domingo, 6 de julho de 2014

120 horas em Lhassa - Parte XXI

25 horas, 07 minutos

O sol mal nascera e já começara à se acovardar novamente atrás das nuvens. Vai chover, pensou Zheng Gyatso. Desde que retornara ao Promontório Sereno, ficara sentado à observar o vazio, enquanto soldados esperavam atrás dele, confusos, em desespero, perdidos na ausência de ordens. Via a cidade lá embaixo e os berros da multidão que prosseguiam. De repente, alguns postes hesitantemente começaram á exibir uma luz fraca e bruxuleante. Pouco à pouco, todos os postes da Praça foram acendendo. A energia voltara.
Gyatso checou seu celular. Imediatamente, ele começou á tocar. Era o Lama Poteng. Gyatso então teve uma sensação curiosa; tivera a impressão de ter visto a sua sobrinha- qual era o nome dela mesmo? Enfim, a garotinha que vira há dois anos em seu aniversário. Havia crescido e já era uma mulher, mas ele pôde reconhecer as suas feições. Talvez fosse algo que Poteng merecesse saber.
Atendeu o telefone.
-Alô Poteng?
-Gyatso, cadê as explosões? Vossa Santidade já disse uma dúzia de coisas não publicáveis sobre você. Ataque, ele está apressado.
-Poteng, eu vi a sua sobrinha.
-...Hein? Li?
-É, acho que sim. Ela está na Praça Central.
-Na praça?!? Puta merda.
-É. Acho melhor você ir lá e falar algo com ela.
-Caramba... Mas Gyatso, sério, assim que essa munição chegar, vá com tudo pra cima dos manifestantes! Não deixe pedra sobre pedra!
-Certo. Até logo.
Zheng Gyatso desligou o celular e continuou mais uma vez à olhar para a Praça. Um dos soldados finalmente tomou coragem e aproximou-se, cutucando-o nas costas.
-Senhor... o carregamento de munições estará aqui dentro de cinco minutos. Devemos iniciar o processo de mira?
Zheng Gyatso desgrudou-se da voz do soldado e, por um instante, teve a impressão de ouvir pássaros cantarem. Aquela região toda era muito árida e não escutava o canto de pássaros há vários anos.
Gyatso cutucou o pequeno volume que sentia no bolso.
-Não.
-Perdão?
-Faça o seguinte. Retire a artilharia do Promontório e mande-a de volta para a estação.
-O que?! Senhor, eu não entendo...
-É uma ordem. Está questionando um general?
-Não, Senhor.
-Então faça-o.
O soldado saiu rapidamente distribuindo ordens e ninguém entendeu nada, mas a artilharia logo foi sendo conduzida para fora do Promontório. Gyatso nesse meio tempo retirou o volume que estava em seu bolso: uma pequena pistola automática.
Todos os caminhos levavam à um mesmo fim. Ele escolhera o mais curto, e o único que lhe daria satisfação.
Era uma bela visão. Gyatso tentou fixá-la. A multidão irada, que continuava berrando; o mármore do chão do promontório; o cantarolar dos pássaros que mais parecia uma ilusão esquecida.
Levou a mão a cabeça.
Nada mais importava- nem o soldado que correu em sua direção gritando seu nome e de quem ele apenas via os calcanhares, nem o homem com quem dividia seu nome e cujos abusos ele por muito tempo suportara.
Após anos servindo a religião buddhista com mais desprezo e descrença do que fé e dedicação, ele chegara lá.

Ele chegara ao Nirvana. 

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