sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 12

Capítulo 28

A chuva acariciava o rosto de Camilla, enquanto a mesma batia insistentemente à porta.
Tudo começara bem. Após um dia de trabalho em que nada de realmente empolgante acontecera, ela pegara suas chaves de casa e saíra do escritório, despedindo-se de Rafael- ele geralmente ficava até mais tarde, cuidando dos telefonemas- e indo em direção à sua casa, na Avenida Prestes.
Pensava agora, enquanto a chuva escorria e molhava seus cabelos, no quão ingênua havia sido no breve momento que era sua vida até agora.
Era um apartamento confortável, quentinho quando se estava frio e refrescante quando o calor se abatia sobre aquela metrópole de mais de meio milhão de habitantes.
Era decorado com carpetes suaves ao toque cobrindo boa parte do chão, persianas elétricas que se estendiam pelas largas janelas que encostavam no chão e encostavam no teto, inundando a casa de luz ou dando á ela a sensual privacidade da escuridão.
Os móveis eram modernos- plantas exóticas em vasos uniformemente curvos de cores pastéis, um televisor que ocultava sua quadradez repousando em uma espiral que saia de sua base como um líquido, estantes de vidro translúcido, alguns berimbaus pendurados na parede ao lado de tapetes à moda russa, pufes ovais equilibrados sobre pilares, que davam á cadeira comum a necessária e agradável qualidade de girar.
Era um apartamento confortável- talvez, um dia, até se tornasse um lar.
Camilla bateu a porta. Esperava encontrar o homem que lhe prometera o mundo- e até então, havia feito um trabalho razoável. Não lhe dera a Lua, ou uma vida de aventura, mas lhe dera segurança e certa posição de destaque no Partido- era, afinal, Gestor da Hidrelétrica Irandir de Almeida- para não falar em um apartamento no centro cultural da cidade, perto da Ópera do Povo e do Palácio do Comissário.
-Oi, - ele disse quando ela entrou, se levantando do sofá baixo, mas proporcional à mesinha de centro.
“Oi, mozinho” Camilla teria respondido se tivesse tempo, e até entrou na sala de estar com seu sorriso característico e jovialidade expressa de um jeito maroto e serelepe.
Atirou sua bolsa sobre um dos sofás baixos- o sofá à frente daquele em que Henrique estava sentado, na verdade. Antes que a mesma pousasse, na verdade, enquanto ela ainda desfilava pelo ar, seu sorriso se desfez.
-Oh, olá- disse Camilla para o homem estranho, mas bem-vestido, elegante, com um eclético corte de cabelo e olhos de um azul glacial.
-Henrique, quem é esse seu amigo?- ela emendou, quase que imediatamente.
Henrique deu apenas um sorriso, aparentemente incomodado, mas logo trocou um olhar cúmplice com o homem sentado no sofá.
O que acontecera à partir daí foram tentativas de explicações, que levaram à incredulidade, que levou à justificativas e exigências de maturidade, que levaram à choro, que levaram à tentativas de reconforto, que levaram à gritos e ameaças, que levaram à um silêncio desconfortável seguido por aceitação e conciliação.
A conciliação envolvia Camilla sair de casa.
Diz-se que até você chegar á um certo ponto na hierarquia do Partido, qualquer desvio de caráter pode levar à sua perdição. Quando você passa desse ponto, porém, o Partido passa à se articular para que os seus desvios de caráter não sujem seu nome. Henrique passara desse ponto; Camilla, não.
Por mais que parecesse suspeito, nada seria dito sobre aquele relacionamento. O amigo de Henrique permaneceria apenas um amigo; Talvez um conselheiro fiel. Sorririam juntos em fotos, Henrique mais a frente, ele um pouco atrás, braços cruzados nas costas, terno bem-alinhado, postura conservadora. A perfeita camaradagem que o Partido exige de seus membros.
Cantemos a Fraternidade dos Homens, pensou Camilla, sibilando enquanto batia mais uma vez na porta.
Seriam recebidos com sorrisos, flores e tapetes vermelhos. É claro que, uma vez que passassem, os sorrisos se converteriam em murmúrios de preocupação, e as palavras proibidas seriam ditas bem baixo por todos. Ninguém se pronunciaria mas todos saberiam, e o sol viveria para nascer outro dia.
Quanto a ela? Provavelmente receberia uma pensão bastante generosa. As leis de divórcio eram bastante progressistas- esse era o paraíso dos trabalhadores, e, afinal de contas, e as mulheres também eram trabalhadores.
Mas isso não importava. Para além de perder aquele que considerava até então seu melhor amigo, todo seu projeto de vida fora esmagado contra a parede.
O Partido não mais a aceitaria- ela era grande porque ele era a grande, e sua realidade como esposa fora exposta como uma ferida em carne viva. Ela acabara de despencar de um penhasco em seu alpinismo socialista, e seria ainda mais difícil escalar tudo novamente.
Ouviu uma voz chamando-a ao longe.
-Camarada Camilla?- disse a voz, e virando-se, ela viu o jovem Rafael, ainda com algumas espinhas no rosto, usando uma camisa vermelha larga demais, abotoada do pescoço até o último botão quase no joelho. Carregava duas enormes sacolas de compras em pacotes de papel marrom.
-Olá, Camarada Rafael- disse Camilla, soluçando mas ao mesmo tempo sorrindo, descendo a soleira, quase tropeçando na mala em que levava as suas coisas- algumas roupas, escovas de cabelo, os manuscritos do trabalho, dois pares de sapato- uma mala restrita ao absolutamente necessário até poder separar o que era dela e o que era de Henrique com mais calma. No momento, a mala continha toda a sua vida.
A chuva ficava mais fina, e no meio daquela massa de ar quente, sob o céu branco e austero, os primeiros furos na névoa começavam a aparecer, deixando entrever o céu azul.

*****
A nova residência temporária de Camilla era um tanto mais modesta que a anterior, mas não muito. Uma casa de três andares, feita de tijolos vermelhos deixados conscientemente expostos. Era espaçosa, embora um visitante pudesse até ser perdoado por achar o contrário, dada a imensa desorganização da casa- livros jogados por toda parte, acumulados em pilhas ao lado de cadeiras e sofás, esquecidos nos cantos de todos os cômodos, e alguns simplesmente jogados no chão, como que largados de propósito para um dia serem reencontrados, lidos por mais algumas breves páginas e descartados no mesmo lugar. Roupas deixadas em cima de cadeiras, da mesa de jantar e da cama; onde ele dormia? Onde ele comia? Talvez por isso fosse tão magro.
Rafael surpreendentemente aceitara acolhê-la na sua casa, embora mais tarde certamente fosse pedir a ela uma menção favorável da próxima vez que encontrasse algum figurão do Partido. Camilla não sabia quando começar a contar para ele que era improvável que fosse encontrar sequer um figurão do Partido dali para frente.
De todo aquele reino da bagunça, Camilla tinha um enclave para chamar de seu: o sofá da sala, onde conquistara o direito de dormir até que tudo em sua vida fosse ajeitado. Deitou-se no sofá, sentindo nas suas pernas descobertas e depiladas a fibra áspera de que era feito. Em meio a todo aquele turbilhão de acontecimentos, aquele vazio que a saída de cena de Henrique deixara na sua vida, uma coisa não saíra realmente da sua cabeça. Na verdade, com tudo mais na sua vida parecendo incerto e se desfazendo em líquido, seus pensamentos recuavam e se deixavam envolver em território familiar, uma pequena planície longe do abismo.
Sua bolsa estava na mesinha de centro em frente ao rádio, repousada entre livros amarelados espalhados em pequenas pilhas, ou uns em cima dos outros. Suas capas estavam fragilizadas, e, com um mínimo de esforço, Camilla poderia arrancá-las deixando como capa o título interno colorido de amarelo-marrom, bem mais simples, sem pretensão.
De dentro da bolsa, pegou o manuscrito. Eu Matei Caetano Veloso. Dentre tudo que acontecera recentemente, essa era talvez a que menos prometia e a que acabara captando sua atenção. Seu primeiro encontro com D’Este deixara como que um grão de idéia plantado em sua cabeça, que desde ontem começava à alastrar suas raízes, pouco à pouco ocupando seus pensamentos. Porque personagens de ficção pareciam tão reais quanto ela, um ser de carne e osso? Carne e osso. Levantou-se do sofá na sala de estar, e foi até o reduzido banheiro, logo ao lado.
Mirou-se no alto, largo, límpido espelho, ladeado por paredes de ladrilho limão e azul-piscina alternados em um padrão, que, ocasionalmente, era desrespeitado. Era uma mulher bonita, ainda jovem, embora uma ruga aqui e ali entregassem que não era a mais a mesma garota que atravessara as portas da Editora Saber do Povo há pouco mais de uma década. Não obstante, as marcas de uma juventude ingênua ficando para trás, ainda tinha orgulho de seus traços firmes e angulosos, a postura e a magreza de seu corpo, seu cabelo que fora conscientemente moldado da pouco conhecida Clarice Lispector. Lavou o rosto e as lágrimas foram junto. Ainda estava um pouco vermelho, mas nada que o tempo e a maquiagem não curassem.
Deitando-se novamente no sofá, pegou o livro de D’Este e voltou a ler.

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