terça-feira, 6 de novembro de 2012

O Guia Politicamente Incorreto dos Guias Politicamente Incorretos

O mercado editorial Brasileiro, no qual eu muitas vezes tentei entrar pela porta da frente(sem sucesso) vive hoje uma praga. Ela vem na forma de uma meia-dúzia de homens na casa dos 30 e tantos anos, brancos, estudados e de classe-média, que, por motivos diversos, acham que o mundo está sendo gentil demais com quem não é branco, homem, estudado e de classe-média. Estou falando da histriônica trupe de autores que publica os autoproclamados "Guias Politicamente Incorretos".
São vários: o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Guia Politicamente Incorreto da História da América Latina, o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia... todos sucessos editoriais, e todos com grau variado de exatidão e uso de fontes.
Vou admitir, eu até que me empolguei com o lançamento do primeiro livro- o mega-sucesso "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", em 2009. Como estudante do ensino-médio, vivia o auge do meu ódio contra as políticas redistributivas e de "correção de erros históricos", que definitivamente estavam aí para roubar a minha suada vaga na faculdade, para a qual eu trabalhara com afinco desde nascer. Tá, desde nascer não, mas a ideia é a mesma. O Guia, assim, surgiu como um sopro de ar fresco na hora certa, desmistificando aquilo que eu aprendera no colégio. O "Guia" era mais que um livro de história. Era irreverente, inteligente, fazia você pensar e era, à sua maneira, subversivo. 
Durou pouco. Não é preciso um especialista para ver que a proposta do Guia- a de derrubar o establishment esquerdista que domina a cultura e em particular a produção histórica, à partir de exemplos que refutem a sua versão da história- tem falhas profundas. Desde a primeira vez que eu li o livro, uma coisa me incomodou- e olha que naquela época, eu nem sabia do debate entre empiristas e racionalistas. O autor, o jornalista curitibano da Veja Leandro Narloch, tinha uma preferência por apresentar exemplos pesquisados à fundo, que derrubavam 'mitos históricos'(por exemplo, apresentando o caso de um ex-escravo que era dono de escravos, para acabar com o mito de que só brancos tinham escravos). O problema óbvio com isso é que alguns exemplos dificilmente configuram uma refutação de um fato muito maior, apoiado numa quantidade mil vezes maior de exemplos.
Mas isso foi apenas o primeiro de meus problemas com o Guia. O problema principal era que, longe de tentar contar uma versão diferente da propagada pela esquerda acadêmica, que primasse pelo rigor científico, Narloch se deixou infectar pelas suas próprias influências ideológicas e escreveu pouco mais que um panfleto. Para além do humor e da óbvia característica anedótica do livro, ele tinha um certo ranço direitista, mas que eu deixei passar, em meu maravilhamento. 
Já na sequência, o "América Latina", Narloch virou uma paródia de si mesmo, adotando as mais ululantes teses da direita paranóica, como a de que Salvador Allende ia dar um golpe para se perpetuar no poder, e foi impedido pelo salvador da pátria e amigo das crianças, Augusto Pinochet. Se antes, ele tinha como objetivo desmistificar a história, agora estava criando uma nova mística, baseada em teorias de conspiração tiradas da internet.
Digam o que quiserem sobre a tal parcialidade da análise esquerdista da história, mas uma coisa é óbvia: um livro como As Veias Abertas da América Latina tem como propósito desmistificar uma história ainda mais tradicional, sim, aquela contada nos decrépitos livros didaticos dos nossos avós, com uma ortografia engraçada. Nesses livros, as crianças aprendiam tudo sobre os conquistadores, e nada sobre os conquistados. Ouviam a versão dos europeus, e nada sabiam dos índios, ou porque, afinal de contas, sobravam tão poucos para contar a história. O papel da esquerda na história sempre foi o de trazer de volta ao centro um debate que já nasceu parcial- e torná-lo, assim, mais próximo da realidade da população.
Já o livro de Narloch serve que propósito? Tá, talvez o de desconstruir, mas desconstruir a estrutura sem substituí-la por nada, ou só por piadinhas e anedotas, é meio tenso.
Entrar na faculdade, eu pensava, me botaria em contato com a tal elite acadêmica, esquerdista e arrogante que Narloch descreve. Ao invés disso, o contrário ocorreu. Entrar na PUC-Rio me pôs em contato com o maior centro de produção de conhecimento declaradamente conservador do Rio de Janeiro, quem sabe do Brasil. Claro, havia alguns esquerdistas, da variedade que fuma maconha com os pais hippies e frequenta os shows da Fundição Progresso. Mas é só. A maioria, incluindo uma parte significativa dos jovens, era composta por neoliberais ranzinzas. Então, onde está a tal dominação esquerdista que Narloch descreve? Se ela existir, me digam onde encontrá-la, porque deve ser divertido morar nela. Tenho certeza que a galera lá faz bastante sexo grupal.
A tal da onipresença do politicamente correto é talvez a maior peça já pregada na classe-média brasileira. Na verdade, esquece isso. Ela é cúmplice disso. Criou um fantasma de ameaça esquerdista ao nosso modo de vida, apenas para justificar uma reação ainda mais violenta. A chave do conflito, no final, é a percepção da realidade, e não a realidade em si. Assim, tanto os hippies que tomavam LSD e a sisuda classe média dos anos 60 tinham uma visão igualmente deturpada da realidade. Talvez a droga dos segundos seja a tinta de jornais alarmistas, que penetra nas veias pelas unhas.
Mas estou tergiversando.
Enfim, enquanto a minha convivência na faculdade me permitia chegar à essa compreensão maior, a história dos Guias Politicamente Incorretos seguia o seu curso. Não, pera, curso não, porque curso é teleológico, e teleologia é marxista. Não pode. 
Enfim, é quase injusto comparar o primeiro livro de Narloch à corja de imitadores que surgiu depois, provando mais uma vez que a popularização leva à banalização. Narloch inspirou várias cópias malfeitas de sua obra, quase todas escritas por pensadores conservadores, dos quais o pior é com certeza o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, o livro mais escroto(e eu uso essa palavra mesmo) que eu já tive a desgraça de ler na minha vida. Enquanto Brasil, apesar de suas falhas evidentes, tinha um embasamento documental sólido, com páginas e mais páginas de fontes, Luiz Felipe Pondé, um "intelectual" de décima-quinta categoria, escreveu um livro de pensamentos mirrados e preconceituosos, como o de que as mulheres tem que se submeter aos homens, ou de que a busca pela igualdade enfraquece o homem, o que me lembra muito as ideias de alguém cujo nome não citarei, para não quebrar a Lei de Godwin. 
Finalmente, parece que o próprio Narloch, que eu antes respeitava como historiador, vem descendo mais e mais em uma espiral de reacionarismos que fariam a Opus Dei dizer "calma aí, cara!". Eis aqui um trecho de um post de seu blog:
O terremoto e a calamidade do Haiti fizeram vários “especialistas” no país aparecerem de repente. Nas rádios e canais de notícia, eles dizem o seguinte: o Haiti, apesar de ter sido o primeiro país da América Central a passar por uma revolução e conquistar independência, sofreu embargos e ditaduras apoiadas pelos EUA, o que resultou na miséria que vemos na TV. É o velho esquema “pobre/indefeso”versus “rico/inescrupuloso” que eu critico no Guia. Não conheço bem a história do Haiti, mas desconfio do seguinte: o país deu errado porque a sua elite perdeu. Os homens que conduziriam a massa à civlização foram expulsos ou executados. A justificativa do embargo ou das ditaduras serve para abafar uma verdade dolorosa: o Haiti é o melhor exemplo de que revoluções dão errado. A revolta, a liberdade e a independência acabaram com o país. Se os haitianos continuassem tendo que obedecer as regras impostas por algum país europeu, viveriam muito melhor hoje em dia, talvez como a Republica Dominicana, com quem dividem a ilha de Hispaniola. Ímpetos revolucionários causam tanta tristeza e tantas cenas lamentáveis quanto os piores terremotos.
Aham, Narloch, então você não sabe nada sobre o Haiti, e resolve dar pitaco mesmo assim? Interessante. Fora isso, encontramos vários clichês interessantes, como a de que a elite é a vítima( Realidade chamando Narloch: é mentira. A elite era colonial, e iria embora de qualquer maneira caso a independência ocorresse. O país era quase integralmente formado por escravos), ou a afirmação, que fala por si só, de que o Haiti estaria melhor como colônia. Sim. Em pleno Século XXI, um intelectual respeitado, com relativo apelo popular, nascido em uma ex-colônia, defende o colonialismo. De fato, avançamos pouco desde o grito do Ipiranga, mas eu suspeito que seja por causa de pessoas como Leandro Narloch.

PS: Ah, e já está na hora de acabar com essa moda de capas imitando o Sergeant Pepper's Lonely Heart Club Band. Já está dando para ouvir o John Lennon se revirando no túmulo.

Franco Alencastro não tem o escritório na praia, mas tá sempre na área.

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