Capítulo 7
-Branquelo, eu não sei bem se entendi aonde você
quer chegar com isso.
Eram duas horas da tarde, e já fazia uma hora, Soares
estava manipulando um rádio antigo.
-Ô Soares...
-Fale baixo, acho que eles estão chegando.
Já fazia uma hora, Soares estava manipulando um
rádio antigo que, ele insistia, era um mecanismo de detecção de som,
informalmente conhecido como escuta. O plano é bom o suficiente para dar
certo, pensou Soares, e ele vai dar certo assim que essa mulata ficar
longe o suficiente para não perceber que eu estou ouvindo “A Hard Day’s Night”.
Soares havia pensado em pegar algum dos discos
novos da Nara Leão, como o recente “Antapofagia”, que, já fazia um tempo, tinha
vontade de ouvir, mas o Capitão Orfeu dificilmente lhe forneceria uma obra
lançada no estrangeiro e banida na República Legalista Brasileira.
-Veja se eles já estão na janela, Cleópatra.
E foi isso o que ela fez, atravessando o armazém délabré
até a janela, que se abria frente à um armazém igualmente délabré, e
na verdade, idêntico à aquele em que estavam em todos os sentidos. O caráter
pragmático e temporário do porto, que servia só de entrada e saída, e não como
um local à ser admirado, de fato não dava muita margem à criatividade
arquitetônica. Na maneira que existia então, o porto de Salvador subsistia como
local de entrada de soldados americanos saudáveis, robustos e prontos para o
combate, e de saída para soldados sujos, feridos, e tomados por doenças há
muito consideradas erradicadas. Todas as outras atividades haviam sido
abandonadas pouco à pouco, e o resultado era que o porto havia se tornado uma
casca vazia de aço, tijolos e concreto. Seus vastos armazéns haviam se tornado
refúgio para jogatina e moradia para os desabrigados; ou seja, não muito
diferente de sua função anterior. A indústria da entrada e saída de soldados
havia feito florescer uma próspera rede de prostituição, alimentada por refugiadas
do interior que buscavam se esconder dos comunistas, das milícias cristãs, ou
do Exército Americano, ou ainda dos três ao mesmo tempo( estupros de guerra são
notoriamente democráticos, na medida em que ele é praticado por todas as
facções sobre mulheres de todas as classes e raças, e até alguns homens). As
camponesas largavam a enxada mas a enxada não as largava, e isso somado ao
cruel e competitivo ambiente econômico da cidade grande faziam com que
rapidamente fossem engrossar a fileira das prostitutas que se atiravam sobre os
bem-vestidos americanos quando estes davam seus primeiros passos no lado B de
seu próprio continente, dizendo please e acenando sensualmente com
frases que no papel, não queriam dizer nada, mas todos na prática compreendiam a
intenção( I be very dirty, me so horny, me Love you long time). Assim se
completava a metamorfose das camponesas, de mulheres que fugiram do estupro
para mulheres que aceitavam sexo com estranhos por dinheiro.
Além de todos esses negócios que geralmente, pelo
menos na retórica, se situam à margem da sociedade e da moral, o porto de
Salvador também servia com freqüência como ponto de encontro de grupos bastante
suspeitos; e era exatamente para isso que Soares iria utilizá-lo.
-Branquelo, Branquelo! Eles chegaram!- Disse
Cleópatra, do outro lado da sala, em uma inquietante mistura de sussurro e
grito.
-Certo, vou ligar o aparelho- disse Soares, girando
o mesmo botão que já girava havia uma hora, enquanto “And I Love Her” tocava.
Nesse momento, se tudo corresse como o planejado,
cinco homens de camisas coloridas e óculos escuros- agentes do governo
disfarçados de jovens revolucionários- estariam saindo de um carro discreto, um
Fusca preto com janelas escurecidas, e iriam na direção do armazém adjacente à
aquele em que Soares e Cleópatra estavam instalados, e onde a escuta de Soares
lhe revelaria detalhes da mais alta importância para a solução do caso.
-E aí? Eles já disseram algo de interessante?-
Perguntou Cleópatra, de cócoras ao lado de Soares, esperando notícias como uma
discípula do messias.
-Meu Deus... Meu Deus- Soares fez a sua
melhor careta, procurando retratar o sentimento e a emoção que alguém
transmitiria ao receber uma revelação dramática. Seu rosto, no entanto,
aproximou-se mais do de uma pessoa que comeu um acarajé estragado e, não
apreciando-o, se prepara para cuspi-lo. Mesmo assim, isso pareceu ter
impressionado Cleópatra, que balançou Soares enquanto seu próprio cabelo Black
Power bailava no ar como espuma.
-O que foi? O que foi?- Perguntou ela, entrando em
pânico.
Soares “desligou” o seu aparelho de escuta- à
verdade, um gigantesco gravador que funcionava apenas na medida que também
permitia tocar algumas boas músicas dos Beatles. Eram ótimos cantores mesmo.
Pena que tenham entrado nesta piração da esquerda revolucionária- pensou,
enquanto se levantava.
-Cleópatra, as informações que peguei são muito,
muito importantes- anunciou, com uma ênfase típica dos mentirosos.
-O que faremos agora?- Ela perguntou(de novo),
agora com uma certa ingenuidade. Sabe, depois de ela ter sido tão
insuportável, até que estou começando a tolerá-la.
-É simples. Voltarei para o meu escritório e vou
redigir um relatório. Deve ser entregue ao Cassius ainda hoje.
-Você quer dizer o Líder.
-É, o que quiser.
E assim, pensou Soares, enquanto o cenário- não, a
realidade- se construía à sua frente. E assim, essa escuta me dará todas as
provas de que preciso para mostrar à Cassius que o Exército Popular da
Insurreição Vermelha Seção Nordeste é quem está por trás do seqüestro de sua
sobrinha. Cassius vai ficar suficientemente grato e vai liberar a informação
que Orfeu deseja, e se os dois grupos entrarem em guerra, vai ser uma bela
adição. Assim Orfeu sai plenamente satisfeito, e eu ganho minha liberdade, meu
negócio, e quem sabe, até a reputação que nunca tive. Toma essa, Geraldo.
Talvez até ganha minha casa no Rio de Janeiro de
volta. Talvez já tenham esquecido tudo o
que aconteceu por lá.
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