terça-feira, 20 de agosto de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 15

Capítulo 29



Pela primeira vez Rafael e Camilla entraram juntos na Editora Saber do Povo. Decidiram que, como estavam acordando ao mesmo tempo para tomar café da manhã juntos, era mais prático deixarem de lado o velho hábito de chegar com um certo espaçamento, sendo o atraso sempre de Camilla.
Os mesmos rostos deprimentes povoavam a sala de espera, mas Camilla não sentia mais desprezo por eles. O que sentia? Pena? Talvez. Seus sentimentos ainda eram poeira no ar no momento, como quase tudo; Camilla esperava pacientemente a poeira assentar.
Após receber um velho professor de Filosofia da Universidade Zumbi dos Palmares, que apresentou a ela um tratado sobre o “socialismo pós-moderno”, cuja atenção acadêmica certamente seria inversamente proporcional à vendagem de cópias, viu D’Este entrando pela porta, abrindo-a e fechando-a com pouca cerimônia.
-Vamos falar do seu livro, Camarada D’Este - disse  Camilla, pulando as formalidades, para a surpresa do próprio D’Este, que estendeu um sorriso beatífico.
-Eu diria que acho um bom livro, mas eu sou suspeito – ele disse, dando de ombros.
-Verdade, verdade – disse Camilla, acenando como que para se desvencilhar daqueles comentários anódinos. – Tenho que realmente lhe fazer a pergunta: Essa hstória é baseada em fatos reais?
-Pois não? – disse D’Este, surpreso.
- É isso mesmo. Até que ponto essa é uma  história de ficção, e até que ponto é verdadeira?
D’Este coçou a sobrancelha com o dedo indicador enquanto sorria.
Porra, ele nunca pára de sorrir.
-Depende o que você entende por ficção e realidade.
-Como assim?
-Afinal de contas, talvez você tenha notado que eu sou um pouco mais velho que você. Eu vivi aquela época. Na verdade, era um pouco mais jovem naquela época do que você é hoje, e morava aqui quando a cidade foi conquistada.
Camilla assistia aquilo, impassível. D’Este continuou:
-A questão é, a ficção pode ser mais que uma aproximação? Afinal se eu estou inserindo personagens fictícios na história, eu já estou alterando-a de uma forma, o que torna a expressão “romance histórico” um oximoro. “Aproximação” é realmente a melhor palavra, já que estou descrevendo coisas que não aconteceram, mas poderiam ter acontecido. A história que eu estou mostrando não é, em nenhum aspecto, verdadeira, e no entanto não podemos negar os paralelos que existem entre ela e a verdadeira história. Mas o que é a verdadeira história? Não presenciamos a história cada um sob um ponto de vista diferente, influenciados por nossos pais, por onde moramos, por aquilo que lemos ou deixamos de ler enquanto crescemos? A conclusão evidente disso é que não existe verdade que possa realmente ser captada por nós. Nós passamos nossas vidas como em um museu; alguns vêem a obra de arte à sua frente à um metro, outros à dez metros, um outro à poucos centímetros. Alguns vêem borrões, enquanto outros vêem a nítida imagem de dois cavalheiros sentados na grama ao lado de uma carnuda dama nua; porém todos estão olhando para a mesma pintura.
-Ok, espera um pouco, isso é bobagem – desmereceu Camilla, com um aceno de desprezo. – Tudo que eu perguntei é se havia elementos de verdade no seu manuscrito.
-Os elementos verdadeiros você já conhece, a tomada da cidade, por exemplo – disse D’Este, pigarreando.
-Não é disso que eu estou falando. Estou falando da narrativa central. Isso tudo aconteceu? - Camilla despejava as palavras com rapidez. Um ódio súbito por aquela figura sorridente e brincalhona lhe acometera.
-Isso importa realmente? – disse D’Este, exultante.
Camilla sentia que a qualquer momento, alguma veia sua iria estourar. O sangue lhe subiu até a testa.
-É CLARO QUE IMPORTA! – Camilla explodiu, atirando folhas do manuscrito ao céu. Desta vez, o bonachão D’Este, homem de uma expressão só, mostrou-se abalado e desnorteado, sendo tomado por uma súbita palidez.
Camilla respirou fundo. – É claro que importa! Eu só consigo justificar a existência do seu maldito livro se ele tiver algum embasamento. Ninguém está aqui para desconstruir a história. O Partido sabe muito bem o que aconteceu no passado, não precisamos de ninguém para reescrevê-lo. Se o que você quer é contar uma história de ficção marota pra desvendar um mistério do passado com base em mera especulação, então eu recomendo que vá embora, pois o seu livro não tem propósito social.
-Uma coisa você acertou – disse D’Este, se levantando e indo em direção à porta, como se já previsse sua expulsão dali. – Esse é um livro de ficção. Mas nem por isso ele é mentira.
Camilla franziu as sobrancelhas, e pegou, antes que caísse, um papel que se colara em seu cabelo.
-A verdade é inacessível, você concorda comigo?
-Não mesmo. Todo mundo sabe o que aconteceu nos eventos que povoam a história. Todo mundo sabe as causas da guerra e de nossa Revolução.
-O que você está falando é de eventos que ocorreram, e todos concordamos que eles ocorreram; mas o evento não é percebido de forma individual? Existe, portanto, uma forma de se chegar à verdade? Se a verdade é inatingível, ela existe em qualquer sentido que realmente importe? E principalmente, se não temos acesso à verdade, como saber se ela de fato existe? Nesse sentido, toda realidade, todo fato consumado, contado e recontado, não passa de uma história. E, se somos apenas indivíduos em um cenário de faz-de-conta, o que dizer de nossa vida? O que ela é?
Camilla permaneceu atônita.
-Ficção. Vivemos uma ficção tão irreal quanto um livro, e somos tão reais quanto Soares e o soldado americano. Nesse sentido, se eu pusesse um hipopótamo amarelo falante nesse livro, ele seria tão real quanto qualquer documentário.
Camilla engoliu em seco, mas já estava pronta para responder à altura.
-Camarada D’Este, no seu mundo, a realidade pode ser uma mentira e podemos ser todos personagens de ficção, mas o mundo real é feito de regras, regras como as do Partido. E as regras do Partido são claras no que diz respeito a obras que retratam a Revolução. Infelizmente, pela falta de qualquer conteúdo edificante em sua obra, e documentação inadequada da realidade, eu não terei escolha senão recusá-la.
Sem dizer mais nada, D’Este deu meia-volta e deixou o escritório.

Camilla respirou fundo e deu uma olhada pelas folhas espalhadas ao seu redor. Esbarrou o olhar no manuscrito de “O socialismo pós-moderno”, pendurado no canto de sua mesa. Sem pensar duas vezes, jogou-o na lixeira de metal sob a mesa.

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