segunda-feira, 20 de maio de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 5


Capítulo 4


Apenas uma coisa poderia me fazer sentir melhor naquele momento: uma brisa suave, batendo no meu rosto e me fazendo esquecer do calor que ficava concentrado no meu capacete.
É claro, o calor equatorial de Fortaleza era tão poderoso que mantinha o vento como refém, impedindo o de circular. O ar lá era úmido, grudento. Ensebava a pele.
Eu passara um mês na Amazônia, durante o verão, e ainda por cima um verão especialmente quente; e ainda parecia impossível se acostumar com esse clima, sem dúvida mais ameno que o de lá. O calor massacrava nossas nucas, inundava nossos uniformes de suor, e, com os capacetes forrados que usávamos, acredito que também não fossem uma influência muito positiva para nossa saúde mental. Chegando nos arredores da cidade à bordo de um jipe, pensei ter visto, na beira da estrada, uma fazenda grande e plana, porém miserável e amarelada, seca e morta. Mas não era isso a verdadeira singularidade dessa fazenda, não senhor. Interessante mesmo é o que havia dentro de seus muros: Centenas de homens nus e de quatro, pastando na grama esparsa.
Talvez eu esteja mesmo precisando de ajuda.

*****


Havíamos chegado à um porto seguro, mas, fora dele, a guerra continuava. Pelo menos era o que me dizia o Coronel Sutherland, com suas sobrancelhas grossas de taturana transparecendo por debaixo dos óculos escuros de aviador. Como ele falava! Quando me passava a palavra, era sempre para fazer um pergunta. Era um tipo bem patriótico, provavelmente havia lutado na Segunda Guerra Mundial. Perguntou-me muito sobre a minha família, e se eles estavam orgulhosos do que estava fazendo pelo meu país. Respondi apenas que meu irmão caíra de cabeça no trabalho e minha mãe morrera, então a única pessoa que poderia se interessar no meu trabalho era meu pai. Isso também era uma mentira. Meu pai caíra em desgraça desde o assassinato de minha mãe e compensava a sensação de impotência com bebida. Também preferia Johnny à mim, já que seu emprego envolvia capturar malfeitores de todos os tipos nas ruas de nossa cidade, Detroit. Era sua cruzada pessoal contra os culpados do assassinato de mamãe, jamais pegos, e que ele havia projetado sobre Johnny. Um homem muito charmoso.
Menti para o Coronel apenas para que ele acreditasse que não estava zombando dele. Duas pessoas desinteressadas pelo futuro do país na mesma família ainda estava valendo, mas três? Quem eu achava que era afinal?
Era só eu terminar uma frase que Sutherland desatinava à falar. E continuou falando e falando sobre a importância de servir a América, e, usando uma metáfora que, eu tenho certeza, ele havia passado um bocado de tempo formulando e por isso havia precisado encher tanta lingüiça, avisou-me que meu pai deveria mesmo ter orgulho de mim, já que ao passo que meu irmão tornava a América segura para os “verdadeiros americanos”, eu estava tornando o mundo seguro para a Humanidade. “Nós somos a polícia do mundo”, ele chegou à dizer. “O comunismo é um crime, e nós estamos trabalhando para solucioná-lo.” Era uma analogia interessante. Mas não mais interessante do que veio depois, isso é certo. Após talvez quarenta minutos exaltando as virtudes de nossa nação, Sutherland finalmente passou para uma conversa mais prática, dizendo que, além de minha evidente bravura na defesa de nosso posto de observação, havia outra coisa que não podia ser negada: o fato de que, apesar de nosso valor, coragem, intrepidez e de estarmos indubitavelmente do lado certo da história, estávamos sendo forçados à recuar em todas as frentes. Nosso exército estava ganhando todas as batalhas, destruindo todos os acampamentos da Frente Nacionalista Brasileira, capturando suas armas pesadas e distribuindo as leves a nossos aliados. E ainda assim, faltava algo. Mesmo após a nossa grande retirada da Amazônia, os ataques prosseguiram, e na verdade, ficaram mais fortes do que nunca: aparentemente, o ataque ao nosso posto avançado havia sido apenas uma diminuta parte de uma ofensiva que havia se iniciado por todo o Brasil interior, com direção ao litoral, este ainda em nossas mãos. O plano original, de nos mandar em uma retirada estratégica para que iniciássemos uma ofensiva com o objetivo de recuperar contato terrestre com Brasília agora não era mais realista. Ao invés disso, assumiríamos uma posição defensiva na costa. À essa altura, acreditava que seria mandado para Natal. Era um dos portos mais importantes da Região Nordeste, e, se caísse nas mãos dos comunas, o Ceará ficaria isolado do resto do território sob nosso controle. Foi por isso que me surpreendi quando ele disse “Salvador”.
Salvador?
-“Sim, Salvador”- ele disse, com uma expressão séria.
Não sabia muito sobre Salvador. Tinha algumas noções básicas, que pegava com meus subordinados. A primeira, que era uma cidade grande, o que se podia deduzir pelo fato que além de Natal, a cidade na qual a maior quantidade de tropas dizia ter desembarcado era Salvador. Outras noções importantes eram a comida apimentada e com uma tendência à dar dores de barriga, e as mulheres fogosas e belas, de pele negra. Por esses relatos imaginava que não seria muito diferente de Nova Orléans.
O capitão Leslie “Bubba” Burns era um grande admirador das mulheres de lá e dizia ter tirado a sorte grande com 4. Ele sempre contava essas histórias com grande detalhe e um jeito fascinante de deixá-las muito mais interessantes do que realmente eram, coisa da qual eu não sou capaz. Grande cara, esse Bubba. Hoje, seu intestino está em algum lugar do Rio Xingu.
Segundo o Coronel, devia ir para lá pois as coisas estavam especialmente complicadas. Grupos estranhos rondavam os arredores da cidade e a Represa Ipitanga I, e três atentados mal-sucedidos haviam ocorrido lá desde Setembro passado. Havia também um tipo de guerra urbana entre nossos aliados cristãos e uma guerrilha comunista ainda não identificada.
Foi aí que Sutherland disse que eu iria por mar, pois por terra seria muito perigoso.
O destino soube escolher o momento certo para maximizar a ironia, pois, nesse momento, nós ouvimos um barulho. Era uma explosão. E depois outra. E mais uma. Era uma série de explosões, ininterrupta, sem data para parar, deixando apenas um breve momento para a hesitação entre cada barulho, antes de demolir essa hesitação com mais uma explosão.
Sem me importar muito mais com o que Sutherland estava dizendo, corri para a porta. Ele parece ter entendido que compreender o que estava acontecendo também era parte de seu trabalho, porque eu ouvi seus passos pesados e cansados atrás de mim.
O ambiente lá fora traía os barulhos que havíamos ouvido. O céu continuava de um azul resplandecente, e o sol, brilhando como nunca, começava uma leve descida para o oeste. As ruas, ainda que esburacadas e mal cuidadas, tinham a aparência bucólica de uma cidade pequena, assim como as casas e lojinhas à nossa volta. Porém, bastava virar a esquina para entender o que havia acontecido.
O escritório de Sutherland ficava à um quarteirão do porto, onde, no dia seguinte, eu embarcaria rumo à Salvador. Ao invés disso, o que se via à um quarteirão do escritório de Sutherland era uma gigantesca fogueira.
O porto era modesto, mas mesmo essa modéstia havia sido arrasada. Alguns poucos guindastes instalados pelo Exército jaziam caídos no mar. O orgulhoso pátio de concreto que se avançava sobre o oceano estava agora repleto de buracos, e seus contêineres eram estruturas retorcidas e chamuscadas, longe dos blocos sérios e rígidos de apenas cinco minutos antes.
Eu tinha que ser rápido para ajudar quem quer que tivesse se machucado-e com certeza, eram muitos- mas uma visão me perturbou. Era uma van, pintada com uma meia-dúzia de cores diferentes e vários sinais que eu vira pela última vez em um livro sobre religiões orientais que eu pegara emprestado na biblioteca municipal. A porta da van estava aberta, e, sentados no chão dela, os pés apoiados no chão, estavam eles. Dois daqueles cabeludos, um homem e uma mulher- ou seriam duas mulheres? Dava para ver um terceiro no fundo. Saía fumaça da van, mas meu instinto e a capacidade de raciocínio simples me avisava que não era um incêndio.
Meu pai tinha um ódio profundo desses jovens, que eu não qualifico de irracional simplesmente porque consigo entendê-lo. Para ele, eram crianças ricas que gostavam de gastar seu tempo fumando, bebendo, cantarolando coisas boiolas sobre amor livre e a paz na terra. Segundo meu pai eram também especialistas em zombar de pessoas decentes, trabalhadoras e proletárias- como a nossa família. Em suma, representavam tudo que tinha de errado com o mundo.
Eu me tratei de afastar aqueles pensamentos e voltar ao trabalho.
Porque tinha me tornado soldado, afinal de contas? Virar policial teria comprado o amor de meu pai, como Johnny havia feito. Talvez ter dois filhos tentando fazer voltar atrás o relógio e trazer de volta a mamãe através da captura ou morte de dezenas de ladrõezinhos comuns, traficantes de drogas e estupradores teria alegrado o meu pai da maneira que um filho fazendo tudo isso não podia. Quem sabe assim, ele teria visto mais na vida do que uma mera sequência de decepções e, com menos mágoas para afogar, teria largado a bebida, o que o faria recuperar o emprego na fábrica. Seríamos afinal, uma família feliz, e tudo que precisava ter feito era virar policial.
Ah, é claro, tem a lei da conscrição, o que faz com que tivesse que entrar no Exército de qualquer maneira. É, porque sonhar com essas besteiras, o que poderia ter ocorrido, as conseqüências de pequenas mudanças no passado e tudo mais? É uma perda de tempo.
Deve ser a droga do sol.

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