domingo, 6 de julho de 2014

120 horas em Lhassa - Parte XXIV

37 horas, 31 minutos

Era a terceira reunião em menos de 48 horas. Alguns serviçais despejavam o chá fumegante de bules de jade em pequenas xícaras ornadas com gravuras em miniatura, enquanto os ministros iam um à um sentando-se nas almofadas de cetim vermelho.

-Bom, senhores. Creio que estejamos agora numa posição muito mais confortável do que hoje de manhã.

-Mas como, Vossa Santidade? Ainda são as mesmas almofadas de hoje de manhã.

A piada do Ministro da Economia Wong Sok provocou risadas gerais. Após um tempo, esta desapareceu e subsistiu um silêncio constrangedor.

-Certo, comecemos a reunião.- disse o Dalai Lama.

-Bom, senhor, de fato tudo parece estar sob controle- disse Laogan Turkveyeni- os últimos relatórios que me foram entregues mostram que apesar de alguns saques à lojas e incidentes menores, a situação parece ter se acalmado. Talvez o blecaute tenha sido mesmo benéfico.

Luvsanshara deu uma pequena risada.

-Pois não, Dogijavyn?- disse o Dalai Lama, subitamente ríspido.

-Desculpe, Vossa Santidade, mas esse comentário foi bastante engraçado. Se me permite, senhor, me dei a liberdade de coordenar uma pesquisa pela atualização de informações pós-blecaute.

Turkveyeni ficou pálido, assim como Wong Sok.

-Entre- disse Luvsanshara, e um idoso de feições túrquicas, pequeno e de passo arrastado, usando óculos maiores que a própria testa, entrou e entregou um papel à Luvsanshara.

-Vossa Santidade, esse é Ogomka, um de meus subordinados e um dos profissionais mais capazes que conheço, dono de uma memória que, se não é fotográfica, é sem dúvida melhor que isso. Ele compilou alguns dados sobre os efeitos do blecaute, que eu julgo... Interessantes.
Em uma voz clara de locutor de rádio, Luvsanshara começou à ler:

-Estima-se que no momento em que o EMP foi realmente ativado, o que deduzimos ocorreu às 5 horas da manhã de hoje, horário de Lhassa, 17 aviões comerciais que circulavam no espaço aéreo de Bukkara simplesmente caíram. Na hora seguinte, o número subiu à 60 e pouco tempo depois a maioria dos vôos que passavam pela Ásia foram suspensos. Estimamos o total de vítimas desses trágicos acidentes em cerca de 13 mil pessoas.

O queixo do Dalai Lama caíra e este tirara seus óculos e começara à limpá-los freneticamente.

-Os acidentes de trem também foram numerosos. Quatro descarrilaram logo após o início do blecaute, matando 1500 pessoas. Foi dito por pessoas entrevistadas que assim que a energia acabou, várias pessoas saíram dos trens- alguns dos quais haviam parado em pleno campo- e começaram a protestar. Houve notícias de vagões sendo ocupados por manifestantes nas linhas Qirihar-Almaty, Teerã-Ashgabat e a Yunnan Norte. A falta de energia nas regiões do leste, no momento em que as pessoas estavam indo trabalhar, determinou que estas ficassem em casa. No oeste, onde o dia já estava na metade ou quase acabando, os trabalhadores terminaram por, em muitos casos, ocupar seus locais de trabalho, como ocorreu nas Minas Dorogvan na Armênia e no estaleiro Palma de Buddha em Astrakhan. Nos Campos de purificação espiritual, a falta de energia gerou pânico e motivou levantes contra as autoridades. Em Taitogrado, os Taïteis entraram em guerra aberta contra o governo. Em suma, acredito que esse blecaute nos ameaçou como nenhum exército inimigo jamais pôde ou poderá.

O espanto na sala foi geral quando Luvsanshara encerrou seu sombrio monólogo.

-Saiam da sala.- disse o Dalai Lama com o rosto esbranquiçado, mirando com a cabeça Turkveyeni, Wong Sok, Poteng e Gangchen.

-Mas a reunião...

-Eu disse saiam!

Os quatro ministros andaram ruidosamente e espremeram-se por ela, tentando passar juntos. Apenas Luvsanshara ficou.

-Senhor- disse Luvsanshara levantando-se, olhando para Tenzin Gyatso de cima- Acredito que esse longo rapport tenha servido para demonstrar a competência do Ulukorbak.

-Com certeza- disse o Dalai Lama, encolhendo-se em sua almofada.

-É claro que gente como Rinpoche ou Wong Sok devem entender de Economia ou de Infraestrutura- mas no fim, quem é melhor para dar informações do que o Ministério da Informação e Segurança?

-De fato.

-É por isso que eu peço que contrate Ogomka como substituto temporário de Dao Rinpoche.

-Perdão?

-Veja só, Vossa Santidade. Seus antigos ministros tinham muita independência. Zheng Gyatso praticamente armou um golpe contra o senhor ao retirar a artilharia do Promontório Sereno. Dao Rinpoche agiu impulsivamente e provocou uma catástrofe que levaremos muito tempo para superar. Mas ainda temos tempo de sujar as mãos e agir onde os subalternos falharam. Dando a Ogomka o posto, você não somente estará contratando alguém de muito competente, estará também dando a sua opinião sobre como a infraestrutura do país deve ser administrada. Além do mais, eu conheço todo o Ulukorbak: sei quem é de confiança. Imagine se- não que o senhor seja capaz de tal erro- Vossa Santidade tivesse chamado o General Chimid, que até ontem ostentava a máscara de um oficial justo e respeitado por seus homens, para o posto de Ministro da Guerra.

-Eu... entendo.


-Obrigado por entender meu ponto de vista, Vossa Santidade- Luvsanshara curvou-se e beijou a mão do Dalai Lama que estava tremendo. E então saiu da sala, deixando-o ás escuras. 

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