sábado, 6 de julho de 2013

Eu Matei Caetano Veloso - Parte 10

Capítulo 7


-Branquelo, eu não sei bem se entendi aonde você quer chegar com isso.
Eram duas horas da tarde, e já fazia uma hora, Soares estava manipulando um rádio antigo.
-Ô Soares...
-Fale baixo, acho que eles estão chegando.
Já fazia uma hora, Soares estava manipulando um rádio antigo que, ele insistia, era um mecanismo de detecção de som, informalmente conhecido como escuta. O plano é bom o suficiente para dar certo, pensou Soares, e ele vai dar certo assim que essa mulata ficar longe o suficiente para não perceber que eu estou ouvindo “A Hard Day’s Night”.
Soares havia pensado em pegar algum dos discos novos da Nara Leão, como o recente “Antapofagia”, que, já fazia um tempo, tinha vontade de ouvir, mas o Capitão Orfeu dificilmente lhe forneceria uma obra lançada no estrangeiro e banida na República Legalista Brasileira.
-Veja se eles já estão na janela, Cleópatra.
E foi isso o que ela fez, atravessando o armazém délabré até a janela, que se abria frente à um armazém igualmente délabré, e na verdade, idêntico à aquele em que estavam em todos os sentidos. O caráter pragmático e temporário do porto, que servia só de entrada e saída, e não como um local à ser admirado, de fato não dava muita margem à criatividade arquitetônica. Na maneira que existia então, o porto de Salvador subsistia como local de entrada de soldados americanos saudáveis, robustos e prontos para o combate, e de saída para soldados sujos, feridos, e tomados por doenças há muito consideradas erradicadas. Todas as outras atividades haviam sido abandonadas pouco à pouco, e o resultado era que o porto havia se tornado uma casca vazia de aço, tijolos e concreto. Seus vastos armazéns haviam se tornado refúgio para jogatina e moradia para os desabrigados; ou seja, não muito diferente de sua função anterior. A indústria da entrada e saída de soldados havia feito florescer uma próspera rede de prostituição, alimentada por refugiadas do interior que buscavam se esconder dos comunistas, das milícias cristãs, ou do Exército Americano, ou ainda dos três ao mesmo tempo( estupros de guerra são notoriamente democráticos, na medida em que ele é praticado por todas as facções sobre mulheres de todas as classes e raças, e até alguns homens). As camponesas largavam a enxada mas a enxada não as largava, e isso somado ao cruel e competitivo ambiente econômico da cidade grande faziam com que rapidamente fossem engrossar a fileira das prostitutas que se atiravam sobre os bem-vestidos americanos quando estes davam seus primeiros passos no lado B de seu próprio continente, dizendo please e acenando sensualmente com frases que no papel, não queriam dizer nada, mas todos na prática compreendiam a intenção( I be very dirty, me so horny, me Love you long time). Assim se completava a metamorfose das camponesas, de mulheres que fugiram do estupro para mulheres que aceitavam sexo com estranhos por dinheiro.
Além de todos esses negócios que geralmente, pelo menos na retórica, se situam à margem da sociedade e da moral, o porto de Salvador também servia com freqüência como ponto de encontro de grupos bastante suspeitos; e era exatamente para isso que Soares iria utilizá-lo.
-Branquelo, Branquelo! Eles chegaram!- Disse Cleópatra, do outro lado da sala, em uma inquietante mistura de sussurro e grito.
-Certo, vou ligar o aparelho- disse Soares, girando o mesmo botão que já girava havia uma hora, enquanto “And I Love Her” tocava.
Nesse momento, se tudo corresse como o planejado, cinco homens de camisas coloridas e óculos escuros- agentes do governo disfarçados de jovens revolucionários- estariam saindo de um carro discreto, um Fusca preto com janelas escurecidas, e iriam na direção do armazém adjacente à aquele em que Soares e Cleópatra estavam instalados, e onde a escuta de Soares lhe revelaria detalhes da mais alta importância para a solução do caso.
-E aí? Eles já disseram algo de interessante?- Perguntou Cleópatra, de cócoras ao lado de Soares, esperando notícias como uma discípula do messias.
-Meu Deus... Meu Deus- Soares fez a sua melhor careta, procurando retratar o sentimento e a emoção que alguém transmitiria ao receber uma revelação dramática. Seu rosto, no entanto, aproximou-se mais do de uma pessoa que comeu um acarajé estragado e, não apreciando-o, se prepara para cuspi-lo. Mesmo assim, isso pareceu ter impressionado Cleópatra, que balançou Soares enquanto seu próprio cabelo Black Power bailava no ar como espuma.
-O que foi? O que foi?- Perguntou ela, entrando em pânico.
Soares “desligou” o seu aparelho de escuta- à verdade, um gigantesco gravador que funcionava apenas na medida que também permitia tocar algumas boas músicas dos Beatles. Eram ótimos cantores mesmo. Pena que tenham entrado nesta piração da esquerda revolucionária- pensou, enquanto se levantava.
-Cleópatra, as informações que peguei são muito, muito importantes- anunciou, com uma ênfase típica dos mentirosos.
-O que faremos agora?- Ela perguntou(de novo), agora com uma certa ingenuidade. Sabe, depois de ela ter sido tão insuportável, até que estou começando a tolerá-la.
-É simples. Voltarei para o meu escritório e vou redigir um relatório. Deve ser entregue ao Cassius ainda hoje.
-Você quer dizer o Líder.
-É, o que quiser.
E assim, pensou Soares, enquanto o cenário- não, a realidade- se construía à sua frente. E assim, essa escuta me dará todas as provas de que preciso para mostrar à Cassius que o Exército Popular da Insurreição Vermelha Seção Nordeste é quem está por trás do seqüestro de sua sobrinha. Cassius vai ficar suficientemente grato e vai liberar a informação que Orfeu deseja, e se os dois grupos entrarem em guerra, vai ser uma bela adição. Assim Orfeu sai plenamente satisfeito, e eu ganho minha liberdade, meu negócio, e quem sabe, até a reputação que nunca tive. Toma essa, Geraldo.

Talvez até ganha minha casa no Rio de Janeiro de volta.  Talvez já tenham esquecido tudo o que aconteceu por lá.

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