segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 14



Capítulo 10


Tinha uma cidade no meio do caminho.
No meio do caminho, tinha uma cidade.
Bum, não tem mais.
Eu estava no ponto de impacto. No epicentro do terremoto. No local onde antes havia uma cidade, onde antes havia um exército, onde antes havia Django. Não hà mais.
Quando a poeira baixou finalmente podíamos ver a escala do estrago que os B-52s haviam provocado naquele recanto de deserto esquecido por Deus e povoado por homens. De fato, nada havia sobrado, apenas as famílias vagando por aí, observando o traçado no chão, que antes separava o mundo frio, ainda que implacavelmente quente, do lar, aconchegante embora exíguo.
Andei com os poucos sobreviventes até onde, podia ver, um helicóptero havia pousado. Um resplandecente veículo de metal em meio à tantas carcaças chamuscadas, ele só poderia ter chegado mais tarde.
Meu andar foi atrapalhado de súbito. Normalmente, isso não seria nada, eu pensaria ser alguma mosca ou um desses insetos miseráveis das terras tropicais, ou só o suor, grudando a roupa na minha pele, mas a vida dura e as batalhas tinham endurecido meu coração, diminuído minha paciência, e fortalecido minha paranóia.
Me virei para trás, e era uma mulher, coberta de poeira, agarrando a minha farda. Wright teve a sábia decisão de dar uma coronhada nela com o rifle, mas o fiz parar. A nossa reputação já havia sido destruída pelas bombas, não precisávamos de mais violências contra civis naqueles dia.
O rosto da mulher não me era estranho. Ela começou à gesticular com os braços e falar algo bem rápido na língua local, e só então pude ver que se tratava da camponesa do burro. Uma criaturinha puxou e amarrotou o seu vestido; era sua filha, feia e ainda por cima coberta de poeira.
Foi aí que Shorty interviu, e as palavras que ele disse provavelmente mudaram a minha vida. Não sei se me recordo muito bem, mas foram algo bem próximo de:
-Precisa de tradução, senhor? Eu posso traduzir português.
Shorty, talvez você se lembre, não só tinha a vantagem de ser o mais alto do grupo e, portanto, de ter um apelido irônico, como também havia sido hippie nos anos que haviam precedido sua conscrição no Exército. Talvez mais importante até do que isso, namorara brevemente- embora por uma quantidade de tempo considerada conservadora por seus colegas- uma garota brasileira que fazia parte do movimento pacifista. Isso não só aumentou sua reputação entre os hippies- pois ele estava namorando uma garota engajada, e ainda por cima, da nação que estávamos pacificando!- como o introduziu na nobre arte do bilingüismo. Eu evitava pedir a sua ajuda porque eu mesmo estava tentando aperfeiçoar o meu português, mas no momento, estava perdido em uma avalanche de Oxentis. Shorty iria servir.
Fiz que sim e ele iniciou sua tradução simultânea, não exatamente simultânea, pois Shorty escutava um trecho curto do que ela tinha à dizer e então traduzia.
-Ela disse, “Desculpa, desculpa”. Parece estar extremamente arrependida de algo. Está... Arrependida. Ela disse que a distração foi combinada com os jovens.
-Os jovens? Como assim?
-Não sei, está falando dos jovens que vieram armados. Sem dúvida, são os comunistas. Espera. Eles chegaram faz um mês. Ameaçaram a cidade, com armas. Muitos homens foram levados. A cidade virou uma cidade de mulheres e crianças. Eles seriam devolvidos quando a cidade conseguisse emboscar os ameri... Nos emboscar. Droga, cara! A merda dessa cidade nos emboscou!
-Volta, volta. O que ela disse sobre os homens da cidade?
Mais monólogo. Mais tradução.
- É isso que ela disse mesmo. Todos os homens da cidade... Foram levados. Era isso, ou a cidade inteira ser massacrada.
-Bom, acho que a escolha deles deu na mesma, então.
-Cala a boca, Wright. Os homens foram levados. Para um esconderijo, lá no... Bom, é uma palavra que você não conhece, senhor, mas significa o interior rude dessas terras. Se diz Sertão. O marido dela era um deles. Ela apenas o queria de volta, e por isso deu o aviso para que o ataque começasse. Ela pede desculpas. Está muito arrependida de nos trair, mas ela não tinha culpa, só queria o marido de volta. Ah, e está dizendo que, se matarmos-a agora, ela morreria feliz.
-Tá certo- disse Sykes, que raramente abria a boca, e quando o fazia, era para falar algum absurdo homicida. - Façamos isso mesmo, se é o que ela quer.
-NÃO! Está maluco?- segurei o rifle de Sykes. Para meu choque e surpresa, ou talvez nem tanto, ele havia apontado o rifle para a menininha. A mulher, compreensivelmente, recuou, apreensiva.
-Pergunte o nome dela- disse.
Shorty perguntou e ela respondeu. Não precisei de tradução. Pepé. Um nome breve, curto, sucinto. Duas sílabas; a boca se abre num estalo, se fecha, e depois repete o movimento em um estalo, em um instante. Conforme descobri depois, “Pepé” era na verdade um apelido para Penélope.
Tudo fazia sentido. Pepé perdera o marido. Nos traiu; em troca, destruímos a cidade dela.
Mas quem exatamente destruiu? E porquê? E porquê levar Karl Django desta para melhor?
Assenti com a cabeça diante dos lamentos de Pepé e continuei andando. Sua história era muito triste, mas todos tínhamos histórias tristes. Eu poderia contar da vez em que eu e meus pais viajamos para as Cataratas do Niágara- se não me engano, foi na mesma viagem em que fomos para o Arizona- e eu tive que ficar no carro, pois estava com gripe, e minha mãe não queria que eu piorasse com o frio e a umidade das quedas- mas isso entediaria vocês.
Continuei andando rumo ao helicóptero, acompanhado do meu próprio pelotão. Não era grande, e na verdade não chegava á ser um pelotão, mas era composto de soldados valorosos, que haviam resistido à onda após onda de comunistas naquela diminuta torre.
A porta do helicóptero se abriu, e um homenzinho desceu, caminhando por alguns instantes em meio aos cadáveres. Reconheci-o rapidamente. Era o Coronel Sutherland, à quem eu encontrara havia alguns dias em Natal.
-Senhor Coronel, Senhor- fiz a posição de sentido para a bunda do homem. Ele se virou e fingiu surpresa ao me ver. Não, não, pensando bem, havia algo de genuíno em sua surpresa.
-D-Descansar, soldado- disse o Coronel, ainda à procura de palavras que pudesse expelir.
-Senhor Coronel, preciso perguntar algo. O que exatamente aconteceu nesse vilarejo?
-Ora, tenente, o senhor não pode ver? Um pequeno desastre. Acidentes desse tipo acontecem. Mandamos vocês por uma estrada que julgávamos ser segura, mas, afinal de contas, não era.- ele disse, por trás de um sorriso amarelo e um farto bigode.
-Senhor, com todo respeito, isso não foi uma simples emboscada. Havia centenas de comunistas nessa pequena aldeia, mais do que vimos em toda a campanha até agora. Conseguimos informações com os habitantes locais, que indicaram que este pequeno exército estava instalado aqui havia um mês. Senhor, isso significa uma coisa e uma coisa apenas: eles sabiam que viríamos.
O rosto do coronel se contorceu em uma careta. Entre as suas bochechas pastosas, sua boca fina emitiu sons.
-Você tenha cuidado com o que diz, moleque. Eu ainda sou seu superior. Essa é uma tragédia, um erro tático, mas, como resultado dela, o Tenente... Django será lembrado como um mártir de nossa causa. Este não é o momento para acusações vãs e discussões internas. Estamos em guerra, e devemos nos unir se quisermos sobreviver, pois estamos no mesmo barco. Agora, entrem no helicóptero, vamos tirar vocês daqui e mandá-los para Salvador. Sem dúvida, serão condecorados por bravura.
Abaixei a cabeça e andei até a porta de correr que se abriu diante de mim. Havia recebido reprimendas antes, mas poucas haviam sido mais frustrantes que esta. Enquanto pisava nos primeiros degraus, o Coronel inclinou-se e sussurrou na minha orelha: “Eu já rebaixei muitos contestadores antes, e rebaixar mais um não vai me custar nada.”
De repente, aquelas palavras ecoaram, e, talvez diante da visão do helicóptero, ou de alguma outra coisa capaz de induzir epifanias, um pensamento me correu pela mente, antes de se espatifar metaforicamente contra um muro vermelho, que na verdade dera um grande botão metafórico, que, metaforicamente, acionava a fala.
-Pera; se isto foi um acidente, então como é que os B-52s sabiam onde atacar?
Sutherland se virou, franzindo a testa e juntando suas grossas sobrancelhas.
-Filho, você...
-Eles teriam que ter sido mandados para este ponto específico da estrada, que nem está nos mapas direito, bem antes do ataque começar. Não tem como ter sido coincidência. Eles estavam sobrevoando a região exatamente quando o ataque começou?
Dei um passo para trás, saindo do helicóptero. Wright me seguiu.
-Senhor Coronel, Senhor, o senhor mandou esses aviões, e principalmente, nos mandou para cá sabendo que haveria uma emboscada.
Pude perceber que à essa altura ele estava suando frio, e logo reagiu.
-É claro que não! Sacrificar soldados... Tenente, isso é desacato! Um caso GRAVE de desacato! Pior... Isso é traição! Homens, prendam esse traidor!
-Senhor Coronel... Eu nunca disse que se tratava de sacrificar a tropa; o senhor mesmo é quem acaba de fazer isso.
-Não! Traidor! Indisciplinado, Indisciplinado, sempre foi! Soldados, prendam-no!
Wright, Davis, Bob, Sykes, Shorty. Nenhum deles mexeu um centímetro.
-PRENDAM-NO!
- O senhor mandou seus homens para uma missão suicida, senhor. Servir de isca para que vocês bombardeassem os comunistas às raias da inexistência.
Sutherland parou com a sua gritaria por alguns segundos enquanto meus homens formavam um grupo compacto ao meu redor, ao mesmo tempo que eu andava em sua direção.
-Vocês... São só soldados! Estão na linha de frente! O dever de vocês é garantir a sobrevivência da América, e só! Algumas vezes, isso exige coisas que não compreendemos! Exige sacrifícios! Manobras distrativas! Bloqueios, bombardeios, matar uma cidade de fome, reduzi-la à poeira, são coisas horríveis, sim, mas essenciais para que se vença uma guerra! Se nós parássemos cada vez que temos que cometer um ato de que possamos nos arrepender depois com base em tolices como ética, nunca teríamos vencido nenhuma guerra! E é por isso que pensar nisso é papel dos mais experientes, daqueles que viram a maior parte do combate e sabem exatamente as ramificações dessas decisões difíceis! É por isso que a guerra se ganha em Washington, e não na selva! Essa é uma guerra lutada por burocratas, homens de terno e guerreiros experientes, e não pelo homem comum! Por aqueles que sabem o que estão fazendo, e acredite em mim, nós sabemos o que estamos fazendo. O que vocês precisam fazer é cumprir as ordens! Vocês podem fazer o que quiserem, reclamar, propor suas próprias estratégias, jogar fora suas medalhas em frente ao Capitólio, mas isso não mudará a conduta da guerra! E isso porquê, sem nós, vocês não entendem nada do combate. Sem nós. vocês não entendem nada do Brasil. Sem nós, vocês não entendem nada de guer...
Mais um tiro, eu diria, pelas minhas contas, o n°11045 do dia. Diferente dos outros, esse penetrou mais fundo e de maneira mais sonora e eu pude ver, ao vivo em cores, seus efeitos em toda a sua sangrenta glória.
A arma de Sykes estava fumegando, e Sutherland fora ao chão, uma enorme bolha de sangue estourada entre suas sobrancelhas e bigode deveras tingidas de vermelho.
-Ele não parava de falar- disse Sykes, traduzindo o sentimento geral, de uma maneira que Shorty seria incapaz.
Sutherland estava morto, caído no chão, todo sangue, todo taturanas, todo bigode, todo fadiga verde, todo escovinhas estranhamente ausentes, e nós éramos oficialmente os traidores que ele nos declarara havia um minuto. Talvez ele fosse vidente, quem sabe.
A outra porta do helicóptero se abriu, e dela saiu um homem jovem, embora mais velho do que eu, usando os mesmos óculos de aviador de Sutherland.
Apontei minha arma para ele.
-O que você pretende fazer?- perguntei à ele.
Ele olhou um pouco ao seu redor, sem dúvida demonstrando uma emoção, embora esta estivesse oculta sob o Ray-ban.
-Nada.
-Nada?
-Nada. Pra quê? Esse cara era um chato mesmo. Me deixem ir embora com vida, e eu invento uma história sobre como ele decidiu ficar no chão, para ter um pouco de ação e realizar um pouco de reconhecimento, sendo morto num tiroteio, e de como eu heroicamente carreguei seu corpo até o helicóptero, levando-o de vota para receber suas honrarias militares em Salvador. Ah, e claro, vocês não estão mais vivos, morreram juto com o resto das tropas no bombardeio, que realizou todos os seus objetivos estratégicos.
Nenhum de nós disse nada, então ele simplesmente continuou à desfiar seus pensamentos.
-Honestamente, estou cansado desse lugar. É só umidade, umidade, umidade, mata, poeira, deserto, umidade, umidade, poeira, vilarejos, e algumas cidades espalhadas entre elas, todas fétidas e parecidas. A mulherada é legal, mas eu arranjo coisa melhor em Nova Orléans. Dito isso, o que vocês acham da minha proposta?
Sem dizer nada, Davis entrou no helicóptero. Se o gesto era aquilo que eu imaginava, era o que eu previa. Ter entrado no Exército era uma conquista para Davis, que antes era apenas o garoto nerd e com alguns problemas de saúde. Isso fora a prova de que ele podia ser algo mais. Ele não jogaria isso fora para virar um reles desertor.
Enquanto a porta se fechava, Davis sequer olhou para nós.
-Beleza, legal, o que somos agora, então?- disse Wright, olhando para o céu pelo qual singrava o helicóptero.
-É simples. Somos soldados sem pátria. Somos desertores. À partir de agora, os EUA são nossos inimigos, tanto quanto os comunistas. Para nós, a verdadeira guerra começa agora. E só vai terminar quando estivermos mortos.
Eu queria ter dito isso, mas não disse. Quem disse foi o Shorty. Tenho inveja dele; ele sempre foi muito bom com palavras.

*****
Era ela, era impossível ser qualquer outra pessoa.
Havíamos andado por toda a estrada, durante o anoitecer, basicamente esperando não ser mortos por alguma quadrilha de salteadores. Estávamos em menor número, e com pouca munição, o que significava que seríamos presa fácil para os comunistas sobreviventes do ataque. Adicionalmente, o fato de termos sobrevivido indicava que a estratégia de bombardeio havia falhado, o que significava que os americanos que encontrássemos pela estrada acabariam com a nossa raça. Ou seja, estávamos em uma situação complicada, e assim,andávamos com muita cautela.
Felizmente, talvez anticlimaticamente, nada aconteceu. Nenhum assaltante homicida pulou sobre nós para cortar nossas gargantas, nenhum helicóptero jogou napalm sobre nós, nenhuma emboscada com uma criança ferida no meio da estrada foi tentada. Talvez a estratégia de bombardeio tenha tido sucesso, afinal de contas. Mas ela tinha tido uma falha muito óbvia: nós.
E agora, após talvez uma hora de caminhada, havíamos encontrado ela. À distância.
Uma mulher com uma criança nas costas.
O que quer que tivesse acontecido com o burro, ele havia ficado para trás.
Não tinha erro.
Corri até ela. A mulher obviamente ouviu meus passos e, primeiramente, tentou correr, mas estava com a filha nas costas, o que complicou sua situação. Ela olhou para trás. Me viu. Parou. Bom sinal.
Shorty veio comigo. Não haveria erro.
-Shorty, isso é importante, traduza o que eu estou dizendo.
Shorty assentiu, embora, pude ver por seu rosto, meio à contragosto. Talvez ele sentisse que lá vinha bomba, e de fato, vinha.
Pepé ficou me encarando enquanto eu falava para Shorty. Ela parecia não entender porque eu a havia seguido. À bem saber, nem eu, embora possa sair do meu corpo e consciência por um momento e propor uma explicação Freudiana meia-boca. Estava francamente cansado daquela guerra e de todo aquele cinismo miserável. Aquilo não era a América. A América era outra coisa, talvez altruísmo, talvez um senso de dever. Em todo caso estava disposto à descobrir qual era. Talvez parcialmente estivesse buscando uma maneira de me reafirmar como o herói que meu pai queria que eu fosse, após desertar do Exército. De qualquer maneira, tudo isso é uma enorme bobagem.
Pepé me encarava com seus olhos de resignação, de quem perdeu tudo e já aceitou. Suas chances de recuperar seu marido já haviam se esvaído, e ela ainda apostara sua casa e sua cidade nisso, perdendo tudo. Estava suja, com fome, sozinha, com uma filha para criar. Eu estava sujo e com fome, mas tinha uma arma, e ia fazer algo com ela.
-Pepé, estou sabendo do que aconteceu com o seu marido. Ele foi levado para o...
-Sertão- disse Shorty.
-Isso mesmo, o Sertão. A questão é, somos fugitivos agora, temos armas, e o mais importante de tudo, muito tempo livre.
Shorty transmitiu a mensagem. Ela nos olhou por alguns segundos, pôs a filha no chão, e se ergueu novamente estalando o pescoço. Disse algumas palavras em sua língua. Shorty suspirou.
-O que ela disse?
-Ela perguntou onde você está querendo chegar com isso, e, francamente, eu também não sei.
Olhei para Pepé pela última vez. Pude sentir alguma coisa vagamente crescendo dentro de mim. Em breve, eu não a veria mais.
Valorizar cada segundo de um pequeno encontro cujo fim nos sabemos se aproximar é o jeito mais fácil de torná-lo memorável. Eu preferi outra estratégia. Não valorizar o momento, mas saborear suas possibilidades, e escolher a mais irresponsável, a mais impulsiva. Mergulhar de cabeça na vida e socar o acaso no rosto. E, se possível, fazer o bem no meio do caminho. É. Se fosse morrer, que fosse em nome da justiça, e de corrigir todas as besteiras que eu tinha feito em nome da bandeira. Começando por aquela mulher.
-Diga para ela- eu respirei fundo- diga para ela que nós iremos até onde esses comunistas malditos estão, e iremos trazer de volta o seu marido.

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