fizera algum
sucesso nos anos 80 ao defender o socialismo na Itália, então o último grande
país da Europa Ocidental que não tinha assinado algum tipo de acordo com a
União Soviética. Lembrava vagamente de ter lido um ou outro poema de sua
autoria naquela época- a mídia naquela época ainda imprimia diligentemente
qualquer coisa relacionada ao socialismo e que soasse elogioso.
Mas o
que realmente a interessava no livro era o fato de ser uma autobiografia,
contendo os detalhes mais suculentos da vida do autor: Isso incluía, sem
dúvida, o motivo de sua nebulosa e controversa renúncia à Presidência do
Conselho Europeu pela Cooperação, Desenvolvimento e Socialismo. O motivo
oficial é de que renunciara por humildade: era “apenas um autor” e não tinha
idéia de como administrar uma organização tão importante.
O livro
ainda não fora publicado na Itália, e, na verdade, em lugar nenhum. Camilla
iria terminar de ler o livro e decidir se seu conteúdo era, digamos, “seguro” o
suficiente para ser publicado.
Acontece
que Camilla é uma editora para a Saber do Povo, responsável pela edição de
títulos de todos os tipos na região Nordeste da República Popular do Brasil. A
censura fora oficialmente abolida em 1981, quando se julgou que todos os
inimigos interno e traidores da nação haviam sido erradicados. É claro, muitos
diretores de editoras continuavam sendo membros do Partido, e, para ser promovido
dentro do Partido, era melhor evitar irritar muita gente.
As
portas do trem se abriram. Estação Aurora: entraram de uma vez só talvez uma
dúzia de crianças vestidas de calças curtas, camisa branca e um lenço vermelho
ao redor do pescoço. Pequenos Curupiras, os mais jovens membros do Partido.
Camilla fora uma deles, mas não consegue se lembrar de quase nada de seu
período com os Curupiras. Visões turvas de tendas sendo porcamente montadas,
sol escaldante, uma colher com pirão indo na boca de uma velhinha, não, senhora, fecha a boca que é mais fácil,
sol escaldante, aprender a atirar com um rifle, infelizmente falso, picada de
mosquito.
Os
Curupiras começaram a cantar. Mais uma de suas músicas falando de caminhadas e
de aventura, o que seria menos bizarro se eles não estivessem todos parados. E
menos chato, se eles não estivessem plantados do lado de Camilla.
Beethoven.
Curupiras. Um duelo até a morte para ver quem conseguia superar o outro.
Retornou
ao seu livro. Tipicamente, lia três manuscritos por dia, mas para esse estava
dedicando mais atenção. Começara pelos últimos capítulos, para ver se
encontrava alguma menção do incidente. Até agora, nada.
Absorta
que estava no livro, se esqueceu de sua estação. Não ajudou o fato que os
Curupiras continuaram cantando por cima da voz metálica da anunciante.
Guardou
o manuscrito na bolsa e se levantou, dizendo Com licença e abrindo caminho entre os partidários mirins e uma ou
outra pessoa lendo jornal. Por sorte, havia apenas mais ou menos um quilômetro
de distância entre a estação e a Editora onde trabalhava, embora a perspectiva
de cobrir essa distância não animasse Camilla ás sete da manhã.
A
Estação, uma caverna de concreto pintada de branco, era decorada por painéis
colossais, pastiches de Portinari, misturados á estética do Realismo
Socialista. Caboclos de peito largo, empunhando enxadas e rifles, seguindo uma figura que carrega uma enorme bandeira vermelha. Um emaranhado de escadas rolantes transportava pessoas para dentro
da caverna e para o mundo lá em cima. Beethoven continuava sua sinfonia.
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