domingo, 6 de julho de 2014

120 horas em Lhassa - Parte VII

3 horas e 50 minutos

-É aqui mesmo. Pode me deixar.
O taxista gordo e suado, de origem Mongol, pareceu ter ficado com uma pulga atrás da orelha depois que percebeu que seu passageiro estava para descer em uma zona completamente tomada por sacrílegos. Dinheiro é dinheiro, pensou, e abriu a porta para Tyuugai. Tyuugai entregou para ele 12 Rúpias Bukkaras- um assalto, principalmente para ele que veio de família humilde e cujo dinheiro quase não dava até o final do mês. A Li ainda me paga, pensou.
Chegando à praça, confrontou-se com uma dificuldade: como encontrar Li no meio daquela multidão? Com certeza, no meio de toda aquela gente cinzenta, enrugada e mal-vestida ela acabaria se sobressaindo, mas mesmo assim seria uma tarefa de várias horas.
Aproximou-se de uma velha senhora que carregava uma gaiola cheia de pintinhos, e perguntou à ela:
-Com licença, você fala Mongol?
-Mongol? Ah sim, eu falar, quer dizer, não muito. Meu vestido está pululando com agendas e eu não treinar há um peixe.
Tyuugai não entendeu quase nada, mas tentou prosseguir a conversa.
-Viu moça... dessa altura... jovem, de tailleur?
A velha fez uma cara de confusa e então, compreendendo, disse:
-Ah sim, moça maluca. Ela ser revolucionária mais diferente da face da vida.
Apontou então para o centro da praça, onde estavam algumas caixas; em cima delas, alguns monges e uma garota magra e jovem berrando em um megafone.
-Li?- Tyuugai perguntou, observando aquela cena bizarra. Lembrou-se então da velha e disse para ela: -Ham, certo, obrigado pela informação, velha senhora.
-Não há de onde- disse a senhora, abrindo um sorriso sem muitos dentes.

Tyuugai andou com dificuldade até o local onde estavam as caixas, e conforme ia chegando mais perto a mensagem de Li no megafone ia ficando mais clara:

"Aguentamos a opressão por muito tempo!"

"Abram as portas das cadeias! Derrubem as fábricas! Confisquem as armas!"

"Não devemos ter medo do Dalai Lama. O Dalai Lama deve ter medo de nós!"

Das duas uma: ou essas frases simbolizavam mais um de seus acessos de rebeldia, ou ela tinha pirado de vez.
-Li, esse é um dos seus acessos de rebeldia ou você pirou de vez?- disse ele, enfurecido.
Li não ouviu, mas logo depois virou-se para a ala sul da praça empunhando seu megafone, e, vendo Tyuugai, abriu um sorriso.
-Tyu! Como foi lá na escola?
-Bom, felizmente, o incêndio tinha começado às 5 da manhã, antes da escola abrir, então ninguém se machucou. Mas a pergunta mais importante nesse momento é: o que está fazendo aí?
A multidão começou à reclamar do silêncio súbito de Li.
-Tyu, veja só- ela limpou a garganta e falou no megafone- Esse é um momento histórico!
A população bateu palmas e gritou em apoio.
-Tyu, eles me amam. Eu nasci pra isso- disse Li, esboçando um sorriso de ingenuidade sincera.-O tempo todo eu estava indo na direção certa, mas tinha escolhido a vocação errada. É meu destino, sim, cativar multidões com a minha voz e meu carisma, mas não detrás das lentes de uma câmera. Meu lugar é aqui, com a massa! Os operários, os tecelões, os mineiros! Todos esses pés-rapados que ninguém defende!
Tyuugai balançou a cabeça, meio chocado, meio entristecido.
-Li... você é maluca.
-Diga-me algo que eu não sei.-limpou então a garganta- Hora do show!-e recomeçou a esbravejar no megafone.
Tyuugai reuniu forças e começou à gritar.
-Li, você está sendo irresponsável! Só tem 22 anos! O que você entende da vida e da política? Está tendo é um acesso de rebeldia!
Li virou-se para Tyuugai e largou o microfone.
-E você? Acha que entende alguma coisa?! Eu já entendi! Isso aqui, seu reacionário, parece pacífico, mas é uma guerra. De que lado você vai estar? Da ação ou da reação? Da morosidade ou da força das novas idéias? Escolha logo, porque senão nós vamos acabar te atropelando de qualquer jeito!
Enquanto Li cuspia aquelas palavras de ódio, Tyu permanecia impassível. Olhava os cabelos de Li que, desgrenhados, agora voavam em frente ao rosto. Porém, por trás de toda aquela repulsa, Tyuugai continuou vendo aqueles pequenos olhos escuros, que continuavam brilhando- a Li revolucionária era apenas uma fachada pública. Ela entrara em um jogo, e, pelo visto, estava se divertindo bastante.
-Está certo. É o seguinte, Li: eu posso não conseguir fazer você sair daqui, mas nada me impede de ficar aqui, cuidando de você.
-Não preciso ser cuidada.

-É o que veremos.

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